Tudo começou quando Fernanda Lúcia conversava com os seus alunos sobre assombrações e lugares mal-assombrados. Um aluno lhe contou que lá no povoado deles, Pedacinho de Minas, próximo à escola, havia um lugar assustador: a curva dos ossos. Percebeu que ficavam muito incomodados em falar sobre o assunto. Não quiseram contar muito, mas lhe garantiram que era um lugar assustador.
– Gente, me contem mais. Em pleno século vinte, como assim, um lugar assombrado? Afinal a luz elétrica há tempos expulsou as assombrações e suas histórias.
A professora já havia contado a eles que nascera muito corajosa, desde pequena nunca dera bola para histórias de assombração, nunca lhes meteram medo.
Então um aluno a desafiou:
– Quero ver a senhora, professora, com todo respeito, ir à curva dos ossos, mas à noite. E não ter medo. E ainda trazer um osso de lá.
Fernanda Lúcia falara muito e fora desafiada. Mas não ia perder a aposta. Já em casa, entendeu a enrascada em que havia se metido. E resolveu acabar com aquilo, naquela noite mesmo.
Foi sozinha, deu uma desculpa esfarrapada que precisava fazer uma visita à noite. Possuía um carro, era velho e já havia passado por muitas mãos, ainda causava assombro, porque poucas mulheres dirigiam. Era seu único companheiro, pago em duríssimas prestações. Enquanto suas primas sonhavam com o grupo Menudo, ela já dava duro como professora.
O certo é que se viu chegando ao fatídico local muito rápido. Passou pelas ruas tão palmilhadas do povoado, nenhuma viv’alma à vista. Estava um pouco em dúvida sobre o local, olhando atentamente, mas os alunos haviam lhe explicado: depois da escola, passa pelo Viradouro, pega a estrada de terra e vira na primeira à esquerda, logo se vê a curva dos ossos.
Seguiu confiante e tranquila.
A noite escura não lhe metia medo, porém quando o último poste ficou para trás, seu coração começou a bater mais rápido. Mas seguiu em frente, adentrando no breu, estradinha de terra, vira à esquerda, virou. E foi seguindo, seguindo, mato de um lado, mato do outro, nada da curva dos ossos, contudo atenta, se aparecesse alguém, perguntaria.
Eis que surge à sua esquerda uma montanha de ossos. Eram centenas de carcaças de animais empilhadas que brilhavam à luz de uma nesga de lua. Passou por ali e seguiu, mas antes desceu e pegou um pedaço de osso para provar sua corajosa ida à curva dos ossos. A montanha estalou, gemendo, mas os ossos se reacomodaram e de novo se restabeleceu o silêncio noturno.
A corajosa Fernanda Lúcia seguiu até à frente, numa parte mais larga da estrada, para virar seu calhambeque e retornar. Engatou a marcha e foi, achando tudo tão fácil, sem entender o terror de seus alunos.
Virou à direita na primeira curva da montanha de ossos e seguiu confiante. Virou outra curva e outra curva, quando percebeu estava passando de novo em frente ao monte de ossos!
Fez o retorno e recomeçou, esforçando-se por acertar o caminho, prestando mais atenção. Já estava rodando em círculos há um tempo incalculável, o suor já havia se renovado inúmeras vezes, mas continuava tentando, obstinadamente, a encontrar o caminho.
Quando estava virando, para recomeçar, escutou um chiado: era o pneu que furara!
O jeito era ir, a pé, em busca de socorro na direção da escola. O farol bateu numa pessoa que seguia na mesma direção. Sentindo-se sortuda, desligou o carro , aproximou-se, lépida, e levando o osso consigo.
Fernanda Lúcia viu que era uma moradora voltando da igreja, pela roupa mais comprida e o andar lento, uma senhora de uns setenta ou oitenta anos.
– Senhora, por favor, é por aqui a rua que leva à escola?
A mulher parou solícita, ajeitando o capuz de sua blusa de frio sobre o rosto, que não deu para ver naquele escuro.
– É por aqui sim, me dá o braço que eu te levo até lá, eu gosto de ensinar o caminho às pessoas…
E olhando o osso em sua mão:
– Ah! E você mexeu no monte de ossos, fez bem em trazer o osso.
A professora, com o osso em mãos, tomou-lhe o braço e seguiram, andando sempre em frente. A estrada lhe pareceu muito longa, mas era porque estavam a pé.
A velhinha era tão magra, que Fernanda Lúcia quase não lhe sentia os ossos.
A professora sentiu um frio e se aconchegou mais à velha senhora, sentindo um conforto, um entorpecimento de noites de inverno curado em colo de mãe, aproveitou para fechar os olhos um pouquinho…
Avistando as primeiras luzes do povoado, sua salvadora seguiu por outro caminho. Fernanda Lúcia então se aproximou das primeiras casas, já nem se lembrava do osso. Havia um grupo de homens esquentando fogo num ponto de ônibus. Quando lhes contou seu problema, disseram:
– Que estranho! Há mais de 40 anos, as pessoas contam a história de uma professora que ficou perdida, na curva de ossos, sempre à procura da rua que leva à escola… Dizem que ela mexeu na montanha de ossos, que é amaldiçoada…
(In: O afilhado do capeta e outros contos)