- Gênero: Fantasia | Público Infantil
A índia Raio de Lua navega solitária em seu pequeno barbo, construído por suas próprias mãos. Talhado durante anos na madeira do tronco de uma árvore, que um dia foi uma frondosa representante da sua espécie, carrega a indiazinha rumo à imensidão do mar.
Os pais de Raio de Lua, seus avós e outros parentes cuidaram por gerações da restrita floresta onde ficava a aldeia materna, protegida dos males das grandes cidades. Então, no dia em que um raio derrubou a maior árvore de todas ao lado da menina, sem ela sofrer um arranhão sequer, todos compreenderam que o destino das duas estavam entrelaçados. Na época, Raio de Lua contava com dez anos. A própria indiazinha sabia o que devia fazer. Assim, levou quatro anos talhando e esculpindo aquele tronco que agora a leva ao seu destino.
Avista a aldeia pequena, mas o rio amigo e quase infinito a guia, abrindo-se em mar misterioso.
De tempos em tempos, uma chalana sempre aportou por lá, trazendo doutores com medicamentos, roupas e alimentos diferentes dos que estavam acostumados a comer. Porém, o item mais precioso que recebera daquelas mãos brancas fora o livro encharcado de coloridas figuras. O mesmo livro que Raio de Lua traz na trouxa acomodada em um canto do barco. Enrolado em uma peça de roupa, guardado ao lado de pedaços de carne seca, frutas e água de beber, ele não pode molhar.
A índia navega há dias. O rio vai ficando para trás, guardando suas lembranças para o dia em que retornar às suas origens. À frente, tem o coração bombeado de expectativas, com a sede do desconhecido correndo pelas veias, capaz de a levar até o fim do mundo.
Raio de Lua navega naquele eterno rio de ondas suaves, de águas turvas, raras vezes agitadas. Avista algo, ao longe, que parece um farol, quase igual ao do seu livro. Também identifica sinais de civilização: fumaças, construções…
O barco da índia não tem motor, apenas remos.
Os braços insistem em não desanimar. Remando contra correntes, quase não percebe o seu progresso, fazendo o farol parecer cada vez mais inatingível. Mas a vontade de ampliar seus horizontes, de aprender, de conhecer outras pessoas, outras vidas… tudo isso não a deixa cansar, não desiste. Ela sabe que o percurso ficará mais difícil. Tempestades podem surgir, mas o combustível que nutre seus sonhos é a certeza de que os braços serão mais fortes que o mar; que o seu espírito florescerá em novas terras; e que a sua vida só está começando.
Remando, descansando, remando, descansando… e a índia busca ânimo em sua imaginação salvadora.
*
A experiente pirata Rarralú era uma pirata diferente. Todos os tripulantes do seu navio a admiravam e a respeitavam pela sua coragem e alegria. Rarralú, de origem indígena, andava sempre sorrindo e contando histórias para animar as longas viagens que ela e seus companheiros faziam pelos mares, atrás de tesouros perdidos. Histórias que foram contadas pela avó, que faziam parte das lembranças da infância, em uma pequena e distante tribo indígena.
Depois de muitos anos pelos mares, longe da família e acumulando riquezas, a pirata Rarralú trazia em seu camarote uma grande arca com todos os tesouros encontrados.
Eram colares, braceletes… muitas joias, moedas e barras de ouro. Quanto mais riquezas acumulava, mais ela as queria. Foram grandes aventuras explorando ilhas desconhecidas e poços profundos, passagens subterrâneas, igrejas abandonadas, construções em ruínas e até mesmo… em cemitérios! Quantas aventuras!
Rarralú navegava com a sua tripulação, admirando o mar. Por vezes, ele era misterioso e traiçoeiro; outras vezes, era calmo e amistoso, pois, lhes dava peixes em fartura e enviava a sua correnteza para os guiar a portos seguros.
Interrompendo as reflexões da pirata, um dos marinheiros chamado João Malandro gritou:
– Capitã Rarralú, veja! Tem um pequeno barco ao longe, à deriva.
Rarralú estreitou a vista e supôs já ter visto aquele barco há muito tempo. “Besteira minha”, e desviou o pensamento.
Minutos depois, ao recolherem a pequena embarcação, puxada por uma corda, confirmaram que não havia ninguém dentro dela. Encontraram apenas uma garrafa de vidro transparente com alguma coisa dentro.
– Um mapa do tesouro! – falou Rarralú, com os olhos brilhantes, aos desenrolar o papel retirado do interior daquela garrafa.
– Para onde vamos, capitã? – Era o João Malandro pondo-se à frente da pirata, com um sorriso de orelha a orelha, esperando pelo seu comando.
Ela ergueu o braço em punho e gritou para todos a ouvirem:

– Ao norte! A toda força! Companheiros, essa jornada exigirá todos os nossos esforços! – E olhando o mapa, continuou – Seguiremos pelo Mar de Correntes Contrárias, circundaremos o Farol da Vontade, aportaremos na Praia do Desafio, subiremos a Montanha da Coragem, até chegarmos ao Oásis da Superação. É lá que encontraremos o nosso tesouro!
Então, todos ergueram suas espadas e saudaram a sua capitã:
– Rarralú! Rarralú!
E assim fizeram. Venceram o Mar de Correntes Contrárias; atingiram e circundaram o Farol da Vontade; chegaram bastante empolgados à Praia do Desafio; e escalaram a Montanha da Coragem. Naquele momento, a tripulação percorria a última etapa do caminho pelo deserto, buscando o Oásis da Superação. Era a etapa mais difícil da jornada. Todos estavam exaustos, famintos, sujos e desanimados. Quando alguém do grupo adoecia, eles paravam e prosseguiam apenas após o restabelecimento do enfermo. Não deixariam nem um simples marujo para trás. Eles repartiam igualmente a pouca água e o resto da comida. Durante a noite, faziam uma fogueira e dormiam agarrados para suportar o frio. Nem as lendas sobre a tribo da pirata Rarralú, as histórias que mais gostavam, eram capazes de lhes devolver o ânimo. Assim mesmo, com tamanha dificuldade, não desistiam.
A pirata seguia à frente de seus companheiros segurando a bússola e o mapa. Ela sentia-se familiarizada com todo aquele percurso, afinal, já havia encontrado tantos baús de tesouros, que, para ela, todos tinham algo em comum. Chegara a perder a conta da quantidade de aventuras vividas.
O calor imperdoável quase que fazia cozinhar os pés abrigados nas botas. Os estômagos dos coitados conversavam em voz alta entre si. As cabeças latejavam…
Após uma grande duna, mais areia e deserto. Após uma pequena montanha de pedras, mais areia e calor.
De repente, avistaram um oásis. Com suas últimas forças, correram ao pequeno lago, atirando suas cabeças à água para a consumir de todas as formas. Dos coqueiros, tiraram a polpa dos cocos que os alimentou. Rarralú esperou que todos se refizessem para apontar onde deveriam cavar.
– Amigos, segundo o mapa, o tesouro está bem aqui, junto às raízes deste coqueiro.
Após quase uma hora, as pás encontraram uma caixa de madeira que Rarralú sentiu já ter visto antes uma igual. O baú foi rapidamente erguido e teve seu cadeado arrebentado.
Porém, Rarralú não deixou ninguém além dela ver o conteúdo do baú. Ela abaixou-se, abriu uma brecha da tampa para olhar, deu um largo sorriso e o trancou novamente.
– Amigos, aqui dentro está um grande tesouro para mim. Vamos levá-lo ao nosso navio, e lá, todos vocês terão o seu pagamento – falou a pirata, o mais alto que pôde, com os olhos em festa.
O caminho de volta foi mais rápido e menos sacrificante, pois, todos carregavam a satisfação da missão cumprida. Sabiam que um generoso pagamento os aguardava.
Já no navio, sozinha em seu camarote, Rarralú abriu de novo o baú e tirou de dentro o tesouro encontrado: o livro de imagens coloridas que a havia inspirado a deixar a sua aldeia e ganhar o mundo. Ao entrar o baú, tudo havia voltado à sua mente: a índia Raio de Lua de 14 anos que apanhou um livro e o barco que construiu para se encontrar com o mundo, em busca de tesouros, havia dado lugar à pirata Rarralú.
Aquela arca havia sido o seu primeiro grande achado, há muitos anos. Na época, o baú que havia estado cheio de moedas de ouro recebera outro tesouro antes de ser novamente enterrado. Rarralú lembrou quando desenhou o mapa e o enfiou numa garrafa. Lembra que a colocou no velho barco e que o empurrou de volta ao mar. Ela exaltava-se em recordações. Anos de aventuras a haviam feito esquecer-se de quando e como tudo começara.
E o que a pirata fez? Rarralú retirou da sua grande arca guardada todas as joias e ouros acumulados e encheu o recém-chegado baú.
– João Malandro, venha aqui! Leve este baú ao convés. Vamos dividir com nossos amigos todas essas riquezas.
Assim, vendo toda a sua tripulação feliz e satisfeita, compreendeu que aquele sim era o tesouro mais precioso de todos: a amizade. Pois, de que vale tanta riqueza sem ser compartilhada?
*
Envolvida na imaginação das suas histórias, os braços de Raio de Lua não cansaram.
Param agora ao alcançar um pequeno monte de areia alva e fina. A índia puxa seu barco e, sem descansar, os olhos se erguem e se encharcam de vida, admirando o seu farol.
Este conto foi selecionado e faz parte da Coletânea Contos infantis Centenário de Maria Clara Machado, disponível na Amazon.
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