- Gênero: Comédia | Público Jovem adulto
O abençoado divórcio
Rosângela Martins
— Agora, a senhora assina aqui e estará tudo acabado.
Marina pegou a caneta da mão do advogado e vacilou por um instante.
As brigas diárias com o marido haviam chegado ao limite. Foi dois anos de pastas de dentes destampadas, de roupas espalhadas pelo quarto, de toalhas molhadas sobre a cama, de sapatos sujando o piso branquinho…, mas quando ele quis monopolizar a TV… aí o bicho pegou. Afinal, era um absurdo não ter direito às novelas, após um dia inteiro de exaustivo trabalho doméstico. Aliás, o casamento havia feito dela quase uma escrava.
Tirou a tampa da caneta.
Ah! Na época de namoro, quando eram apenas vizinhos, o português era só gentilezas!
— Dona Marina, esse vestido cai-lhe muito bem! Dona Marina, por obséquio, podia-me emprestar uma chávena de açúcar?
Ele soltava um elogio aqui, uma gentileza ali…
— Com o maior prazer, seu João Maciel!
Horas depois, ele batia à sua porta, com um sorriso emoldurado pelo farto bigode, exibindo uma torta de maçã para comerem com café.
O vizinho português soube conquistá-la, isso sim.
Várias vezes, haviam enfrentado o terrível trânsito de final de semana, para passarem algumas horas na paradisíaca praia de Grumari.
— Fofucho, passa protetor solar nas minhas costas?
E lá estava ela estendida de bruços sobre uma toalha na areia, querendo atiçar o namorado. Pesa que João Maciel não se fazia de rogado? Que nada! Ele erguia-se a postos e ajoelhava-se ao seu lado, todo animado. Então, cantarolando uma música de Roberto Carlos, ia deslizando as mãos nada bobas pelas suas curvas, montes e dobrinhas — ele adorava mulheres corpulentas — e virava o pescoço para os lados para garantir que nenhum dos poucos banhistas ao redor os estava observando.
— Ui! — Ela deixava escapar com um sorrisinho maroto e satisfeito, fingindo reprovação, quando aquelas mãos lambuzadas ousavam ultrapassar os limites do seu suposto pudor.
Uma cutucada do advogado desfez o sorriso bobo de Marina.
Ela olhou para o marido, do outro lado da mesa, que retorcia nas mãos a boina que costumava usar. Aquela maldita boina! Marina fechou a cara, e apoiou a mão sobre a mesa com a caneta em posição.
Por quantas vezes haviam brigado por causa daquele chapéu ridículo que ele teimava em usar para esconder o início da calvície! Melhor seria estar casada com um careca charmoso, do que com um homem fissurado em um chapéu. Nem colocar a peça para lavar ela podia. Pois é, era só pegar na dita cuja, que ele fazia o maior carnaval, tamanha era a ciumeira.
Bons tempos quando eram vizinhos e namorados… Infelizmente, o casamento só fez expor os defeitos do marido e esfriar o fogo da paixão.
Os papeis receberam uma lágrima.
Mesmo assim, Marina sentou-se para ter mais apoio e a caneta começou a se movimentar.
— Não! Espera, chuchuzinho!
João Maciel deu um sobressalto para segurar o braço da esposa, e a boina, amassada, caiu aos pés de Marina, que logo se manifestou.
— O que é isso aqui?
A ponta de um papel chamou a atenção, saindo do forro da boina. Mas a mulher foi mais rápida e pegou o objeto do chão.
— Dá-me cá o meu boné!
Os advogados se entreolhavam impacientes, enquanto o juiz, experiente, aguardava atento o resultado daquela história.
— Então era por isso que você não me deixava pegar nesse chapéu nojento! — Ela escondia as mãos por trás de si. — Vamos ver o que esse português esconde aqui.
— Não te atrevas a olhar as intimidades dos outros! — ameaçou com o dedo em riste.
Aí o advogado do João Maciel teve que contê-lo para ele não avançar na mulher.
— Pois sim! — Ela levantou-se e vasculhou o interior da boina, retirando uma fotografia de dentro dela. — Eu sabia que era o retrato de uma rapa…
Porém, Marina segurou as palavras quando identificou a foto. O rosto ficou vermelho e, num golpe só, enfiou-a de volta à boina. Então, refeita da surpresa, em postura de indignação, dobrou o chapéu de pano e o devolveu ao marido.
Os advogados, curiosos, não se arriscaram a fazer perguntas, na expectativa de a morena acabar rodando a baiana de uma hora para outra. Entretanto, Marina não perdeu a classe. Ajeitou o vestido, empinou o nariz e virou-se decidida para a autoridade maior.
— Doutor juiz, eu vou assinar!
A cena que se seguiu foi de cortar o coração, pois nem as lágrimas e os apelos desesperados do marido fizeram a mulher mudar de ideia.
Um mês depois…
— Eu soube que você se separou, minha filha. Mas ficou tão pouco tempo casada… O que aquele português andou aprontando?
Marina terminou de passar o café e, enquanto enchia a xícara da tia, foi logo explicando:
— Ele não aprontou nada, tia. Só descobri que não dava certo ficarmos casados. Estava um inferno… E a melhor decisão da minha vida foi o divórcio, acredite.
O celular de Marina vibrou. Ela olhou a tela e sorriu.
— Hum! Já tem outro na área, não é? Essa cara não engana… — Soltou um risinho malicioso.
— Vou te confidenciar, tia: ele gosta de trocar nudes — disse ao pé do ouvido da mais velha, que no mesmo instante levou a mão à boca para esconder o sorrisinho.
Mal a tia deixou o apartamento de Marina, a campainha soou.
— Eu estava a sentir o cheirinho do teu café e não pude resistir. — João Maciel entrou, fechou a porta e lascou um beijo na morena.
Marina se derretia nos braços do ex-marido.
— Quero ver se aquele nudes que você mandou não é nenhuma montagem. Acho que você deu um zoom para parecer maior. — Ria toda assanhada, provocando o português.
— Pois eu vou-te mostrar que sei usar muito bem os meus equipamentos fotográficos e os não fotográficos…, com ou sem zoom.
Antes de irem para o quarto, João Maciel jogou a camisa para um lado e atirou a boina para outro. Embaixo do forro meio transparente daquele chapéu jogado ao chão, via-se uma foto de alguns anos, meio amassada. Era Marina, seminua, deitada de bruços na areia da praia de Grumari.
FIM
Conto publicado na Antologia “Por aqui tudo acontece” pelo Carreira Literária, disponível na Amazon.
Observação do Autor
O casamento pode transformar o relacionamento perfeito em uma rotina repulsiva, onde o divórcio chega como a melhor solução.