Ao pé da letra

  • Gênero: Comédia

Ai, meu filho, nem acredito que já estás casado. Quanto tempo mesmo?

Três meses xôra Odete, três meses. — Faz um sorriso rasgado, fazendo o bigode empertigar-se nas pontas.

Mas sabes, quando te disse que devias casar para teres companhia e ajuda na lida da casa, estava a falar de uma moça daqui da aldeia ou de algum povoado próximo, não de mandares vir uma noiva do Chile!

Jacinto coça a cabeça com o indicador direito.

Sabe, é que o Zé Nu disse-me que eu era feio como à noite, e nenhuma mulher iria querer casar comigo, só mesmo uma noiva por catálogo. Então fui à Internet e encontrei a Consuelo.

Oh, meu filho, e tu ainda vais nas conversas do Zé Nu, aquele bêbado devasso? — Jacinto faz uma careta que lhe amarrota toda a testa. — Bem, agora já está, nada por fazer. — Dá uma palmadinha na mão de Jacinto — Mas afinal, onde está a tua Consuelo? — Olha à volta da sala.

Ela já está deitada. — Esboça um meio sorriso.

Odete olha para o relógio de pulso.

São agora seis da tarde, ela está doente?

Jacinto acaricia a ponta do nariz.

Doente acho que não, mas anda esquisita.

Como assim?

Quando chegou andava alegre e curiosa com tudo, agora anda triste, sempre pelos cantos. Na outra noite, ouvia-a chorar baixinho. — Olha para o chão e faz um pequeno beicinho, fazendo o bigode farfalhudo tocar na ponta do nariz — Talvez ela não goste de mim, por isso está assim.

Oh, disparate. — Dá-lhe uma leve palmada no braço. — Já pareces o rei muçulmano do Algarve.

Quem?

Segundo a lenda, quando o Algarve ainda fazia parte do reino dos mouros, havia um príncipe muçulmano que casou com uma bela princesa nórdica, loura e de olhos azuis. Ela gostava do marido, mas, como a tua Consuelo, começou a ficar cada vez mais triste, e chorava muito. Ele também começou a achar que ela estava assim porque não gostava dele, ou não gostava de viver ali. Mas, ao contrário de ti, ele resolveu perguntar à esposa o que se passava, ela apenas lhe disse que tinha saudades, tinha saudades da sua terra, tinha saudades de ver a neve. Então, o príncipe teve a ideia de plantar uma série de amendoeiras nos campos, e quando elas floriram e encheram as árvores de flores branquinhas, ele chamou a princesa e fez-lhe a surpresa. Ela ficou extasiada, até pensou que o rei tinha conseguido fazer neve no Algarve. — Ri baixinho.

Jacinto coça novamente a cabeça.

Devo fazer o quê, mesmo?

Meu filho, primeira coisa a fazer é perguntar directamente à Consuelo o motivo de ela andar triste.

E se for saudades, como essa princesa da história?

Fazes o mesmo que o príncipe, preparas uma surpresa. Podes-lhe comprar um quadro com uma paisagem do país dela, preparar um álbum com fotos, até comprar fruta, comida, ou flores características do Chile e presentá-la.

Jacinto assenta com a cabeça.

Sim, vou fazer isso. Obrigada xôra Odete. Quer mais um chazinho?

Sim, meu filho. Agradeço imenso.

Passados três meses, a professora Odete volta à aldeia e faz outra visita ao seu ex-aluno.

Oh, da casa! — bate palmas.

Consuelo abre a porta mostrando um sorriso à gato Cheshire, e saltita descalça entre as pedras do quintal para ir abrir o portão.

Señora Odete, como esta usted? Entre, entre.

Estou bem, minha filha. Obrigada. Ia jurar que tinhas os olhos castanhos, mas estão mais para pretos que castanhos.

Consuelo dá um beijo repenicado na bochecha de Odete, e envolve o seu braço no braço dela, guiando-a para dentro. Odete deixa-se arrastar por Consuelo, fazendo um esforço para acompanhar a gazela.

Jácinto, tu professora esta aqui. — Larga o braço de Odete e dirige-se para a mesa da sala.

Jacinto levanta-se do sofá e vai ter com Odete.

Xôra Odete — dá-lhe dois beijos —, como está?

Estou bem, meu filho, estou bem.

Un pastel de chocolate, señora Odete?

Odete olha para o prato cheio de pedaços grandes de bolo de chocolate e não se faz rogada.

Que belo aspecto, minha filha. Obrigada.

Receta secreta de mi país.

Ah, que bom!

Voy a preparar un poco de té. — Sai na direcção da cozinha.

Hum, este bolo é uma delícia. — Come o bolo quase de uma enfiada só.

Tire outra fatia xôra Odete, esteja à vontade.

Vou tirar sim. — Tira a fatia maior do prato. — Ela está muito feliz, falaste com ela?

Jacinto endireita-se, agarrando os suspensórios vermelhos, irradiando felicidade.

Falei sim, a xôra Odete tinha razão. Ela estava com saudades de casa, então fiz como o príncipe da sua história. O Zé Nu ajudou-me a pesquisar na Internet e preparei um jardim característico do Chile no quintal das traseiras. Quando lhe mostrei ela até saltou de felicidade.

Odete junta as mãos ao peito, com cuidado para não deixar cair o bolo.

Ah, ainda bem, meu querido.

Quer ver o jardim?

Claro, claro.

Odete segue Jacinto até ao quintal. Mas à sua frente apenas vê um manto verde de vegetação, com folhas finamente recortadas em segmentos lineares.

Odete franze a testa.

Esta planta não me é estranha. — Dá outra dentada…

Jacinto espeta o peito para fora e puxa pelos suspensórios, subindo e descendo nas pontas dos pés, sorrindo como num anúncio da Colgate.

A Consuelo disse que deve estar quase a dar flor.

Não, não me é nada estranha… — Odete continua compenetrada na planta.

E é muito versátil, a Consuelo usa para tudo. Usa como incenso na casa, para fazer chá, bolos, manteiga e muitas outra coisas.

Como é mesmo o nome da planta, filho?

Jacinto tira o boné e coça a cabeça com o dedo.

Hum… tem um nome esquisito… é… ca… canhi qualquer coisa, espere aí. — Grita na direcção da casa. — Consuelita, qual é mesmo o nome da planta da tua terra?

Consuelo assome a cabeça à janela da cozinha.

Cannabis, mi amor.

Isso, isso. — Olha novamente para Odete, com uns olhos grandes e redondos.

Odete olha várias vezes entre a planta e o bolo de chocolate, mais de metade comido na sua mão.

Ai, meu Deus, que não tenho idade para estas coisas!

Quer mais um pedaço de bolo e um chazinho a acompanhar?

Odete fica parada a olhar para a planta.

Olha, perdida por cem, perdida por mil. Venha de lá mais uma fatia e um chazinho.

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