Aline A Siqueira

Personagens que movem o mundo (e a trama)

    Por que personagens planos em histórias character-driven são como pão dormido numa fondue

    Desde as primeiras marcas nas cavernas, aquelas que ninguém assinou mas todo mundo respeita, o ser humano vem contando histórias. E mesmo sem uma palavra escrita – ou falada –, as cenas de caça pintadas na pedra já entregavam tudo: tensão, ação e, claro, um protagonista (às vezes um guerreiro… às vezes o bisão, vai saber).

    Narrar parece um instinto tão primitivo quanto comer com a mão. A linguagem evoluiu, o fogo virou metáfora, o bardo foi substituído pelo roteirista, mas uma coisa continuou igual: a gente quer ver gente, gente de verdade. Daquela que erra, hesita, se arrepende, explode, silencia, sofre por dentro e por fora. É essa matéria humana que dá corpo à história, especialmente quando falamos de tramas character-driven.

    Mas o que é mesmo uma história character-driven?

    É quando o personagem puxa a história com a força da própria personalidade, ao invés de ser empurrado pela história. 

    É ele quem decide o rumo, quem complica e descomplica e transforma tudo ao seu redor, inclusive a si mesmo.

    Um exemplo que sempre vem à cabeça é Walter White, de Breaking Bad. O cara descobre que vai morrer e, em vez de fazer uma viagem de despedida com a família, resolve virar o chefão do tráfico. E por quê? Porque é orgulhoso, ressentido, brilhante… e um tanto perigoso. A série não acontece apesar dele, acontece por causa dele.

    Diferente das histórias plot-driven, em que o mundo gira e o personagem gira junto. Meteoro cai, tsunami vem, o povo corre. Não tem muito espaço para crise existencial – e tudo bem! Só que quando a proposta é character-driven, a alma da coisa está na complexidade de quem carrega o enredo nas costas.

    Personagem que funciona X O que não funciona nem como pão

    A palavra “personagem” carrega peso filosófico e teatral.

    Originalmente, o termo deriva do grego “charaktēr”, que significa “marca gravada” ou “sinal distintivo”. Essa marca, no sentido original, podia ser uma impressão em uma moeda, um símbolo na alma ou uma qualidade que define algo ou alguém. O termo evoluiu para o latim “persona”, que se referia à máscara utilizada pelos atores no teatro para representar diferentes papéis. Assim, a palavra “personagem” carrega em sua história a noção de representação e de algo que identifica e distingue.

    Bonito, né? Porque no fundo, é isso que esperamos: personagens que deixem marca.

    E marca não se faz com uma só linha. Um bom personagem é tridimensional, ou melhor, esférico. Ele tem:

    • crenças (às vezes duvidosas);
    • medos (alguns bem escondidos);
    • contradições (quem não?);
    • vícios e virtudes que se atropelam;
    • e sempre uma história mal resolvida que volta para assombrar.

    É isso que dá carne, osso e alma!

    Um Atticus Finch, por exemplo, não vai defender o racismo só porque está mais conveniente no momento. Um Sherlock Holmes jamais vai largar tudo pra abrir um food truck de saladas orgânicas (a menos que faça parte do plano para capturar Moriarty).

    E sobre mudanças: sim, personagens mudam. O famoso arco de personagem tá aí pra isso. Mas a transformação verdadeira só vem com vivência, dor, atrito e escolhas difíceis. 

    Mas e quando o personagem é… um pão dormido

    Agora vamos ao pesadelo: imaginar uma história inteira girando ao redor de um personagem que não quer nada, não acredita em nada, não reage a nada. Aqueles que parecem figurantes da própria vida.

    É como querer fazer fondue com pão dormido. Ele tá lá, mas não absorve, não interage. É triste.

    Em histórias character-driven, personagens rasos não só comprometem a trama, eles a esvaziam. O leitor sente, a leitura empaca e ninguém lembra de um personagem que mal existiu.

    Criar bons personagens exige mais do que planilha. Exige escuta.

    Escutar o mundo, as entrelinhas. Escutar até aquele silêncio estranho que a pessoa faz quando tá engolindo algo que queria dizer.

    Você pode (e deve) estudar teoria, arquétipos, MBTI, Jung… tudo ótimo! Mas nenhuma dessas ferramentas funciona se o seu olhar estiver cego para a humanidade que existe ao seu redor.

    Às vezes, tudo que você precisa é prestar atenção no jeito como alguém coça o queixo antes de responder. É ali que mora o conflito não dito.

    Por que tudo isso importa mesmo?

    Porque o leitor até gosta de batalhas épicas, reinos perdidos, dragões de três cabeças e afins. Mas o que prende ele é o dilema. É quando ele pensa: “Meu Deus, essa sou eu num corpo medieval!” Ou: “Se eu estivesse no lugar desse personagem… não sei o que faria.”

    Personagens bem construídos fazem o leitor rir sozinho no ônibus, fechar o livro pra respirar, ou até levantar da cama às duas da manhã para procurar alguém que também leu aquilo. É esse tipo de conexão que eterniza uma história.

    E no fim, sejamos honestos: do que mais nos lembramos, senão das pessoas que viveram aquelas histórias? Mesmo que algumas delas nunca tenham existido…

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