A Vida Intelectual

O escritor precisa ser intelectual?

A vida intelectual

Recentemente, li na @publishnews sobre o relançamento do livro “A vida intelectual”, de Antonin-Dalmace Sertillanges (1863 – 1948), teólogo francês, filósofo e padre dominicano, conhecido por seus estudos sobre São Tomás de Aquino, escrito em 1920. Como eu já o havia lido, quando publicado pela Editora Kírion, edição de 2019, fui revisitar meus apontamentos e identifiquei algo bastante interessante, que vale à pena compartilhar.

Embora o livro seja direcionado para a formação de intelectuais católicos, encontrei nele uma imensa equivalência com o ofício de escritor. Por isso, tracei uma abordagem diferente de uma resenha ou de uma crítica. Neste artigo, mostro as equivalências entre a vida do intelectual e a do escritor. Procuro ilustrar, trazendo exemplos atuais, sem abordar algumas partes do livro que falam mais do aspecto religioso.

Se você já leu este livro, o artigo vai descortinar algo a mais. E se você não leu o livro, esta é uma boa oportunidade para o adquirir e aprofundar seus estudos.

E então, você acha que o escritor precisa ser intelectual?

Responda antes de ler o artigo e compare a sua resposta, após a leitura dele.

Definição

Primeiro, é necessário definirmos a palavra “intelectual”. Segundo o dicionário Houaiss: relativo ao exercício do intelecto, em que a inteligência ou o raciocínio desempenham papel preponderante ou excessivo; aquele que demonstra gosto e interesse pronunciados pelas coisas da cultura, da literatura, das artes etc.; aquele que domina um campo de conhecimento ou que tem muita cultura geral; erudito, pensador, sábio.

A partir daí, podemos simplificar dizendo: o intelectual é aquele que, através do estudo aprofundado, amplia seus conhecimentos e desenvolve a sua inteligência e o seu raciocínio.

Propósito

O filho de uma catadora de recicláveis passa em uma universidade de medicina. Um morador de rua consegue excelentes notas no ENEN. Uma estudante de instituição pública é aceita em várias universidades nos Estados Unidos. O que essas pessoas têm em comum? Elas não possuíam dinheiro para comprar livros ou pagar bons cursos, mas focaram em um propósito. Conseguiram excelentes resultados através de seus próprios esforços, com as ferramentas que tinham em mãos. Eles não desanimaram. Perseveraram em suas metas. Eles sim são heróis reais. Se bombeiros e policiais salvam as vidas dos outros, a primeira vida que o estudioso salva é a sua própria. Infelizmente, casos como os citados deveriam ser regra, e não exceções; tornam-se tão excepcionais que viram matéria dos noticiários.

O saber alimenta a alma. Às vezes até vicia. Mas é o vício bom que traz como único mal o possível isolamento. Porque o estudo, a escrita e a leitura, num primeiro momento, são atividades intimistas. São momentos de auto conversa, onde o silêncio torna-se o melhor companheiro.

Como vimos, o estudo processa milagres, tal qual uma planta que germina e cresce em um solo árido, em um terreno infértil.

Um comparativo que o autor faz e faço questão de destacar é: “A vontade é a mãe suprema que não abandona o filho.” Eu complementaria dizendo que não abandona o filho, desde que ele trabalhe para o seu propósito.

Conselhos do autor

Sertillanges traz alguns conselhos importantes a destacar:

  1. Estudo diário de duas horas;
  2. O intelectual (assim como o escritor) pertence ao seu tempo. Por isso, não deve se comparar a outros do passado;
  3. O isolamento paralisa. É preciso sim guardar a solidão para os momentos de estudo, de leitura e de escrita. Mas é necessário viver. Nós somos o resultado de nossas experiências. A interação com pessoas e com lugares só tende a enriquecer a bagagem carregada durante a existência;
  4. Precisamos criar uma base, um alicerce, que se inicia com a leitura e o estudo. Alguns fatores são inegociáveis para a criação dessa base, conforme o autor destaca:
  • O intelectual cristão deve partir da certeza de que a maior verdade é Deus;
  • Combater os inimigos que estão dentro do próprio indivíduo: preguiça, sensualidade, orgulho, inveja e irritação. Eu enumeraria mais alguns: a radicalidade, a paixão cega e a ambição;
  • Ter como companheiros: a moral, a ética, o respeito e a perseverança. Para o escritor, eu acrescentaria a criatividade também;
  • Apenas dar um novo passo após consolidar o anterior. Tanto o processo de aprendizado como o de escrita possuem suas etapas que não devem ser puladas;
  • O estudo em grupo é mais produtivo.

  1. O intelectual simplifica, não complica. O escritor também. Uma escrita simples, enxuta, concisa e direta prende o leitor;
  2. É preciso ter disciplina e não relaxar com os cuidados do corpo: higiene, hidratação, alimentação, atividade física e meditação. Quem nunca ouviu a frase “mente sã, corpo são”? Eu complementaria este item com uma advertência: nunca cometer excessos.
  3. Ter equilíbrio é fundamental. Trabalho, lazer e descanso. Equilibrar vida intelectual (mente) com a vida social (emocional) e com os cuidados com o corpo (instrumento);
  4. Troca de conhecimentos, o famoso networking. Diga não ao isolamento. A verdade é absoluta, mas o conhecimento evolui, é mutável.

Atleta da mente

Como um atleta da mente, o estudioso sofrerá privações, terá longas horas de treino e fará um esforço quase sobre-humano. Para o intelectual, tanto esforço é no sentido de buscar a verdade. Para o escritor, o direcionamento desses esforços é para a perfeição do texto, o aprimoramento do estilo e a construção e solidificação da sua carreira literária.

Qualquer profissional que deseja ser bem-sucedido na sua especialidade precisa possuir aptidão: gostar e querer. É como um dom que você vai desenvolvendo com a prática e com a doação de si mesmo. Quanto mais saber, mais satisfação interior. Troca e compartilhamento de saberes é o ápice da realização pessoal. Isso exige paciência organizada e raciocinada. Cursos, graduações, pós-graduações, mestrados, doutorados etc. colaboram para formação das credenciais e do currículo. Mas nada substitui o estudo afinco, que pode ser realizado independente de uma formação acadêmica.

Quando gosta e quer, o homem aprende. Nunca esqueço o ditado: “A necessidade é a mãe da invenção.” Então posso acrescentar mais um verbo aos dois citados pelo autor: quando gosta, quer e necessita.

Não desanime

Atualmente, vivemos num ambiente repleto de oportunidades, altamente propício ao aprendizado autodidata. Os grandes intelectuais do passado tiveram bem menos recursos e, no entanto, foram capazes de desenvolver e publicar com maestria seus textos e suas ideias.

O negócio é não desanimar. Todas as escolhas apresentam seus percalços. Evitar lamentações e manter pensamentos positivos, assim como a mente aberta para novas perspectivas, vão auxiliar à superação das limitações internas e externas. Lembre-se que bons pensamentos atraem o bem.

O conhecimento histórico do assunto estudado leva à compreensão do presente e permite a projeção do futuro. Esse princípio também serve para escritores que precisam contextualizar suas obras.

Substitua a negligência pela curiosidade. Ou seja, não passe batido pelo que não sabe. Pesquise e apure. Porém, cuidado para não desviar do caminho e nem cultivar a ambição de querer saber tudo ou ser melhor do que os outros.

A ansiedade e a função religiosa

É necessário controlar a ansiedade, porém, também é necessário aproveitar cada minuto. O afastamento das distrações, como as redes sociais, durante qualquer atividade, naturalmente, faz aumentar a produtividade. Com organização e disciplina, tudo se torna possível. É claro que aqueles que têm alguém para lavar suas roupas, cozinhar, arrumar a casa e cuidar das suas mídias ou que não necessita de outros trabalhos para o seu sustento tende a fazer esse caminho um pouco mais rápido e de forma mais eficiente. É obvio que ter um suporte ajuda. Mas isso não significa que você não pode fazer tudo sozinho. Pode e consegue!

O autor afirma: “A inteligência só cumpre plenamente a sua missão exercendo uma função religiosa.” Pelo meu entendimento, eu diria que a missão do intelectual e do escritor é exercer uma influência positiva de informação e/ou de incentivo a boas atitudes e bons pensamentos, transmitindo ensinamentos (mesmo que nas entrelinhas), sem jamais duvidar da existência de uma força suprema. Sertillanges quer dizer que ampliar a mente é uma forma de se aproximar mais de Deus. Por isso, ele diz:

“Tudo o que instrui leva a Deus por caminho coberto.” Assim como a frase de Cristo no Evangelho: “Conhecereis a verdade e ela vos libertará.”

O intelectual completo – mais conselhos

Mais orientações podem corroborar na construção do ser intelectual. Assim como os outros conselhos já mencionados, estes também podem ser dirigidos aos escritores:

. Cuidar da saúde e da alimentação, pois as doenças e os males prejudicam diretamente qualquer produtividade: afetam o humor, o temperamento e os pensamentos;

. Viver em ambientes arejados. A boa respiração alimenta as células do corpo;

. Manter uma boa postura, evitando a compressão dos órgãos abdominais, e manter intervalos frequentes para alongamento, ingestão de água e de alimentos;

. Dormir na medida certa: nem demais e nem de menos. O sono é repouso, necessário para repor as energias do corpo. Uma boa noite de sono clareia as ideias no dia seguinte. É preferível acordar cedo a perder horas de sono da noite e da madrugada.

. Tomar cuidado com os vícios e com os excessos;

. Ter e seguir um objetivo, um caminho e um método;

. Cultivar as relações importantes (amigos, familiares e profissionais);

. Ser moderado nas conversas. “O valor duma alma mede-se pela riqueza do que ela não diz.”;

. Equilibrar pensamento e ação;

. Deixar os problemas de lado na hora de realizar suas atividades;

. O estudo e a leitura devem ser correlatos; o pensamento lógico relaciona temas e questionamentos. Todos os assuntos alimentam a nossa mente, o nosso foco de estudo. Tudo colabora para confirmar ou negar nossas teses e teorias, expandindo conhecimentos e despertando associações e insights;

. Ter sempre à mão papel e caneta para anotações. Ou um celular.

. Fazer uma oração matinal ao iniciar o dia: a mente é auto sugestiva;

. Criar uma rotina organizada para aproveitar todos os horários. Eu, por exemplo, enquanto faço as tarefas de casa na parte da manhã, aproveito para ouvir palestras, podcasts, vídeos e aulas relacionados aos meus pontos de interesse;

. Ler escritores contemporâneos, assim como os clássicos.

A leitura inteligente

O estudo, a leitura e a pesquisa começam com perguntas para investigação das casualidades. É claro que nem sempre encontraremos respostas para tudo, mas a procura em si já constrói uma jornada.

Os primeiros sábios e filósofos cristãos eram teólogos. O estudo de São Tomás de Aquino, o chamado Tomismo, tornou-se a base de estudos e o ponto de partida para renomados profissionais. O famoso escritor irlandês James Joyce teve a sua formação como indivíduo influenciada pela filosofia de São Tomás de Aquino.

Trabalhar significa aprender e produzir. E a leitura é o meio universal para o aprendizado; é a preparação para a produção. Daí a importância da leitura inteligente e não com paixão. A leitura excessiva e desordenada não alimenta, entorpece o espírito, prejudica a reflexão, a concentração e, por conseguinte, a escrita. O leitor se limita a contemplar, na posição de simples espectador. Ele se embriaga e segue os passos para onde o autor o quer conduzir. Deve-se ler com calma e suavidade, principalmente o que se quer reter. E só se deve reter o que vai nos servir. Se a leitura é por puro lazer ou informativa, não deve entrar no horário destinado à produção textual.

“O peso morto oprime o vivo, o alimento excessivo envenena.” Assim pensa o nosso autor. Sertillanges ainda diz que não devemos ocupar e sobrecarregar a mente com leituras que não estão no foco de trabalho. Reter na memória apenas o que é bom, positivo, produtivo e que responde aos nossos questionamentos, é o que ele recomenda.

Em termos gerais, lemos para:

. nos qualificarmos ou nos formarmos;

. suprir algum interesse particular;

. nos estimularmos;

. nos edificarmos;

. entretenimento.

A leitura completa envolve conhecer os autores, como eles pensam, qual a sua formação e o contexto da obra (local e data).

A capacidade criativa

Algumas frases do livro em questão valem ser destacadas: “O gênio simplifica, o gênio renova. O gênio vê dentro, frequenta o íntimo dos seres”. Portanto, escritores, ajamos como os gênios!

“A faculdade criadora depende, em grande parte, da memória.” Assim, o bom é definir o que se quer memorizar e meditar várias vezes sobre. Para reter com mais facilidade é preciso entender todas as razões e ligações entre as coisas. Então não abandone um livro sem que o possa resumir e meditar sobre ele. Isso é o que eu estou fazendo agora 😊.

Sempre tome notas. As anotações são a nossa memória externa.

Mas não só de leitura se constrói o saber. O contato social e a troca de ideias são mais do que necessários para a formação das nossas concepções.

“O escritor é o que ele concebe.”

Escrevendo

As anotações classificadas, ordenadas e relacionadas vão construindo o esqueleto do trabalho, do projeto. Se o seu projeto de livro não se trata de ficção é interessante manter uma ficha para cada livro lido, com os dados da edição e do autor, com as ideias principais e com as citações mais importantes, e, ao usá-las, fazer as devidas referências.

É preciso escrever ao longo da vida intelectual. Escrevemos primeiramente para nós, por vários motivos. E é a prática da escrita que formará o estilo. É aconselhável escrever e publicar, pois o contato com o público obriga o escritor ao constante trabalho de aperfeiçoamento. Os elogios merecidos o animam; as críticas fiscalizam-no.

O estilo só se forma escrevendo. O estilo se resume em três palavras: verdade, individualidade e simplicidade. Afinal, o bom escritor não usa palavras inúteis.

“O estilo é como o corpo que pertence à alma, como a planta que provém da semente.”

Tome cuidado para não seguir modismos, que levam à perda da originalidade.

É preciso sair de si mesmo.

Conclusão

O verdadeiro intelectual não teme a inutilidade, porque o percurso é que enriquece. O escritor, de forma geral, pode ter a certeza de que os resultados chegarão, mesmo que demore. A prática, a constância, a paciência, a perseverança e os bons hábitos levarão a bons frutos. Por isso, faça o seu trabalho da melhor forma e vá até o final. E, ao concluir um texto, a leitura em voz alta vai ajudar a mostrar o que soa mais ou menos natural e o que é ou não necessário.

Respeitar todos os cuidados e seguir todos os conselhos tirados do livro “A vida intelectual” é uma virtude e uma prova de sabedoria. Esta é a principal observação de Sertillanges.

O escritor precisa ser intelectual?

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