Ancoradouro

  • Gênero: Fantasia | Público Jovem adulto

Acordo no meio da noite com a sensação que estou sendo observada, e estou. Mesmo de longe o olhar brilhante atrai o meu. Algo nele é mistério e convite, como se soubesse que nada temo. Resolvo segui-lo.

A rua está totalmente deserta, falta hora e meia para amanhecer. Protejo-me, está frio. Acompanho de longe, a passos silenciosos. Ele caminha sem pressa e aproveito para sentir a noite. Nunca deixo de me encantar com a paisagem da madrugada, as sombras inesperadas dos casarios no asfalto deserto e os brilhos trêmulos nos rios que cortam a cidade, basta um pouco de lua e a mágica acontece.

Sigo pelas pontes, deixando um pouco de distância entre nós. Passo pelo teatro entre as árvores centenárias e, embora vazio, escuto sons tenebrosos saindo das suas paredes, algum horror que assisti ali em alguma ocasião e não lembro qual. Muitos sons são horríveis para mim mas, à medida que eu caminho, agora em passos mais rápidos, mas ainda mudos, consigo ouvir ali perto o som que sempre acalma o meu coração.

A solidão da noite é apenas um ardil, não me engano e mantenho-me alerta. Refúgios escuros e sujos misturam-se ao encanto, por vezes são o próprio encanto, radiantes ou tristes. O aroma metálico é sutil, mas continua espalhado pelo ar, intensificado pelo sereno que deixa tudo úmido. Todo este percurso é meu conhecido, não estou ao acaso e não perco o meu observador de vista.

Ele caminha em direção ao meu lugar predileto e uma suave luz já surge no horizonte do mar alto. Quando chego ele está parado no meio da praça, bem no círculo metálico* encravado no chão. No mesmo lugar onde, por uma eternidade, todos os dias, aguardo para sentir o momento que o sol desponta e invade todas as ruas antigas que partem daquele ponto. Todos os caminhos partem dali, todos os meus caminhos.

Ao me aproximar para entrar com ele no círculo, vejo novamente o seu olhar, um quê de ferocidade e ternura. Sua pupila oscila entre atenção e repouso, nos protegendo. Já neste momento o seu olhar passou a ser, junto ao som do mar, o que acalma o meu coração.

Do lugar onde estamos podemos ver os raios do sol preencher tudo em volta num grande raio de ação. Atrás de nós, numa linha reta, o raio percorre toda a longa avenida até chegar na ponte por onde passamos, caindo no rio como uma cascata de fogo. É um convite para caminhar neste calor. Eu bem que preciso, estou trêmula de frio e ele, impassível, olha o horizonte.

Sentimos ruídos e na mesma hora saltamos dali. Não somos os únicos habitantes das ruas e da noite, outros seres vagam com menos sorte que nós. Antes mesmo que eu tome a decisão, ele salta com leveza para o telhado, o meu telhado, onde eu passo a maior parte das horas de sol fresco. Parado majestosamente lá no alto, com a linda vista da cidade atrás e o mar à frente, ele me olha chegar lentamente, com um ar de quem tudo sabia e eu nem desconfiava. Aceito de bom grado o atrevimento.

Sento ao seu lado e juntos ficamos hora e meia olhando o mar. Esse mar que tantas vezes pensei que fosse engolir toda a borda da cidade, tamanho o ímpeto de pegar de volta o seu território teimosamente habitado. Mas não, os diques conseguem conter essa fome e, sob a vigilância implacável das esculturas de pedra, o mar se explode ali mesmo em gotículas e espuma.

Sacudimos os nossos pelos para secar a garoa e a umidade do sal. O cheiro forte da maresia e de peixe deixa todos os nossos sentidos aguçados, mostramos as nossas presas pontudas e fortes. Sentimos algo se mover por perto, o cheiro metálico. Saltamos com nossas patas silenciosas pelos telhados do porto, era o nosso café da manhã. O afeto está selado, o nosso marco.

 

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  *O Marco Zero fica no bairro do Recife Antigo, próximo ao Porto do Recife, e nos remete às origens da capital pernambucana. No centro da praça do Marco Zero há uma placa de metal no chão que assinala o local de partida da cidade com suas coordenadas geográficas, o ponto de onde partem todas as distâncias rodoviárias locais. Esta placa com as coordenadas está no centro de uma grande obra de arte, a Rosa dos Ventos, o grande desenho no chão indica os pontos cardeais e faz referência aos astros do nosso sistema solar, numa mistura poética de geometria e astrologia.