Os eternos

  • Gênero: Terror | Público Jovem adulto

Ao inclinar o copo buscando pela última gota de bourbon, pude ver através do grosso vidro uma figura distorcida. A cor da pele misturava-se aos enegrecidos cabelos longos e a roupa, tão escura, deu-me a sensação de que à minha frente jazia um espectro.

Mantive o copo parado, fitando os borrões enquanto o líquido dourado rolava até minha boca e descia como chamas de uma explosão, invadindo cada espaço vazio dentro do meu corpo.

O próximo é por conta da casa — disse o suposto espectro com uma voz grave.

Então, estendi meu copo em sua direção, observando o semblante taciturno daquele senhor na medida que ele abria a garrafa e preparava mais uma dose, por sinal, bem generosa. Duas pedras de gelo acompanhavam a bebida. Só faltava…

Uma pitada de sal  — ele falou. — Como a senhorita gosta.

Certamente meus olhos esboçaram surpresa. Ele me encarou e confusa sobre como ele sabia do meu excêntrico gosto, perguntei:

— Como o…

— Sou atento aos detalhes —  respondeu ele, interrompendo-me. — Eles fazem toda a diferença.

Emudeci.

— Vi quando meu garçom a serviu. Notei que ele colocou uma pitada de sal, mas caso queira sem… 

— Seu garçom? Então, o senhor é o Perpétuo? A quem tanto falam? — perguntei.

Ele dobrou a cabeça, aproximando-se ainda mais do balcão, e respondeu:

— O próprio.

Seu hálito era pútrido e, de perto, a luz tocou seu rosto e eu pude conhecer a face daquele homem, cujas histórias escutei desde a minha juventude. E, confesso, não era assim tão mal; porém, estava longe de ser um senhor conservado.

— E como disse, eu sou atento — frisou novamente. — Percebo que a senhorita não está bem.

De fato eu não estava. Havia acabado de sair do hospital com o resultado de meus exames, um diagnóstico nada bom. Mas o que dizer? Por mais que eu já houvesse escutado histórias sobre aquele homem ele era apenas um estranho.

— Pode pensar que eu sou apenas um estranho, senhorita.

— Senhora — rebati de prontidão, pensando se ele era capaz de ler meus pensamentos.

— Como preferir, senhora.

— Não. Não que seja necessário me chamar assim, apenas… Bom. Eu tenho uma família.

E a tristeza me acometeu ao pensar nela.

Tumor, recordei — era o que dizia meus exames; em estado avançado, ou seja, meu fim estava declarado — informou o médico, não com estas palavras, é claro.

— Por enquanto. Eu tenho uma família, por enquanto — desabafei, deixando que meu olhar se perdesse na cor amarela do bourbon.

— Dois filhos? — perguntou Perpétuo.

Na verdade, não sei se era pergunta ou afirmação. Assenti.

— Divorciada?

— Viúva.

— Lamento. Isso foi recente?

Assenti mais uma vez.

— Mas… não é apenas isso. Sua dor parece maior — afirmou ele.

De fato, era. Entretanto, o que eu poderia fazer? Com a vida se findando e a certeza de que jamais ouviria as primeiras palavras do meu filho mais novo ou veria o mais velho crescer, restava-me apenas o presente. O amarelo ouro da bebida e seu sabor forte, mas não forte o suficiente para derrotar o mal que se abrigava em meu estômago.

— Sabe que posso lhe ajudar — Perpétuo disse.

Virei o copo inteiro. Goladas e mais goladas, até nada sobrar.

— Não pode — falei, girando a cadeira e levantando-se.

Iria embora. Bastava cruzar o salão do bar e atravessar pela porta, mas não consegui. Um piano honky ton no canto chamara minha atenção. Meus olhos brilharam.

O bar não estava totalmente vazio. Algumas mesas estavam ocupadas por senhores que pareciam tratar de negócios, outras, por pessoas ébrias e felizes. Felizes. Como eu nunca mais seria.

— Vejo que seus dedos pulsam. Parece que os filhos não são seu único amor — insinuou o homem sombrio.

— A música é minha paixão — respondi, caminhando até o instrumento.

Passei a mão por sua madeira e uma camada espessa de pó grudou nos meus dedos, revelando a cor esverdeada do instrumento. Fiz o mesmo com as teclas, suavemente, para que nenhuma produzisse som. Senti o acabamento liso e pude notar pequenas marcas de cinzas cigarro. Não resistindo, sentei na frente daquela relíquia antiga que sempre sonhara tocar e apertei uma tecla; depois outra e de novo, mais uma. Comecei a tocar. Colocava na melodia toda minha dor, angústia e medo. Tudo que me amargurava.

O bar silenciou. Só notei isso quando terminei de tocar.

Perpétuo bateu palmas.

— Agora toque algo alegre — pediu ele.

Curvei a cabeça. Neguei.

— Eu estou morrendo — declarei.

— Eu sei — ele respondeu, tocando meu ombro. — Mas eu posso te ajudar.

— Como?

— Você pareceu surpresa quando eu disse que era o Perpétuo, então, sabe como.

— Não acredito nas histórias que dizem sobre o senhor.

— E mesmo assim veio me procurar?

— Não vim atrás de você! Eu só… Precisava de uma bebida.

— No meu bar.

— Há anos você não aparece aqui.

— Eu sempre estou aqui para aqueles que precisam de mim.

— Venho aqui desde minha juventude e nunca te vi antes.

— Talvez não precisasse de mim…

Um calafrio subiu pela minha espinha ao escutá-lo dizer isso.

— Quer viver? — ele perguntou, sussurrando em meu ouvido.

Sem titubear, respondi:

— Sim. Eu quero — e pensei nos meus filhos.

— Toque — disse ele. Recorde-se dos momentos mais felizes da sua vida e toque. Toque até que sua alma se eleve. No final, estará curada.

— E depois?

— Refaça seus exames. Tenha certeza que está saudável e volte para brindar comigo.

E tudo que já me aconteceu de bom me veio à memória; como a água cristalina, imagens nítidas dos melhores momentos da minha vida. E eu toquei. Toquei. Cada nota, cada tom, cada tecla… Toquei com a mesma vontade que tinha de continuar via.

Três semanas se passaram. Meu diagnóstico: curada. Um milagre! Nenhum rastro de tumor em meu estômago, nada. Era como se eu jamais houvesse tido sequer uma úlcera por tanto estressar-me com o serviço.

Senti-me radiante, contudo, um grande medo tomou conta do meu ser. Conhecia as histórias do Perpétuo, por isso deveria demonstrar minha gratidão. Não desejava sofrer um acidente terrível — como diziam as histórias sobre ele, com a ingratidão sendo severamente punida —, e perder aquilo que eu mais queria manter, minha vida.

Assim, voltei imediatamente ao bar. Atravessei eufórica pela porta com um sorriso estampado no rosto e lá estava ele: do outro lado do balcão, fitando-me com os olhos densos e escuros — semelhante a noite sem estrelas — e um sorriso de satisfação.

Aproximei-me e disse:

— Estou curada.

— E veio beber comigo — falou ele.

Balancei a cabeça em afirmação.

— Sou grata. Nem mil doses pagariam o que você fez por mim.

Perpétuo pegou a garrafa de bourbon, servindo-nos. Nossos copos se chocaram num brinde e olhando para mim ele disse:

— Mil doses não, mas um brinde já é suficiente. Pela sua vida!

— Pela minha vida! — repeti exultante.

— Que seja eterna, enquanto dure.

Sorri e sincronizados viramos os copos.

O líquido amarelo invadiu minha boca, descendo pela garganta numa profunda onda de calor; como se o fogo estivesse me consumindo. Flashs do que parecia ser o meu futuro, se eu houvesse atravessado a porta sem tocar o piano, começaram a se formar em minha visão: uma dor lancinante vazia-me desmaiar, meus filhos gritavam e a vizinha socorria-me. Luzes vermelhas, amarelas. Um hospital! Depois, um bisturi passando sobre minha pele. Muito sangue, médicos e escuridão… Até uma luz alva e forte surgir. Eu e meus filhos; abraçados e felizes. Eu iria sobreviver.

Através do grosso vidro do copo, enxerguei de novo a figura de Perpétuo. Sua imagem estava distorcida, todavia, diferente de outrora. Seus cabelos longos e enegrecidos tornaram-se brancos e ainda maiores, sua face estava em decomposição; nem rugas, nem marcas de expressões. A aparência da pele derretida assemelhava-se a cera perto do fogo e,  suas pupilas, estavam totalmente dilatadas e com as escleras igualmente pretas; feito um buraco negro parecia sugar-me. Gritei!

Desci o copo abruptamente, boquiaberta. Perpétuo gargalhou exibindo poucos dentes à medida que um pus viscoso vazava por suas mandíbulas, conforme tentava sustentar seu sorriso. E, de repente, eu não estava mais sentada sobre a cadeira giratória. Meus pés estavam colados aos pedais do piano e minhas mãos movimentavam-se pelas teclas de forma eloquente, tocando Honk Tonk Train Blues.

O ambiente inteiro se transformou. As paredes de concreto tinham buracos como se houvessem sido atingidas por canhões, o chão parecia de barro, misturado a lodo e as janelas… Bom, não havia mais janelas no bar, apenas poucas luzes acesas sobre algumas mesas; que se apagavam ao passo que Perpétuo brindava com as pessoas.

Então, ele viu que eu o observava com nojo e desespero, relutando em parar de tocar, e ele sorriu sadicamente, dizendo em alto tom:

 — Toque! Toque mais. Toque para sempre.

Meus dedos ganharam mais velocidade e, num ímpeto de angústia, gritei por ajuda, porém, sem sucesso. Percorrendo o ambiente com os olhos vi os garçons caminhando pelo salão. Eles nunca paravam. Seus pés estavam sangrando de tanto andar, gemiam de dor e tinham garrafas coladas nas mãos — tal como meus pés no pedal. Seus membros deteriorados, alguns, com ossos do calcanhar expostos, suplicavam pela morte. E todo tormento unia-se à minha música, que reverbera pelo bar com harmônicos agudos de plena felicidade, enquanto Perpétuo ainda gritava, ordenando-me para tocar a mesma música, sem parar, por toda a minha vida… Agora eterna.

Observação do Autor

⚖️ Este conto é de autoria de Aline A. Siqueira e foi publicado na antologia Boteco Maldito, pela Butikin Books  — selo editorial de publicações independentes de terror. Sua cópia sem a permissão do autor configura uma forma de roubo (plágio). Crime, conforme Art. 184 do Código Penal.