Centurio

  • Gênero: Terror | Público Juvenil

Faltava uma hora para o amanhecer. Embora ele sentisse a hora do dia, não fazia ideia do tempo. Dias, meses, anos, séculos. Não se sentia um velho, contudo, estava carcomido, como se tivesse apodrecido. Não, o infeliz não sabia que vivia apenas uma noite da sua nova vida. A sua embarcação ainda estava atracada, seus homens ainda corriam desesperados pela floresta desconhecida. Lembrava pouco dos acontecimentos, mas o suficiente para querer encontrar o seu barco e fugir. De uma coisa ele estava seguro, toda a beleza deste lugar transformou-se em desgraça.

Lembranças de uma sucessão de acontecimentos passaram pela sua cabeça, porém, não confiava na cronologia da própria memória. Estranhos fluxos transformavam toda a tragédia em um assombro que ele não conseguia diferenciar realidade de fantasia, passado de presente. Apenas sangue e desespero.

Lembrou o momento que a sua caravela tomou outra rota, aproximando-se da ilha. A armada não havia percebido de imediato e não fazia ideia de onde estava o seu barco, mas os marinheiros perceberam a estranha corrente sem ventos que os apanhou, sabiam o que voou acima deles. Uma nuvem negra de pequeninos seres disformes que, em um piscar de olhos, transmutaram-se no convés em um único ser. Não conseguiram reagir diante da surpresa e do medo, nem poderiam, tamanha a rapidez do ataque.

Em poucos instantes o chão converteu-se em um tapete vermelho empapado de sangue e vísceras. Homens jogaram-se ao mar para fugir e ainda assim encontraram a morte. Outros nadaram até chegar na costa apenas para se esvaírem nas espumas de águas cristalinas. Alguns entraram mata adentro e logo voltariam atraídos pelo forte cheiro do sangue concentrado na orla. O infeliz navegador, ofegando aqui no seu refúgio, já sentia também este impulso.

Exausto de nadar e correr para dentro da mata, nem estranhou que encontrou abrigo na total escuridão da noite sem precisar de um único feixe de luz e que sons desconhecidos chegavam aos seus ouvidos como se estivessem dentro da sua própria cabeça. Movimentos, cheiros, barulhos, como se ele fosse a própria floresta. A aflição não o deixou perceber que os animais, até os mais ferozes, o evitavam. Percebia apenas a dor queimando as entranhas como fogo.

Para ele, havia pouca beleza em volta, ainda assim, era de uma atração espantosa o buraco lodoso onde entrou. Repugnado, concedeu um pouco de clemência a si mesmo, encontrou no fundo dos pensamentos um sentimento de normalidade no caos, uma espécie de adaptação, como se aquele mundo em colapso fosse o seu ambiente. Uma indução que ele não foi capaz de detectar.

Esperava amanhecer e encontrar a proteção do oceano. Ainda não sabia que nunca mais encontraria guarida, em terra ou água. Não existia bálsamo para a sua ferida que não conseguia ver, mas que ardia. Adormeceu um falso sono.

Dormitou um pouco, no entanto, estava longe de ser um descanso. A respiração ofegante e barulhenta afugentou tudo da toca, não o seu demônio. Despertou de súbito, sem ar, apalpando o pescoço, olhando as mãos com angústia procurando sinais de sangue. O cheiro invadindo as suas entranhas, não só o de sangue, ferroso, mas algo pútrido, talvez ele mesmo.

A sensação de consolo desapareceu e, além do medo, sentiu nojo e desprezo. Desprezo por esta ilha, pelo imprevisto amaldiçoado no meio do oceano que fez a sua poderosa armada desviar do seu destino. A calma aparente já não enganava os seus sentidos. Desgraçadamente percebeu, sentiu o monstro em vigília, sorrateiro.

A vontade de fugir foi urgente, com razão, sentia-se uma presa. Mas ainda sugestionado, não se mexeu, ao contrário, encolheu-se. Olhou em volta e notou. Os atentos olhos que o observavam eram de um vermelho vivo. Pendurado no teto, caberia totalmente na palma da sua mão, um tipo de morcego que nunca tinha visto e de uma aparência medonha. Levou a mão ao seu pescoço novamente, ardia.

Repentinamente, suas lembranças tornaram-se lúcidas. Mostrou todo o pavor que aconteceu naquele convés, causado pela criatura que surgiu daquela nuvem escura de morcegos vinda da floresta. Horrorizado, reconheceu um forte fascínio pela figura na sua lembrança, o magnetismo que paralisou a todos um segundo antes do ataque. A mesma força selvagem dos olhos que o olhavam agora.

Em pânico, mesmo contra todos os seus novos instintos, correu para fora da toca. O tão esperado amanhecer chegava, porém não sentia nenhuma tranquilidade nisso. O sol queimou a sua pele e a dor foi tão profunda que homens, bichos e seres o escutaram. As naus estavam a quilômetros de distância e, ainda assim, sentiram no grito que ouviram o arrepio do desconhecido. Gritava como uma besta.

A miserável criatura voltou para dentro do buraco úmido com a carne queimando, ainda gritando de dor e agora de agonia. Desconfiava da sua condição, que não tinha mais saída e que, agora, seriam aqueles olhos vermelhos a sua companhia.

Nisto, ele estava muito enganado! Eu estava farto daquele ser covarde, afrouxei o meu controle sobre ele e saí do seu pensamento medíocre. Quando abandonei a minha forma animal, a toca ficou apertada demais para nós. Ele, enfim, pode visualizar o que eu tinha disponível para a sua mente limitada, mas eu já não o queria. Com movimentos imperceptíveis agarrei o seu pescoço e consumi o que restava da sua humanidade. Suas últimas palavras foram um esgar e uma lágrima.

Ao anoitecer, voltei ao meu propósito na orla. O cheiro de sangue que assolou a caravela causou um frenesi nos que deixei à espera, o mar estava vermelho. Logo, criaturas recém-criadas e homens desorientados vagando pela praia, todos caíram aos meus pés como frutos podres, atraídos pelo meu poder. Como eu calculei, não havia um único deles que merecesse a eternidade. Destruí a todos.

Pendurado na copa mais alta da praia com as minhas asas fechadas, eu aguardo. Sinto os ecos das outras embarcações que se aproximam em busca da nau perdida. O aroma enche o ar novamente, a irresistível mistura de sangue, cobiça e medo. Com tempo para sondar as mentes dos novos visitantes, não tenho expectativas. A floresta não é para eles. Inacreditável como de repente ficamos sem nada.

 

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Ametrida centurio é uma espécie de morcego encontrada nas Américas Central e do Sul, inclusive no Brasil. Muito pequeno, este morcego chega a 47mm. Tem a face enrugada e uma caixa craniana que proporciona ao animal uma mordida muito forte. Raro e pouco estudado, seus hábitos alimentares não são muito conhecidos, sendo classificado como frutífero. É considerada uma espécie enigmática.