- Gênero: Terror | Público Adulto
A Voz do Além: A Maldição de Mlle Clairon
Capítulo 1
Na Paris de 1743, os dias começavam com o aroma acre de lenha queimando nos fogões das casas nobres, misturando-se ao cheiro úmido que subia do Sena. Nas ruelas, carroças gemiam sobre o calçamento irregular, transportando sacos de farinha, barris de vinho e rumores de uma cidade que, mesmo vibrante, abrigava segredos escuros.
Mlle Clairon, então uma das mais celebradas atrizes da Comédie-Française, trajava vestidos pesados de veludo cor de vinho, bordados a fios de ouro. Os espartilhos lhe moldavam o corpo numa rigidez que lembrava armaduras. O perfume de almíscar que usava lhe seguia como uma assinatura invisível, deixando um rastro em cada corredor do teatro.
Por trás da imponência, batia-lhe o coração de mulher que experimentava aplausos e adulações. Mas não tinha ideia de que o destino fosse implacável na cobrança daqueles que ousavam despertar paixões sem as devolver na mesma medida.
Capítulo 2
Entre todos que orbitavam em torno de sua beleza e talento, destacou-se o Sr. de S… (nome não revelado), jovem bretão de semblante melancólico. Suas roupas sempre impecáveis denunciavam elegância, embora os punhos de renda, gastos, dessem sinais de fortuna declinante.
O Sr. de S… a cortejara com versos e olhares ardentes, o mais que pôde. Porém, quando percebeu que não obteria mais que amizade, afastou-se.
Capítulo 3
Certa noite de outono, Clairon reunira amigos e familiares em seu salão, iluminado por candelabros cujo calor ondulava o ar e fazia brilhar as molduras douradas dos espelhos.
O relógio marcava onze horas quando um grito rasgou a noite. Era um som agudo, quase sobre-humano, que pareceu nascer do próprio vento e atravessou as janelas grossas como se fossem véus de tule. As chamas das velas dançaram, projetando sombras estranhas nas paredes. O perfume de cera queimada se misturou ao medo que invadiu o ambiente.
Clairon empalideceu; seus amigos, muitos acostumados às superstições da época, se benzeram. Outros dois murmuraram preces em latim.
Passado o susto inicial, realizaram buscas dentro e fora da casa que em nada resultaram.
De onde veio aquele grito?
Capítulo 4
O grito repetiu-se nas noites seguintes, sempre no mesmo horário. Quando Clairon jantava fora, nada se ouvia; mas ao regressar, a casa parecia ansiosa para revelar-lhe a terrível maldição. As paredes de pedra guardavam segredos, e o cortante som surgia, inesperado, como se o próprio ar fizesse parte daquela conspiração.
Certa vez, ao voltar da Rue Saint-Honoré acompanhada de Rosely, um jovem ator de espírito irreverente, Clairon tentou, meio por desafio, evocar o espectro.
Oh! Que infeliz ideia! Pois, três gritos ecoaram tão alto que o cocheiro largou as rédeas, e os dois, tomados de pavor, desmaiaram sobre os assentos forrados de veludo.
Naquela Paris, iluminada apenas por archotes e lampiões, as histórias corriam de boca em boca, transformando a atriz em figura não apenas de palco, mas de lenda.
Capítulo 5
Durante os festejos do casamento do Delfim, Clairon hospedou-se na Avenida Saint-Cloud, dividindo um aposento com Madame Grandval. Era uma noite fria, o vento passava pelas frestas das janelas trazendo o aroma úmido dos jardins de Versalhes.
Clairon, usando um robe de cetim cor de marfim, riu baixinho: “Estamos longe demais… duvido que o meu perseguidor nos alcance aqui.” Mal terminou a frase, o grito surgiu, tão próximo que pareceu nascer dentro do quarto. Madame Grandval, tomada pelo pavor, correu de camisola pelos corredores, e ninguém naquela casa conseguiu dormir até o romper da manhã.
As paredes forradas de tapeçarias pareciam conter um eco vivo. Mesmo os muros do palácio, acostumados aos sussurros de segredos da corte, estremeceram diante daquela voz invisível.
Capítulo 6
Ao regressar a Paris, os gritos cessaram, mas logo vieram substituídos por outro fenômeno mais terrível: às onze horas em ponto, ouvia-se um disparo de fuzil contra a vidraça do salão. A faísca iluminava a noite, mas o vidro permanecia ileso.
A polícia, chamada por um tenente amigo, vasculhou as ruas, interrogou vizinhos, mas nada encontrou. O som era real, visto e ouvido por todos, mas a origem permanecia tão etérea quanto a lembrança do Sr. de S….
Numa dessas noites quentes de verão, Clairon, sufocada no espartilho de cetim púrpura, abriu a janela para respirar. Quando o tiro soou, ela e o intendente que a acompanhava foram arremessados de volta à sala como bonecos, sentindo no rosto a ardência de uma bofetada invisível.
Capítulo 7
Certa noite, atravessando de carruagem a rua onde morava o Sr. de S…, Clairon não conteve o olhar para a casa escura, de janelas fechadas. Nesse instante, um novo disparo atravessou o silêncio, fez o cocheiro chicotear os cavalos em pânico, e a carruagem disparou pelas ruas estreitas, com as rodas ecoando contra as pedras.
O cheiro de pólvora parecia ter impregnado o interior do coche, e o terror da atriz não se dissipou mesmo após chegar ao destino.
Capítulo 8
Depois de tanto horror, os tiros cessaram. Mas não houve paz: surgiram palmas compassadas, vindas do nada, sempre à mesma hora. Por fim, uma melodia suave começou a flutuar pela rua: uma voz solitária, feminina e doce, que iniciava sua ária na encruzilhada da Rue de Bussy e se apagava junto ao batente da porta de Clairon.
Essa canção, ao contrário dos gritos, não assustava: causava uma tristeza profunda, como quem recorda algo que perdeu para sempre.
Capítulo 9
Dois anos e meio após o início dos fenômenos, tudo cessou.
Mais tarde, Mlle Clairon soube que o Sr. de S… sofreu por dois anos e meio pelo seu amor não correspondido, antes de falecer. A doença do ciúme foi lhe corroendo aos poucos, tomando-lhe as forças e a vontade de viver.
No leito de morte, instalado na sua casa modesta da Chaussée d’Antin, o Sr. de S… exalou seu último suspiro com uma promessa carregada de amargura:
“Perseguir-te-ei depois da morte, tanto quanto te persegui em vida…”
E assim, com o sopro final, algo dele pareceu permanecer preso ao mundo dos vivos, impregnando-se nas paredes frias de Paris.
Clairon, liberta da perseguição, continuou a brilhar nos palcos, mas nunca voltou a ser a mesma. O medo, que outrora fora visitante, tornara-se hóspede silencioso em sua alma.
Capítulo 10
Anos depois, estudiosos do invisível diriam que se tratava de um espírito preso ao magnetismo da paixão, incapaz de desapegar-se. Outros mais céticos afirmariam que era fantasia de uma mente sensível, cansada da glória, acostumada a ser o centro das atenções.
Mas Paris, em suas memórias antigas, guardou a história de uma atriz que encantou reis e filósofos — e que, por um breve período, teve a própria vida atravessada pela voz persistente do além.
Esta história foi adaptada da Revista Espírita 1858, disponível na Amazon.
Observação do Autor
História adaptada da Revista Espírita 1858, de Allan Kardec