Rosângela Martins

Tudo tem volta

  • Gênero: Drama | Público Jovem Adulto

Tudo tem volta

Gente sozinha na vida tem que se virar como pode.  É o mantra que Helena repete para si toda vez para justificar que seus atos nunca são pecaminosos.

Com a boca escancarada e a luz ofuscando os olhos, agarra-se à cadeira do dentista. Afinal, não tem muitas opções a não ser pensar na vida. Órfã e perneta, ou coxa, capenga, aleijada, manca, estropiada, cansou de ouvir. Quem se importa? Jamais teve motivos para sorrir. Até aquele momento, só havia sido apresentada às dores: físicas e emocionais. Mas um dia sua vida iria mudar, Helena sabia. Ao menos, queria acreditar que sabia.

O sugador de nada adianta. Será que o jaleco branco não enxerga que só faz provocar barulho? Som de motor engasgado ou de compressor à beira de pifar. Porque a baba continua escorrendo pelo canto da sua boca. Uma parte volta para dentro que, com sacrifício, Helena consegue engolir. Ou é melhor dizer saliva? Tanto faz. Com saliva ou com baba a blusa está ensopada no ombro, do mesmo jeito. Pelo menos, serve para refrescar. Os cabelos, presos em um rabo de cavalo, escaparam da baba, mas a nuca está úmida de suor.

O lugar, que com boa vontade pode ser chamado de consultório, não possui nem um ventilador.

Em uma parede com a tinta manchada, a folhinha ainda está no mês de dezembro de 1977. Porém, Helena nem estranha, pois, nada ali é bem cuidado. Então prefere focar em um canto da sala para fugir do clarão incômodo da lâmpada, capaz de cegá-la. No alto, rente à parede, uma aranha flutua, balançando-se, divertindo-se, talvez. Apenas ela.

Em pleno ano de 1978, com tanta tecnologia, por que não inventam um macaco de boca? Bem que aliviaria as articulações dos seus maxilares.

Ele aplicou a anestesia no local errado, Helena tem certeza. Depois da broca, cada vez que a pequena agulha entra e sai, entra e sai, quase chega na alma. Até parece que a agulha maldita quer matar bem mais do que a raiz do dente.

O sugador continua chiando, zunindo, berrando, tentando perfurar os seus tímpanos. Se os braços da cadeira não fossem resistentes já teriam se desmanchado sob a pressão das suas mãos.

De repente, um grito abafado tenta fugir da garganta e Helena recorre ao rosário, tirado do bolso da saia, para contê-lo.

— É com anestesia, não vai doer.

A parte ingênua dos seus 22 anos acreditou. Entretanto, o pior é que, após várias sessões de tortura, ela está ali de novo e por vontade própria. Suas passadas desajeitadas subiram outras vezes as escadas do sobrado na Praça Tiradentes, no centro do Rio. Mas hoje é a última. Não tem mais a intenção de colocar os seus indisfarçáveis sapatos ortopédicos naquelas tábuas de madeira gasta, quase soltas. Se sucumbiu às seduções de uma panfletagem atrativa e barata na movimentada rua do Catete, o jeito é aturar o tratamento até o fim. Falta pouco.

Helena tem a certeza de que qualquer homem não suportaria as dores da forma como ela está suportando, apesar de tão jovem. Porém, a dor tem o seu lado reconfortante: prova que ela é forte. Na verdade, acredita que as mulheres são bem mais resistentes, sobreviventes. Por isso Deus concedeu a elas e não aos homens, um bando de frouxos, covardes e mentirosos, a bênção de parir.

— Ai! — O grito foge sorrateiro.

O frango assado do almoço se revira, revivido no estômago. Mais combustível para o seu mau-humor.

Como tudo na vida merece ter volta, a sua vingança não tardará. Parecia ter adivinhado quando, no primeiro dia de consulta, colocou na ficha um endereço inventado no bairro do Méier. O primeiro nome preencheu certo: Helena. Mas com um sobrenome emprestado de uma das suas atrizes preferidas: Yoná Magalhães. Helena Magalhães. Sensação boa de ser outra pessoa.

Quando deixar o matadouro, o jaleco branco nunca mais me verá de novo.

Após quinze minutos, ela desce as escadas com cautela, acompanhada de uma certeza: sustará o cheque pré-datado dado pela madrinha para o pagamento.

Ficará com o dinheiro e ainda com o sofrido canal.

FIM

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Observação do Autor

O conto Tudo tem volta foi um dos selecionados no 2º Concurso Pintura das Palavras. Encharcada de revolta, Helena usa as armas que conhece para se proteger de todas as pressões por ser mulher, órfã e pobre, além de portadora de uma pequena deficiência física.

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