- Gênero: Romance | Público Adulto
— Este é um dos modelos mais econômicos, senhor — disse o atendente, apontando para uma armação simples de metal fosco.
Ele olhou para a pilha de armações à sua frente. Pagar R$150,00 naquela estrutura frágil ainda parecia um roubo. Mas precisava enxergar. A dor de cabeça constante e os borrões já o impediam de dirigir, de ler, de viver.
— Pode ser essa mesmo — respondeu, resignado.
— Ótimo. Vamos montar as lentes. Posso anotar seu telefone e a forma de pagamento?
Enquanto preenchia os dados, a porta da ótica se abriu com um leve tilintar. Um senhor, de terno bem cortado, colete de linho e chapéu antiquado, entrou com passos firmes. Tirou o chapéu, fez um gesto de cortesia com a cabeça e sorriu com uma polidez quase cênica.
O cliente mal devolveu o aceno. Estava inquieto, impaciente. Queria apenas sair dali e acabar com aquele processo.
— Notei que o senhor é um homem que não gosta de perder tempo — disse o recém-chegado, como quem adivinha pensamentos.
— Não gosto mesmo — respondeu, seco.
— E também aprecia coisas que custam pouco, imagino.
— Quem não aprecia?
O velho homem assentiu, como se isso confirmasse tudo.
— Tenho algo que pode lhe interessar — disse, retirando do bolso interno do paletó um pequeno estojo aveludado. — São lentes. De excelente qualidade. Nenhuma ótica as tem. Ajustam-se aos olhos como se tivessem sido feitas sob medida. E custam… menos da metade dessa armação.
— E por que venderia algo tão bom por tão pouco?
— O antigo dono disse que elas o faziam enxergar demais.
Ele franziu o cenho. Seria uma piada? Um golpe? Mas as lentes pareciam legítimas. O estojo era elegante. E a economia… tentadora demais.
Tomado pela curiosidade (e pela vontade de gastar menos), pegou as lentes e as colocou. Imediatamente, tudo pareceu mais nítido — absurdamente nítido. As letras miúdas na prancheta do balcão, as marcas de gordura no rosto do atendente, até as rachaduras no reboco do teto.
— Impressionante… — murmurou.
— Fico feliz que goste.
Pagou em dinheiro e saiu da loja com um leve desconforto nos olhos — imaginou ser apenas a adaptação. Mal sabia que aquele incômodo era só o começo.
—
Nos primeiros dias, sentiu-se poderoso. Enxergava detalhes como nunca. Lia rótulos sem precisar esticar o braço, reconhecia rostos à distância, notava as menores reações das pessoas ao seu redor.
Mas logo, o brilho começou a se desfazer.
Na cozinha, observava sua esposa sorrindo com estranheza. O sorriso não alcançava os olhos. Havia tensão em seus ombros, raiva contida nos gestos.
No trabalho, o chefe insistia em piadas sem graça. E ele via — com uma clareza incômoda — o medo estampado no rosto dos colegas.
Na rua, percebia o lixo ignorado nas calçadas, os olhares vazios, as pequenas agressões escondidas sob rotinas apressadas. Um mundo de rachaduras.
E o pior: dentro de si, sentia coisas que antes ignorava. Pequenas impaciências, julgamentos constantes, uma arrogância silenciosa que se fortalecia.
Começou a tentar tirar as lentes. Não conseguiu. Como se fizessem parte dele agora. Desesperado, voltou à ótica.
O senhor de chapéu estava lá, como se o esperasse.
— Por que quer devolvê-las?
— Essas lentes… mostram só o que há de pior.
— Elas mostram o que sempre esteve aí.
— Mas eu… eu não quero ver!
— Posso removê-las. Mas depois de ver o mundo com clareza, o que fará? Vai fingir que nada viu?
Um silêncio pesado caiu entre eles. O cliente estava empalideceu. Pequenas gotículas de suor brotou em sua testa.
— O senhor arruinou minha vida — sussurrou.
O velho esboçou um sorriso triste.
— Não mais do que ela já estava.
Ele respirou fundo. Aquilo parecia um pesadelo do qual não conseguia acordar.
— Há uma saída. Uma possibilidade — disse o senhor, estendendo um envelope pardo. — É arriscado. Mas pode te dar o que deseja.
— O quê?
— A chance de voltar ao início.

Observação do Autor
Um homem compra lentes baratas que prometem visão perfeita — mas o que elas revelam vai muito além do que ele esperava. Ver a verdade pode ser um presente… ou uma maldição