- Gênero: Suspense | Público Jovem adulto
O Escaravelho de Ouro – Parte II
Pensei, porém, que seria melhor satisfazer-lhe a fantasia, pelo menos um momento, ou até que eu pudesse adotar medidas mais enérgicas, com probabilidade de êxito. Entrementes, tentei, mas completamente em vão, sondá-lo a respeito do objetivo da caminhada. Tendo conseguido induzir-me a acompanhá-lo, não parecia desejar travar conversa sobre qualquer assunto da menor importância. E a todas as minhas perguntas não se dignava dar outra resposta senão: “Veremos!”
Cruzamos o braço de mar na ponta da ilha por meio de um esquife e, subindo os terrenos altos da praia do continente, continuamos na direção noroeste, através de um trecho de terras expressivamente agrestes e desoladas, onde não se via vestígio algum de passo humano. Legrand seguia na dianteira, com decisão, parando apenas um instante aqui e ali para consultar o que parecia ser certos marcos, por ele mesmo colocados em ocasião anterior.
Caminhamos, assim, cerca de duas horas, e o sol estava a ponto de pôr-se, quando penetramos numa região infinitamente mais sinistra do que qualquer outra até então vista.
Era uma espécie de tabuleiro, perto do cume de uma colina quase inacessível, densamente coberta da base ao cimo e entremeada de imensos penhascos que pareciam estar soltos sobre o solo e, em muitos casos, só não se precipitavam nos vales, lá embaixo, graças ao suporte dos troncos contra os quais se reclinavam. Profundas ravinas, em várias direções, davam ao cenário um ar de solenidade ainda mais severo.
A plataforma natural sobre a qual havíamos garimpado estava espessamente coberta de sarças, através das quais logo descobrimos que seria impossível abrir caminho, a não ser por meio da foice e Júpiter, por ordem de seu patrão, começou a rasgar para nós uma estrada, até o pé de um tulipeiro gigantesco, que se erguia, com uns oito ou dez carvalhos, sobre o planalto, e os ultrapassava, a todos, bastante, bem como a todas as outras árvores que até então eu vira, pela beleza da folhagem e da forma, pela vasta circunferência dos ramos e pela majestade geral de seu aspecto. ao alcançarmos essa árvore, Legrand voltou-se para Júpiter e perguntou-lhe se achava que podia subir por ela. O velho pareceu um tanto aturdido com essa pergunta e, durante alguns instantes, não deu resposta.
Afinal, aproximou-se do imenso tronco, andou devagar em torno dele e examinou-o com minuciosa atenção. Terminado o exame disse simplesmente:
— Sim, sinhô. Jup sobe em quarqué arve que ele nunca não viu na sua vida.
— Então suba, o mais depressa possível, pois em breve estará demasiado escuro para ver o que devemos fazer.
— Até aonde eu tenho de assubi, sinhô? — perguntou Júpiter.
— Suba primeiro pelo tronco principal e depois eu lhe direi que caminho deverá tomar… Ah! Espere! Leve este escaravelho com você.
— O escarvéio, sinhô Will? O escarvéio de ouro? — gritou o negro, recuando de medo. — Pur que é que eu tenho de levar o escarvéio pra cima da arve? Que eu me dane se fizé isso!
— Se você tem medo, Jup, um negralhão como você, de pegar num pequeno escaravelho morto e inofensivo, pode levá-lo por este barbante. Mas se, de qualquer modo, não quiser levá-lo consigo lá para cima, serei forçado a quebrar sua cabeça com esta pá.
— Que negócio é esse, sinhô? — disse Júpiter, evidentemente envergonhado, a ponto de se tornar mais condescendente. Sempre quereno armá baruio com o nego véio… Eu tava só brincano! Eu, tê medo de escarvéio? Nem tou ligando pra ele!
Aí pegou com precaução a extremidade do barbante e, mantendo o inseto tão longe de sua pessoa quanto as circunstâncias lhe permitiam, preparou-se para subir à árvore.
Quando novo, o tulipeiro, ou Liriodendron tulipiferum, o mais majestoso dos habitantes da floresta americana, tem um tronco caracteristicamente liso e muitas vezes se eleva a grande alturas sem ramos laterais; mas, chegando à maturidade, a casca torna-se rugosa e desigual, enquanto muitos galhos pequenos aparecem sobre o tronco. Assim, a dificuldade da ascensão, no caso presente, era mais aparente que real. Abraçando o enorme cilindro o mais estreitamente possível, com os braços e os joelhos, agarrando com mãos alguns dos brotos e descansando os dedos nus sobre outros, Júpiter , depois de ter escapado de cair uma ou duas vezes, por fim içou-se até à primeira grande forquilha, parecendo considerar a coisa toda como virtualmente executada. Na realidade, o risco da empresa havia passado, embora o negro estivesse a sessenta ou setenta pés do solo.
—Pra donde devo i agora, sinhô Will? — perguntou ele.
— Vá subindo pelo galho mais grosso, o daquele lado — disse Legrand.O negro obedeceu-lhe prontamente e, ao que parece, sem muita dificuldade, subindo cada vez mais alto, até que não se conseguia vislumbrar seu vulto agachado, através da densa folhagem que o tocava. Nesse momento, ouviu-se sua voz, numa espécie de grito.
— Até onde eu tenho de assubi ainda?
— A que altura você está? — perguntou Legrand.
— Tão arto, tão arto — replicou o negro — que tou podendo vê o céu pelo arto da arve.
— Não se preocupe com o céu, mas preste atenção ao que eu digo. Olhe para o tronco embaixo e conte os galhos abaixo de você, desse lado. Quantos galhos você passou?
— Um, dois, treis, quatro, cinco… Passei cinco gaios grandes desse lado sinhô.
— Então, suba um galho mais alto.Em poucos minutos ouviu-se novamente a voz, anunciando que galho fora atingido.
—Agora, Jup — gritou Legrand, evidentemente bastante excitado. — Quero que você vá andando por esse galho, até onde puder. Se vir qualquer coisa estranha, diga-me.
Desta vez, qualquer pequena dúvida que eu pudesse ainda entreter a respeito da insanidade de meu pobre amigo foi, por fim, desfeita. Não tinha outra alternativa senão concluir que ele estava atacado de loucura e fiquei seriamente ansioso por fazê-lo voltar à casa. Enquanto ponderava sobre o que seria melhor, ouviu-se de novo a voz de Júpiter.
— Tou com muito medo de me arriscá nesse gaio mais longe. Ela tá quage todo podre.
— Você está dizendo que é um galho podre, Júpiter? — gritou Legrand, com voz trêmula.
— Nhô, sim. Tá podre que nem uma tranca véia. Podrinho da Sirva. Não tá prestano mais pra nada.
— Em nome do céu, que devo fazer? — perguntou Legrand, demonstrando o maior desespero.
— Que fazer? — disse eu, alegre por encontrar uma oportunidade de intercalar uma palavra. — Ora, ir para casa e deitar-se.
— Vamos embora! Não seja teimoso! Está ficando tarde, e além disso não deve esquecer-se de sua promessa.
— Júpiter! — gritou ele, sem me dar nenhuma atenção. — Está me ouvindo?
— Nhô, sim, sinhô Will, tou escuitando o sinhô muito bem.
— Experimente, então, o galho com seu canivete e veja se está muito podre.
— Ele tá podre, sinhô, e muito mesmo — replicou o negro, em poucos momentos. Mas num tá tão podre como devia tá. Eu sozinho, posso me arriscá mais um bocado pelo gaio.
— Você sozinho? Que é que você quer dizer?
— Ora, tou falano do escarvéio. Ele é muito pesado. Se eu soltasse ele primeiro, então o gaio não ia se quebrá, só com o peso de um nego.
— Velhaco dos infernos! — gritou Legrand, aparentemente muito aliviado. — Que é que você está pensando para falar uma asneira dessas? Se você soltar esse escaravelho, palavra que lhe quebro o pescoço. Escute aqui Júpiter. Você está-me ouvindo?
— Tou sim, sinhô. Num é preciso gritá pro pobre nego desse jeito.
— Bem, então escute! Se você se arriscar pelo galho, até onde puder chegar sem perigo, e não soltar o escaravelho, eu lhe darei um dólar de prata de presente logo que você descer.
— Tou ino, sinhô Will.. . Tá feito — replicou o negro, bem depressa. Tou agora quage na pontinha!
— Na ponta! gritou satisfeito Legrand. — Você diz que está na ponta desse galho?
— Tou chegando no fim, sinhô… ooooooooooooh! Vala-me Deus! Que é isso aqui em cima da arve?
— Bem! — gritou Legrand, altamente satisfeito. — Que é? Uai! Pra mim isso é uma caveira! Arguém deixô a cabeça dele aqui em riba da arve e os corvo comero tudo quanto era pedaço de carne.
— Uma caveira, foi o que você disse? Muito bem!… Como é que ela está presa no galho? Que é que a segura?
— Sei não, sinhô. Vô espiá. Tá-i, palavra que é uma coisa muito esquisita… Tem um prego enorme na caveira, pregando ela na arve.
— Bem. Agora, Júpiter, faça exatamente como eu vou dizer
— Sim, sinhô.
— Preste atenção, então. Procure o olho esquerdo da caveira
— Humm! Humm! Tá bem! Mas ela num tem ôio esquerdo nenhum!
— Maldita estupidez! Você não sabe distinguir sua mão direita da esquerda?
— Sei. Isso eu sei… Sei muito bem… é com a mão esquerda; que eu racho a lenha.
— Muito bem. Você é canhoto. E seu olho esquerdo está do mesmo lado de sua mão esquerda. Acho que agora você já sabe achar o olho esquerdo da caveira ou o lugar onde ele estava. Achou?
Houve um prolongado intervalo. Por fim o negro falou:
— O ôio esquerdo da caveira tá também do mesmo lado da mão esquerda dela? E purque a caveira não tem nem um pedacinho de mão nenhuma… Num faz mal! Achei o ôio esquerdo agora . Tá aqui o ôio esquerdo. Que é que eu vô fazê cum ele?
— Deixe o escaravelho cair por dentro dele, até onde o barbante der mas tenha cuidado e não largue o barbante.
— Tá tudo pronto, sinhô Will. Foi muito fácil pô o escarvéio no buraco. Óia ele lá embaixo!
Durante essa conversa, nenhuma parte do corpo de Júpiter podia ser vista; mas o escaravelho, que ele fizera descer, era agora visível na ponta do cordel e cintilava, como um globo de ouro brunido, aos últimos raios do sol poente, alguns dos quais ainda iluminavam debilmente o cume sobre que nos achávamos. O scarabaeus pendia inteiramente livre de quaisquer galhos e, se deixado cair, tombaria aos nossos pés.
Legrand imediatamente tomou da foice e limpou com um espaço circular, de três ou quatro jardas de diâmetro, bem por baixo do inseto. E, tendo feito isso, ordenou a Júpiter que e soltasse o barbante e descesse da árvore.
Fincando uma cunha, com grande cuidado, no lugar preciso em que o escaravelho caiu, meu amigo tirou então do bolso uma fita métrica. Amarrando uma ponta da mesma ao ponto da árvore que estava mais próxima da cunha, desenrolou-a até alcançar a cunha e tornou a desenrolá-la, na direção já estabelecida pelos dois pontos da cunha e da árvore, pela distância de cinqüenta pés. Júpiter ia limpando as sarças com a foice. No lugar assim atingido, foi cravada segunda cavilha e em volta desta, como centro, traçou ele um círculo grosseiro, de cerca de quatro pés de diâmetro.
Apanhando então uma pá e dando uma a Júpiter e a outra a mim, Legrand pediu-nos que cavássemos tão depressa quanto possível.
Para falar verdade, eu nunca tive predileção por tal divertimento, em tempo algum, e naquele momento particular de boa-vontade teria recusado, pois a noite ia chegando e me achava muito fatigado com o exercício já feito. Mas não vi jeito de escapar e temia eu turbar a serenidade de meu pobre amigo com uma recusa. Se eu, de fato, pudesse confiar na ajuda de Júpiter, não teria hesitado em tentar carregar o lunático para casa, à força; mas conhecia demasiado bem a disposição de ânimo do velho negro para crer que ele me ajudaria, sob quaisquer circunstâncias, numa disputa pessoal com seu patrão.
Não tinha dúvida de que este último era vítima de alguma das inúmeras superstições meridionais acerca de ouro enterrado e de que tal fantasia recebera confirmação pela descoberta do scarabaeus, ou, talvez, pela obstinação de Júpiter em asseverar que era “um escarvéio de ouro de verdade”. Um espírito disposto à loucura seria facilmente conduzido por semelhantes sugestões, especialmente se as mesmas se harmonizassem com idéias favoráveis e preconcebidas. Recordei-me, então, da conversa do coitado acerca de ser o escaravelho “o indício de sua fortuna”.
Por causa de tudo isso eu me sentia tristemente aborrecido e incomodado, mas afinal resolvi fazer do mal um bem e cavar com boa-vontade, para que assim o visionário se convencesse mais cedo, pela demonstração de seus olhos, da inutilidade das opiniões que entretinha.
Acesas as lanternas, entregamo-nos ao trabalho com um zelo digno de causa mais tradicional; e ao cair o clarão sobre nossas pessoas e objetos, não pude deixar de pensar no grupo pitoresco que compúnhamos e quão estranhas e suspeitas nossas ações deveriam parecer a qualquer intruso que, por acaso, pudesse surgir onde nos achávamos.
Cavamos bem firmemente, durante duas horas. Pouca coisa se disse. E nosso embaraço principal estava nos latidos do cachorro, que tomava especial interesse em nossa tarefa. Afinal, ele se tornou tão impertinente que tivemos receio de que desse o alarme algum desgarrado que andasse nas vizinhanças. Ou, antes, esse era o temor de Legrand, pois eu me sentiria alegre com qualquer interrupção que me permitisse levar o alucinado para casa. O barulho, por fim foi muito eficazmente silenciado por Júpiter, que, saindo do buraco com um ar carrancudo de resolução, amarrou a cabeça do bicho com um de seus suspensórios e depois voltou, com um risinho sério à sua tarefa.
Quando o tempo mencionado expirara, alcançáramos uma profundidade de cinco pés e, contudo, nenhum sinal de qualquer tesouro se manifestara. Seguiu-se uma pausa geral e comecei a esperar que a farsa estivesse no fim. Legrand, contudo, embora evidentemente muito desapontado, enxugou a testa, pensativo, e recomeçou.
Caváramos todo o círculo de quatro pés de diâmetro e agora, pouco a pouco, alargávamos o limite, chegando a cavar mais de dois pés de profundidade.
Nada apareceu, todavia. O procurador de ouro, de quem eu sinceramente me apiedava, pulou afinal do buraco, com mais amargo desaponto impresso em todos os traços do rosto, pôs-se, vagarosa e relutantemente, a vestir o paletó que atirara fora ao começar o serviço. Entrementes, eu não fiz qualquer observação.
Júpiter, a um sinal do patrão, começou a juntar as ferramentas.Feito isso e desamordaçado o cachorro, voltamos para casa, em profundo silêncio.Déramos, talvez, doze passos nessa direção, quando, com um alto palavrão, Legrand saltou sobre Júpiter e agarrou-o pelo pescoço. O negro, atônito, abriu os olhos e a boca até onde foi possível soltou as pás e caiu de joelhos.
— Vagabundo! — disse Legrand, sibilando as sílabas, por entre dentes cerrados. — Negro dos diabos! Fale, estou-lhe dizendo! Responda-me neste instante, sem querer enganar-me! Qual é… qual é seu olho esquerdo?
— Oh, meu Deus! Sinhô Will! Então num é este aqui meu ôio, esquerdo? — grunhiu o terrificado Júpiter, colocando a mão sob o órgão direito da visão e conservando-a ali, com desesperada pertinácia, como se temesse uma tentativa imediata de seu patrão para arrancá-lo.
— Bem eu pensei! Eu sabia disso! Viva! — vociferou Legran soltando o negro e executando uma série de piruetas e cambalhotas, para grande espanto do criado, que, erguendo-se de sobre os joelhos, olhava, mudo, de seu patrão para mim e de mim para seu patrão.
— Venham! Precisamos voltar! — disse este último. — A partida não foi perdida ainda.E de novo caminhou para o tulipeiro.
— Júpiter, — disse ele, — quando o acompanhamos. — Venha cá! A caveira estava pregada ao galho com a face para fora ou com a face para o ramo?
— A cara tava pra fora, sinhô, e assim os corvo pudero chegá bem nos óio, sem trabáio nenhum.
— Bem. Então foi por este olho ou por aquele que você deixou cair o escaravelho? — e aí Legrand apontou para cada um dos olhos de Júpiter.
— Foi por este ôio, sinhô… O ôio esquerdo… certinho como o sinhô me disse — e aí era o olho direito o que o negro indicava.
— Pois vamos! Devemos tentá—lo de novo.
Aí meu amigo, em cuja loucura agora eu via, ou imaginava ver, alguns indícios de método, removeu a cavilha que marcava o lugar onde o escaravelho caiu para um lugar cerca de três polegadas para oeste de sua primitiva posição. Tomando, depois, a fita métrica do ponto mais próximo do tronco até a cavilha, como antes, e continuando a estendê-la em linha reta até a distância de cinqüenta pés, foi indicado um lugar afastado várias jardas do ponto em que tínhamos estado cavando.
Em torno da nova posição, um círculo, um tanto maior do que no caso anterior, foi agora traçado e nós de novo pusemo-nos a trabalhar com a pá.
Eu estava terrivelmente cansado; mas, mal compreendendo o que havia causado a mudança em meus pensamentos, não sentia mais nenhuma grande aversão pelo trabalho imposto. Tinha-me tornado mais inexplicavelmente interessado, e não só, até mesmo excitado. Talvez houvesse algo, em meio de todas as atitudes extravagantes de Legrand, certo ar de previsão, ou de decisão, me impressionava.
Cavei com afinco e, de vez em quando, me surpreendia realmente aguardando, com algo que muito se assemelhava à expectativa, o imaginado tesouro, cuja visão havia dementado meu infeliz companheiro. Ao tempo em que tais devaneios de pensamento maiormente se apoderaram de mim e quando já estávamos a trabalhar talvez uma hora e meia, fomos de novo interrompidos pelos violentos latidos do cão. Sua inquietação, no primeiro caso, tinha sido, evidentemente, apenas o resultado de brincadeira, capricho; mas agora assumia um tom mais amargo e sério.
À nova tentativa de Júpiter para amordaçá-lo, ele ofereceu furiosa resistência e, pulando para dentro do buraco, começou a cavar a terra freneticamente, com as patas. Em poucos segundos, tinha descoberto um monte de ossos humanos, formando dois esqueletos completos, entremeados de vários botões de metal e do que parecia ser poeira de lã apodrecida.
Uma das pazadas puseram a descobrir a lamina de uma faca espanhola e, ao cavarmos mais fundo, três ou quatro moedas de ouro e de prata vieram a lume.
À vista delas, a alegria de Júpiter mal pôde ser contida, mas a fisionomia de seu patrão apresentava um ar de extremo desaponto. Insistiu conosco, porém, a que continuássemos nossos esforços e mal as palavras acabavam de ser pronunciadas, eu cambaleei para a frente, tendo enfiado a ponta de minha bota num anel de ferro que jazia semi-enterrado na terra solta.
Trabalhávamos, agora, com verdadeira ânsia e nunca passei minutos de mais intensa excitação. Durante este intervalo, havíamos completamente desenterrado uma arca oblonga, de madeira que, pela sua perfeita conservação e maravilhosa resistência, evidenciava plenamente ter sido sujeita a algum processo de mineralização , talvez o do bicloreto de mercúrio. Esta caixa tinha três pés e meio de comprimento, três pés de largura e dois e meio de altura.
Estava firmemente fechada por aros de ferro fundido, com ferros formando uma espécie de grade em volta da arca. De cada lado da caixa, perto da tampa, havia três anéis de ferro, seis ao todo, por meio dos quais seis pessoas poderiam agarrá-la com firmeza. Reunidos os nossos maiores esforços, mal pudemos afastar o cofre um pouquinho no seu leito. Percebemos imediatamente a impossibilidade de levantar tão grande peso.
Felizmente, as únicas trancas da tampa consistiam em dois ferrolhos corrediços, que puxamos para trás, tremendo e vacilando de ansiedade.
No mesmo instante, tivemos ali, cintilando diante de nossos olhos, um tesouro de incalculável valor. Como os raios de luz das lanternas caíssem dentro do poço, deste subiam, irradiando, uma incandescência e um resplendor provindos dum confuso montão de ouro e de jóias, que nos deslumbravam completamente a vista.
Não pretenderei descrever os sentimentos que de mim se apossaram ao contemplar aquilo. Predominava, sem dúvida, o espanto. Legrand parecia exausto e dizia muito poucas palavras. A fisionomia de Júpiter apresentou, por alguns minutos, a palidez mortal que é possível, na ordem natural das coisas, um rosto de negro exibir. Parecia estupefato, siderado. Logo em seguida ajoelhado dentro do buraco e, mergulhando os braços, nus ate os cotovelos, no ouro, ali deixou-os ficar, como se gozasse a volúpia dum banho. Por fim, com um profundo suspiro, exclamou, se falasse sozinho:
— E tudo isso vem do escarvéio de ouro! Do bunito escaravéio de ouro! O coitado do escarveinho de ouro que eu tanto descompus, chamei tanto nome feio! Ocê num tem vergonha disso não seu nego? Vamos, me arresponda!
Tornou-se necessário, por fim, que eu despertasse tanto o patrão como o criado, chamando-lhes a atenção para a urgência de remover o tesouro.
Estava ficando tarde, e era conveniente que desenvolvêssemos certa atividade para ter tudo aquilo em casa antes do amanhecer. Difícil foi combinarmos o que deveríamos fazer, e muito tempo perdemos a decidir-nos, tão confusas eram as idéias de todos nós. Finalmente, aliviamos o peso da caixa, removendo dois terços de seu conteúdo, e só então fomos capazes, com algum esforço de tirá-lo do buraco.
Os objetos retirados foram depositados entre as sarças, ficando o cachorro a guardá-los, com estritas ordens de Júpiter para , sob nenhum pretexto, nem se afastar do lugar nem abrir a boca até voltarmos. Então, apressadamente, rumamos para casa com a arca, tendo alcançado a cabana a salvo, mas depois de excessivo esforço, a uma hora da manhã. Esgotados como estávamos, ultrapassava as forças humanas fazer mais alguma coisa imediatamente.
Descansamos até às duas horas e ceamos, partindo para as colinas logo depois, munidos de três resistentes sacos que havíamos encontrado, por felicidade, na cabana.
Um pouco antes das quatro, chegamos ao buraco, dividimos o restante da presa, o mais igualmente possível, entre nós, e, deixando os buracos abertos, e de novo partimos para a cabana, na qual, pela segunda vez, depositamos nossas cargas de ouro, justamente quando os primeiros e fracos raios da madrugada apareciam a leste, luzindo por cima das copas das árvores.
Sentíamo-nos, agora, completamente esgotados, mas a intensa excitação daquele instante nos impedia de repousar. Depois dum sono inquieto dumas três ou quatro horas de duração, despertamos, como se o houvéssemos combinado, para proceder ao exame do nosso tesouro.
A arca fora cheia até as bordas e passamos o dia inteiro e grande parte da noite inventariando seu conteúdo. Nenhuma ordem ou arranjo fora adotada. Tudo fora amontoado misturadamente. Depois de tudo classificado com cuidado, achamo-nos de posse duma riqueza muito mais vasta do que a princípio supuséramos.
Em moedas, havia mais, muito mais, de quatrocentos e cinqüenta mil dólares, estimando o valor do dinheiro, tão acuradamente como podíamos, de acordo com as tabelas da época. Não havia uma partícula de prata.
Tudo era ouro de antiga data e de grande variedade: moedas francesas, espanholas e alemãs, com alguns guinéus ingleses e uns tantos miúdos, de que jamais havíamos visto modelos antes.
Havia muitas moedas bem grandes e pesadas, tão gastas que nada se podia vislumbrar de suas inscrições. Não havia dinheiro americano. Mais dificuldade encontrávamos em avaliar o valor das jóias. Haviam diamantes, alguns deles excessivamente grandes e belos, cento e dez ao todo , e nenhum pequeno; dezoito rubis de notável brilho; trezentas e dez esmeraldas, todas lindíssimas, e vinte e uma safiras, além de uma opala.
Essas pedras tinham sido, todas, arrancadas de seus engates e atiradas de qualquer modo à arca. Os próprios engates que retiramos de entre outras peças de ouro pareciam ter sido batidos com martelos, como para impedir a identificação.
Além de tudo isso, havia uma enorme quantidade de pesados ornamentos de ouro, quase duzentos brincos e anéis maciços; ricas correntes, em número de trinta, se bem me lembro; oitenta e três crucifixos muito grandes e pesados; cinco turíbulos de ouro de grande valor, uma maravilhosa poncheira de ouro, ornamentada com folhas de parreira ricamente cinzeladas e figuras báquicas; dois punhos de espada, caprichosamente gravados em relevo, e muitos outros objetos. menores, de que não me posso lembrar.
O peso desses excedia de trezentas e cinqüenta libras, bem pesadas; e nessa avaliação eu não incluí cento e noventa e sete soberbos relógios de ouro, três dos quais valiam, cada um, quinhentos dólares, no mínimo.
Muitos deles eram muito velhos e, para marcar o tempo, inúteis, pois o mecanismo sofrera, muito ou pouco, com a corrosão, mas eram todos ricamente cravejados de pedras, estando em estojos de alto preço.
Calculamos, naquela noite, que o inteiro conteúdo da arca valia um milhão e meio de dólares; e quando, depois, dispusemos dos berloques e jóias (retendo poucas para nosso uso próprio verificamos haver grandemente subestimado o tesouro. Ao concluir, por fim, nosso exame, diminuída de alguma intensa excitação daquelas horas, Legrand, que viu que eu morria de impaciência, esperando uma solução desse extraordinário enigma, passou a detalhar, completamente, todas as circunstâncias relacionadas com ele.
— Você se lembra — disse ele — da noite em que eu lhe entreguei o tosco desenho que fizera do scarabaeus. Você se recorda também, de que eu fiquei completamente zangado com você, de sua insistência de que meu desenho se assemelhava a uma caveira?
Quando você pela primeira vez fez essa afirmativa, pensei que estivesse brincando; mas depois recordei as manchas características nas costas do inseto e concordei comigo mesmo em que sua observação tinha, de fato, alguma base. Contudo, a zombaria de minhas capacidades gráficas me irritou, pois sou considerado um bom artista, portanto, quando você me restituiu o pedaço de pergaminho, estive a ponto de rasgá-lo e atirá-lo, com raiva, ao fogo.
— O pedaço de papel, quer dizer — disse eu.
— Não, ele era muito parecido com o papel e, a princípio supus que fosse isso, mas quando fui desenhar nele verifiquei que era um pedaço de pergaminho muito fino. Você dsse que estava inteiramente sujo? Bem, quando eu estava a amarrotá-lo meu olhar caiu sobre o esboço para que você estivera olhando e você pode imaginar meu espanto quando, de fato, percebi a figura de uma caveira no mesmo lugar, pareceu-me, em que eu desenho do escaravelho.
Por um momento fiquei demasiado atônito para pensar com clareza. Sabia que meu desenho era, em detalhes, muito diverso daquele, embora houvesse uma certa semelhança no contorno geral. Tomei então de uma vela e, sentando-me no outro canto do quarto, comecei a examinar o pergaminho mais perto.
Depois de virá-lo, vi meu próprio desenho no verso, tal o havia feito. Minha primeira idéia, então, foi a de simples surpresa pela similaridade de contorno realmente notável e pela sua singular coincidência envolvida no fato, para mim desconhecido, de que houvesse um crânio no outro lado do pergaminho, bem por trás de meu desenho do scarabaeur, e de que esse crânio, não só contorno, mas no tamanho, tão estreitamente se assemelhasse a meu desenho.
Digo que a similaridade dessa coincidência me deixou estupefato por algum tempo.
Tal é o efeito comum de coincidências tais. A mente luta para estabelecer uma relação, uma seqüência de causa e efeito e, sendo incapaz de fazê-lo, experimenta uma espécie de paralisia temporária. Mas quando voltei a mim desse estupor, irrompeu em mim uma convicção, pouco a pouco, que me espantou mais do que a coincidência. Comecei distintamente, positivamente, a recordar que não havia desenho algum sobre o pergaminho quando fiz o esboço do escaravelho.
Fiquei perfeitamente certo disso, porque me lembrava de ter virado primeiro um lado e depois o outro, à procura do lugar mais limpo. Se o crânio tivesse estado ali, sem dúvida eu não podia ter deixado de notá-lo. Ali estava , de fato, um mistério que achei impossível explicar; mas mesmo naquele primeiro momento, pareceu-me cintilar, fracamente, no mais íntimo e secreto recanto de minha inteligência a larva de uma concepção daquela verdade de que a ventura da noite passada nos trouxe magnífica demonstração. Ergui-me logo e, guardando o pergaminho com cuidado, transferi toda reflexão ulterior para quando estivesse só.
Quando você saiu, e quando Júpiter estava já bem adormecido, entreguei-me a uma investigação mais metódica do assunto. Em primeiro lugar, considerei a maneira pela qual o pergaminho veio cair em meu poder.
O lugar onde descobrimos o escaravelho era na costa do continente, a cerca de uma milha para leste da ilha, e apenas a curta distância acima da marca da maré alta.
Quando o agarrei ele me deu uma aguda picada, o que me fez deixá-lo cair. Júpiter com sua precaução costumeira, antes de agarrar o inseto que voara para o lado dele, procurou em volta uma folha, ou algo semelhante, com que apanhá-lo.
Foi nesse momento que seus olhos e também os meus, caíram sobre o pedaço de pergaminho, que então supus ser papel. Ele estava meio enterrado na areia com uma ponta aparecendo. Perto do lugar onde o encontramos , observei os restos do casco do que parecia ter sido uma baleeira de navio. As ruínas pareciam estar ali desde muito tempo, pois nas madeiras mal se podia vislumbrar a aparência de um bote.
Bem, Júpiter apanhou o pergaminho, envolveu nele o escaravelho e deu-mo. Logo depois voltamos para casa e, no caminho, encontramos o Tenente G***.
Mostrei-lhe o inseto e ele me pediu que o deixasse levá-lo ao forte.
Tendo o meu consentimento, colocou-o em seguida no bolso do colete, sem o pergaminho em que estivera enrolado e que eu continuara a ter na mão durante o tempo em que ele inspecionava o animal.
Talvez receasse que eu mudasse de idéia e achasse melhor assegurar-se da presa imediatamente; você sabe quão entusiasta ele é em todos os assuntos relacionados com a História Natural. Ao mesmo tempo, sem notar o que fazia, eu devo ter cocado o pergaminho em meu próprio bolso.
Você se lembra de que, quando fui à mesa para o fim de fazer um esboço do escaravelho, não encontrei papel onde era ele habitualmente guardado. Procurei na gaveta e também nada achei. Revistei os bolsos, esperando encontrar uma velha carta, quando minha mão caiu sobre o pergaminho. Pormenorizo assim o modo preciso pelo qual este caiu em meu poder porque as circunstâncias impressionaram com força especial.
(continua)
Observação do Autor
"O Escaravelho de Ouro" é um conto de aventura e mistério escrito por Edgar Allan Poe, publicado pela primeira vez em 1843. A história gira em torno de William Legrand, um homem que encontra um escaravelho dourado de aparência peculiar. Ele acredita que o escaravelho é a chave para encontrar um tesouro enterrado e, junto com seu servo Júpiter e seu amigo anônimo, narrador da história, embarca em uma busca emocionante.
Legrand decifra um criptograma que revela a localização do tesouro pirata escondido, e a aventura leva o trio por uma série de desafios e descobertas intrigantes. O conto explora temas de criptografia, obsessão e amizade, mostrando a genialidade de Poe na criação de uma atmosfera de suspense e intriga.