No cemitério da Saudade

  • Gênero: Suspense | Público Infantil

No dia que meu tio morreu, em meio àquela tristeza, me aconteceu um fato hilário. É claro que não ri naquele momento. Porque só se pode rir das coisas ruins depois que elas já aconteceram há muito tempo e a olhamos sob a ótica do tempo que tudo acalma, tudo aclara, tudo ajeita.

Mas voltemos à morte do meu tio Heraldo. Ele foi como um segundo pai pra mim, me acolhendo em sua casa quando vim, ainda um tatu, para a capital. Então sua mor­te foi muito triste porque prematura. Ainda podia estar aí conosco, contando causos de pescaria, que era o seu forte.

Em meio à dor da despedida, velório, etc., chegou a hora do sepultamento. Despedimo-nos dele e eu voltei para o estacionamento a fim de buscar o carro, porque meu pai, triste com a morte do irmão e fraco das pernas, teria muita dificuldade em fazer o percurso de volta a pé.

Ora, nunca fui uma boa observadora. Nessa tarde, piorou, pois estava triste por causa do óbito. Mas eu sabia onde o carro estava e fui.

E fui, fui, subi, passei por catacumbas que outrora foram brancas ou negras, rachadas, algumas novas, ou­tras restauradas. Desci, desci, subi, virei, virei de novo e… Descobri-me perdida no Cemitério da Saudade, no cora­ção de Belo Horizonte!

Um arrepio perpassou meu corpo. Só se viam ca­tacumbas, aqui e acolá. Eu chegara numa parte onde as lápides estavam em péssimo estado, rachadas em sua maioria. Exibiam rachaduras imensas, gretas por onde poder-se-ia facilmente passar…. Sacudi a cabeça para lim­par os pensamentos tenebrosos que ameaçavam vir. Nem uma viv’alma, nem viva nem morta. Aliás, o que eu me­nos queria era ver alguma alma penada, moradora da­quele cemitério. Lembrei-me da minha finada mãe que dizia: “Não precisa temer os mortos, e sim os vivos”.

Nesse instante, ouço um barulho por trás da cata­cumba mais próxima.

– Rec, rec, rec…

O barulho era de algo arranhando ou sendo arrasta­do. E continuava:

– Rec, rec, rec…

Meu coração saltou e queria sair pela boca afora. Os pelos do meu corpo se eriçaram e um vento rasteiro sibi­lou, balançando as folhas e arrastando gravetos no chão. Minha garganta secou, repentinamente, minhas pernas pareciam chumbadas ao chão. A coragem me abandonou e comecei a rezar, mentalmente:

– Meu Deus, meu Deus, me ajude! Me ajude!

E de novo o barulho:

– Rec, rec, rec…

Parecia mais próximo de mim. Senti uma quentura esquisita, um princípio de pânico. Pensei: vou fugir!

Mas minhas pernas, feito gelatina, não me obede­ciam. Então, preparei-me para o impreparável: deparar com o que vinha se arrastando por detrás da imensa ca­tacumba que outrora fora branca, mas que agora exibia gretas, ramos e tijolos desgastados pelo tempo. O tempo exibia nuvens cinzas, prenúncio de chuva, o que torna­va o ambiente mais carregado e assustador. Senti um frio inesperado, arrepios na nuca e a certeza de que meu fim estava próximo!

– A senhora precisa de alguma coisa?

Dei um pulo ao ouvir a pergunta, próxima ao meu ouvido, feita por um homem franzino, de pele amarelada, roupa meio surrada que surgira de trás da lápide. Era um funcionário do cemitério que me interpelava. Deve ter visto a minha cara de pavor olhando em sua direção, sem saber que eu o julgara uma alma penada que vinha me buscar.

– O esta…esta…estacionamento! – gaguejei.

Ele sorriu, dentes amarelados de fumo, talvez, en­costando na enxada com que limpava por entremeio os túmulos e produzia aquele barulho de coisa arranhada que quase me levara às raias da loucura de tanto medo.

– É só subir direto e virar à direita que a senhora chega lá.

Olhei pra frente e realmente havia uma placa lá adiante. Virei para agradecê-lo, mas o homem sumira, como que por encanto!

Como milagre, minhas pernas me obedeceram. Feito um raio, sem olhar pra trás, coração batendo des­controladamente, subi e desci conforme indicado, só para descobrir que familiares e amigos, de volta antes de mim, já iam sair à cata daquela que se perdera no Cemitério da Saudade, que nem é tão grande assim.

Uma coisa é certa, da próxima vez faço como o Joãozinho da história: marcarei o chão para não me per­der num lugar tão inóspito como a cidade dos mortos!

 

Ilma Pereira – in “O afilhado do capeta e outros contos” – 2020.