O Barqueiro do Mar de Nuvens

  • Gênero: Fantasia | Público Juvenil

Este conto é um preludio do livro A Filha do Tempo e os Descendentes de Etherion, disponível no Wattpad.

A Brisa refrescante era um alento nas noites solitárias. A vara de pescar estava encaixada no pequeno bote. Era apenas uma mera distração que fracassava em espantar o tédio. Bem que sua mãe lhe disse que ser um barqueiro de Urano não saciaria sua sede de aventuras.

Mas ali estava ele, parado sobre as nuvens na esperança de que algo anormal acontecesse. Foi quando uma anomalia mágica girou rapidamente em sua frente e cuspiu a dracma no bote, para sumir em seguida.

Enfim, uma missão.

Primeiro suas sobrancelhas se ergueram e o coração disparou. Afinal, faziam cem anos desde o último chamado. Depois sua expressão se fechou enquanto se curvava para analisar a moeda. A pegou na mão e a desconfiança de seus olhos foi substituída por curiosidade. A dracma exibia a face de seu primo distante, o rei olimpiano. E do outro lado lado via-se um palácio construído sobre um monte. Um rei de ouro. Aquilo valia pelo menos cem príncipes de prata.

O barqueiro fez questão de morder a moeda mas hesitou quando a aproximou da boca. O cheiro era inconfundível, ouro puro do Lago Pontos. Era genuína.

Vários sentimentos o tomaram. Primeiro saudades de casa. Em seguida ódio. Ódio de seu irmão e do Conselho Olimpiano, que ficaram do lado de Caronte e de suas artimanhas. A tristeza veio em seguida, acompanhada de perto pela solidão. Afinal, haviam se passado alguns milênios desde que fora expulso de casa.

A pergunta que agora martelava em sua mente era se deveria ou não aceitar o pagamento. Graças à Noite ele não era obrigado a fazer tudo de acordo com as regras de seu tio. Que o Abismo o livrasse disso.

Ele pensou por alguns momentos e decidiu recusar. Mordeu o lábio inferior e coçou a cabeça. Olhou de um lado para o outro. Analisou a paisagem interminável do Mar de Nuvens. Nem os peixes voadores passeavam por ali. Nenhum cavaleiro de dragão com a ambição de desbravar os céus, ou um celestial vagando preguiçosamente. Por quilômetros e quilômetros ele estava como ficava na maioria das décadas. Completamente sozinho.

Mas não foi apenas o tédio e a solidão que o corroía. Sua curiosidade chegava a causar coceira em seus braços. O barqueiro suspirou e sorriu. Depois alisou a roupa e limpou a garganta. Guardando a dracma de ouro no bolso, ele recitou as palavras do ritual:

— Aceito o seu pagamento.

Passou a mão pelo rosto e suspirou. Não pela primeira vez ele pensou que aquela frase tirava toda a graça de ser um barqueiro dos céus. Criatividade não era o forte de quem criou aquele feitiço. Nada de Linguagem Primitiva, conjuramento arcano, língua celestial, demótico, runas ou hieróglifos. Apenas uma frase sem sentido.

Alguns momentos depois um pequeno círculo dourado começou a rodar na frente do bote. Era igual ao primeiro que trouxe a moeda. O círculo foi aumentando de tamanho. Logo o seu tamanho era duas vezes maior que o barqueiro e seu transporte. O interior do círculo, ainda transparente, piscou e uma nova paisagem se abriu.

Através da passagem o Olho de Jade brilhava em uma paisagem de montanhas florestadas com os picos cobertos de neve. “Não é o Olho de Jade”, ele pensou. Os raios que vinham daquela estrela eram totalmente amarelos, ao contrário dos amarelo esverdeados da estrela que iluminava sua dimensão. Não, aquele era o sol de Midgard. Era o reino dos homens. Águias voavam preguiçosas e bodes pulavam de um lado para o outro na montanha sem se preocupar com a altitude (ou com a gravidade).

Bem em frente ao círculo um garoto o esperava. Uma das sobrancelhas do barqueiro se ergueu. Ele posicionou o barco rente ao círculo. O garoto acenou com a cabeça e pulou do monte onde estava para o barco. O barqueiro se surpreendeu que o recém chegado não olhou para trás nenhuma vez enquanto guiava a condução para longe do vórtice que se fechava.

— Primeira vez em Etherion? — perguntou ao passageiro.

O garoto olhava para os lados como se tentasse absorver tudo que via de uma vez só. Ele ficou tanto tempo em silêncio que o barqueiro tinha desistido da comunicação, quando a resposta veio.

— É isso que pretendo descobrir.

Não era bem uma resposta, ou a resposta que o barqueiro esperava. Mas a perspectiva de conversar com outro ser vivo fez com que abandonasse qualquer emoção que não fosse a curiosidade.

— E como pretende descobrir isso, senhor…?

Os olhos negros do garoto se voltaram para o barqueiro. Seus cabelos presos em pequenas tranças chacoalharam com o movimento. Ele ergueu levemente as sobrancelhas e levou a mão ao queixo. O barqueiro sentiu que era analisado em todo o seu ser, e apesar de incomodado, a sensação de desconforto lhe trouxe ao mesmo tempo excitação.

“Pode ser um garoto estranho, mas é melhor do que estar sozinho.”

— Você pode desfazer essa ilusão. Não sei porque quer que eu ache que você é um ghoul dos desertos, mas sua aura não tem nenhuma intenção assassina.

O barqueiro engasgou, ficando sem fala. Virou-se para a frente enquanto remava pelas nuvens do céu etheriano. Há três mil anos exercia a função de barqueiro dos céus, e nenhuma criatura conseguiu ver além de sua ilusão. E as regras eram claras. Só haviam dois caminhos quando alguém percebia a ilusão de um barqueiro.

Conduzindo o barco ele mudou sutilmente a direção. Poucos centímetros para a esquerda. O garoto suspirou, passando a mão pelo rosto.

— Não me leve a mal, mas também não estou interessado em ser jogado no Ginungagap. Dizem que o Abismo do Nada não é apropriado nesta época do ano.

Segurando o remo com força e trincando os dentes o barqueiro se virou. A ilusão se desfez e seu corpo musculoso se revelou. O capuz e o manto sumiram, revelando uma cabeça careca e olhos negros com chamas dentro. Uma cicatriz atravessava seu rosto na diagonal. Ele rodou o remo, que se transformou em um bastão pegando fogo.

— Você sabe muito sobre os barqueiros, para um mortal comum de Midgard.

O garoto estava de pé. Passou às mãos pelos cabelos encaracolados. Então esticou a mão para o lado e ela sumiu no espaço. Logo ele a tirou segurando uma espada dourada.

Os olhos do barqueiro se arregalaram. Ele deu um passo para trás. O que ele não daria para que sua vida pacata e tediosa nunca o tivesse abandonado.

— Você acessou um bolsão entre mundos. Só quem pode fazer isso é…

Cortando o ar à sua frente com a espada o garoto falou quase baixo demais para ser ouvido.

— Dança das chamas estelares. Extinção solar!

A lâmina da espada foi tomada por chamas douradas. Os olhos do garoto brilharam. Sua aura se elevou. Uma aura de fogo que contrastava com sua pele negra. Era uma presença avassaladora. E o barqueiro já esteve frente dos maiores seres do universo conhecido.

Dando um sorriso torto e desprovido de humor o menino apontou a espada para ele. O calor começava a ser insuportável até para ele, que era um elemental do fogo.

— Acho que o meu fogo é maior que o seu, Corante filho de Nix, filho de Érebo. Então que tal fazermos um acordo?

Os olhos de Corante se estreitaram e suas chamas amarelas se tornaram vermelhas.

— Quer ameaçar um barqueiro dos céus aqui, acima dos céus? Vá em frente! Se conseguir me derrotar a magia do barco se acaba e você estará morto por uma criatura do Mar de Nuvens antes de iniciar sua queda pelos céus de Etherion!

O sorriso não deixou o rosto do garoto.

— Não me tome por estúpido. Acha que eu viria aqui se não soubesse como me virar?

A raiva do garoto era palpável. E a intensidade daquele poder sobre o fogo… haviam rumores, lendas sobre uma criança abençoada com A Primeira Chama. Mas devia estar morta. Não no barco de Corante.

— Sobre o acordo, Corante?

Um rugido subiu pela garganta do barqueiro.

— O que você quer?

— Quero que me diga se foi você quem levou uma criança para Midgard há quatorze anos.

A risada rouca de Corante escapou de sua boca antes que ele pudesse controlá-la.

— Essa é boa. Nem sei dizer a quanto tempo não tenho um cliente.

Um risco cortou o ar e Corante gritou. A espada se moveu tão rápido que ele não viu. Abaixando o olhar ele viu fumaça saindo de seu bastão. Todas as chamas se apagaram e um pequeno corte jazia próximo à sua mão. O passageiro deu um passo em sua direção com a espada abaixada. Ele não tinha medo, percebeu Corante. Apenas raiva e determinação. E mesmo que não tivesse todo aquele poder, o barqueiro já havia lutado em guerras o suficiente para saber que esse era o tipo de pessoas mais perigosas. Eles não temiam nada, e isso os tornava perigosamente mortais.

Corante ergueu as mãos com as palmas voltadas para o passageiro.

— Calma rapaz, calma. Você veio de Midgard, então deve saber que o tempo corre diferente aqui em Etherion. Ainda mais depois que o Reino do Tempo foi destruído.

Uma expressão de confusão tomou conta do garoto. Corante viu que seu trunfo para sair daquela situação seria o que seu inimigo não tinha. Informação.

Limpando a garganta ele apontou para o Ocidente.

— Seis meses de viagem naquela direção a pé. Você encontrará as Ruínas do Tempo. O que restou da Guerra do Tempo. Lá era o cerne do estudo e do domínio do tempo/espaço.

O garoto levou uma mão ao queixo.

— E o povo de lá?

— Extinto — respondeu o barqueiro dando de ombros. — Destruído. Não sei ao certo. Intrigas do Olimpo não me interessam mais.

Quando o menino ergueu uma sobrancelha, Caronte percebeu que ele viu através da sua mentira. “Tudo bem”, ele pensou. “Não voltarei a vê-lo depois que a viagem acabar.

— Então não há como você saber, já que o tempo não flui igual nas duas dimensões.

— E enquanto uma Filha do Tempo não reerguer a cidade, e se sentar no Trono do Perpétuo, Etherion está destinada a ser essa bagunça temporal, destoando das outras dimensões.

O garoto pensou por alguns instantes. Depois olhou o carteiro.

— Você se lembra de ter levado um bebê para Midgard? Um bebê negro, como eu.

Corante olhou para a criança, seu domínio perfeito sobre o fogo. Um fogo que era mais poderoso que o dele e de qualquer outro mago que ele tenha visto. Não, ele não era um mago elemental. Então só poderia ser… Isso! Um estalo iluminou os pensamentos da mente cansada do barqueiro. Ele olhou para aquele garoto, pesando como devia contar. Respirando fundo ele se sentou. Recebeu um olhar questionador. Apontou um dedo para o rapaz e respondeu depois de um suspiro.

— O barco é encantado, garoto. Não preciso necessariamente remar, só nos primeiros instantes quando descubro para onde estou indo. E como você ainda não me deu um destino, estou atado à você até que o forneça. Essas são as regras.

O menino hesitou, mas se sentou de frente para Corante. Sua chamas sumiram, o que o barqueiro agradeceu aos deuses. Nem queria imaginar perder um salário por causa de danos de queimaduras no barco.

Corante sabia que o menino esperava sua resposta. Mas se ele falasse o que sabia, podia atrair a ira do Olimpo. Não que Zeus ligasse para o que acontecia no longínquo Continente Eta. Mas as notícias voam pelo vento. E o rei olimpiano era um dos poucos que ouviam os ventos. Por outro lado, não queria saber o que mais aquela espada que estava agora apoiada nos joelhos do garoto podia cortar.

O menino olhava a paisagem dos montes etianos. Um ou outro pássaro fênix passeava no Além Céu, os céus acima do Mar de Nuvens. O ar era rarefeito demais ali para respirar. Poucas criaturas sobreviviam ali. Apenas a magia do barco permitia ao barqueiro e aos seus passageiros respirar sem dificuldades.

Mesmo não querendo as imagens vieram em sua mente. Os pais do garoto…

Algo se chocou contra o barco. Corante se segurou e viu uma sombra passar por debaixo deles. Ele praguejou. Ótima hora para aquilo acontecer.

— Que raios está acontecendo? — o garoto perguntou. Ele tinha caído.

— São sereias. Fique abaixado.

— Você tá zoando. Sereias no céu?

Corante praguejou outra vez quando outra sacudida quase o jogou para fora.

— Não sei como são as coisas em Midgard, garoto. Aqui as sereias são elementares. Vivem em todos os elementos e para-elementos. Então essas são sereias de nuvens. Ou dos ventos, os dois tipos podem nadar no Mar de Nuvens.

O garoto se colocou em pé e segurou sua espada.

— E como lutamos com elas?

O barqueiro olhou para ele como se fosse louco. Antes que qualquer um dos dois falasse mais alguma coisa um rugido fez as nuvens do Mar de Nuvens tremerem. Corante engoliu em seco.

— Seu rosto ficou branco. Isso é ruim, não é? — perguntou o garoto.

O condutor apenas balançou a cabeça.

— Garoto, qual seu nome.

O moreno hesitou.

— Rod. Me chame de Rod.

— Muito bem, Rod. É melhor saber o nome de quem vai morrer ao meu lado. Vamos enfrentar uma sereia-dragão. É um monstro tão raro que a maioria das pessoas considera uma lenda.

— Lenda? Monstro? Vejo que muitas coisas estão erradas ao meu respeito — falou uma voz angelical.

Os dois viraram o rosto para o lado de onde viera a voz. Corante rezou a qualquer deus que estivesse de plantão. Até sua família, que se julgava divina, serviria.

Uma mulher linda os olhava. Usava duas conchas como biquíni e, apesar de ter saído do Mar de Nuvens onde não havia água, os cabelos escuros estavam molhados. Os olhos verdes da sereia brilharam e Corante tapou os olhos do garoto.

— Pare de se debater — rosnou Corante. — Os olhos das sereias são tão mortais quanto sua voz. E no caso das sereias dragão só irão te distrair.

Rod parou de se debater e o barqueiro sentiu ele tremer quando falou:

— Distrair do quê?

O filho de Nix virou o garoto e apontou com a mão, soltando os olhos dele. O menino deu um passo para trás com a boca aberta e os olhos arregalados, segurando a espada na frente do corpo.

— Pelos 14 tronos do Olimpo, o que é isso?

Corante estalou a língua.

— Aquela é a cauda da sereia.

Virando bruscamente o rosto na direção de Corante o garoto gritou.

— Mas aquilo é um dragão chinês!

Corante deu de ombros olhando para o dragão verde. Os chifres se curvavam para trás e as presas se projetavam ameaçadoras enquanto um rosnado grave saia da garganta multicolorida.

— Não sei o que é um chinês, mas se são tão feios quanto dragões, não quero conhecê-los. Você é um usuário do fogo. Sabe fazer uma defensa plank?

Rod olhou para trás e um pouco da cor de seu rosto se apagou.

— Não sei o que é isso. E a sereia tem um arpão!

Corante praguejou e xingou todos os deuses que conhecia, incluindo seus parentes metidos a divinos. Ele bateu as palmas das mãos uma nas outras e se abaixou, batendo as duas no barco.

— Defesa Plank! Redoma de chamas!

O barco foi envolvido por uma parede de chamas. Um grito descomunal surgiu da boca da parte sereia do monstro, seguido por um urro bestial da parte dragão. O barco começou a ser sacudido. Corante praguejou novamente. O garoto olhava para ele.

— Isso vai detê-los?

O barqueiro estalou a língua.

— Vai atrasá-los. Mas precisamos de um plano de resposta.

O menino se ergueu.

— Somos dois. Se cada um lutar com uma parte, podemos vencer.

“Ah, o otimismo dos jovens.”

— Muito bem criança. Tem algo de warg em você? Sabe fazer uma invocação?

O garoto hesitou.

— Já invoquei uma salamandra.

Corante ergueu as sobrancelhas.

— Leva-se anos para dominar algo assim.

Rod apenas deu de ombros. Outra sacudida. Corante sentia seu poder vacilar. Não era hora de questionar sua sorte.

“Se ele conseguiu invocar uma salamandra, quem sabe invoca algo que possa enfrentar essa coisa.”

Era a única chance deles. O filhote era poderoso, ele percebeu quando ele chegou. Corante chegou a pensar que era filho de um dos Primeiros, ou até dos deuses do Reikai. Pela emanação da aura não era um mortal comum. Achou que fosse um semideus. Mas quando ele disse sobre o bebê negro… Por Theioles, senhor dos homens. O barqueiro se lembrava. O garoto não fazia ideia de quem era. Do que era. Mas queria saber. E Corante podia ao menos guiá-lo na direção certa, se ele fosse poderoso o suficiente para invocar uma besta poderosa. Só assim conseguiriam sair vivos daquela situação.

— Muito bem filhote. Concentre-se o máximo que puder. Não chame a salamandra, ela incendiaria o barco e morreria conosco. Vá mais fundo no Plano Bestial. Encontre algo poderoso e o traga para cá.

O menino fechou os olhos. Os constantes ataques contra a redoma de chamas atrapalhavam a concentração, mas ele esvaziou a mente e sentiu sua essência mergulhar. Ela passou por outro plano e chegou à dimensão onde a salamandra que o ajudou habitava. Sentiu o chamado pelo vínculo mas apenas enviou um alô. A resposta veio carregada de melancolia e tristeza, além de uma forte incompreensão por ele estar ali e não a chamar.

“Droga, talvez eu me arrependa disso.”

Ignorando o que Corante falou ele convocou Bil, a salamandra.

Depois ele continuou mais fundo e foi à uma dimensão mais profunda. Emitiu o chamado e aguardou. A resposta pareceu demorar uma era, mas veio. Algo de imenso poder se aproximou. Diferente do que lhe alertaram, não sentiu sede de sangue, ódio ou coisa parecida. Apenas curiosidade. Aquilo se aproximou e um estranho sentimento de reconhecimento tomou o garoto. Pelo fino elo que os ligava ainda sem um vínculo, uma reação de surpresa tomou conta do garoto.

“Mestre”, foi a palavra que ele sentiu emanar da criatura antes que ela o aceitasse. Então o vínculo se formou. E sua essência viajou de volta ao seu corpo.

Corante viu quando os olhos do garoto se abriram. Percebeu imediatamente que algo estava diferente nele. Engoliu em seco. Se ele tinha conseguido um vínculo poderoso, não sabia se seu maior problema continuava sendo a sereia-dragão.

— Se conseguiu algo é hora de mostrar. Minha força está por um fio — falou o barqueiro ofegante.

O menino se ergueu. Pegou uma adaga do cinto e cortou a mão.

— Desfaça a barreira.

As costas de Corante estavam ensopadas de suor. Mas quando ouviu a frieza na voz do garoto sentiu uma gota de suor gelada descer por suas costas. Ele hesitou por um tempo e acabou suspirando.

— Que seja — resmungou encerrando a barreira e sentou respirando ofegante.

A sereia interrompeu seu ataque e sorriu, seu rosto antes lindo agora transfigurado diabolicamente. O dragão começou a rugir de uma maneira estranha. Demorou para Corante entender que ele estava rindo.

— Então desistiu dessa resistência ridícula?

— Não que eu tivesse escolha — falou dando de ombros. Seu peito subia com dificuldade.

Os lados sereia e dragão do monstro lamberam os beiços.

— Melhor assim. Prometo matá-los bem rápido.

— Fale por você — retrucou o dragão dançando de uma maneira estranha.

Só quando se aproximou mais do barco que viu o sangue escorrendo da mão do garoto. Seu sorriso se desfez.

— O que você…

Rod se abaixou e fez um desenho na poça de sangue aos seus pés.

— Invocação bestial. Eu os convoco vínculos do meu sangue! Salamandra do fogo! Fênix da Chama Primordial!

Corante caiu para trás no barco. Sua boca estava aberta e seus olhos arregalados. Seu coração batia descontroladamente. O sangue no barco brilhou quando duas sombras saíram dele. A primeira pouso no barco e o garoto subiu nela. O corpo reptiliano era formado por lava endurecida, mas alguns pontos mostravam veios avermelhados incandescentes. A criatura rugiu e lançou uma torrente de chamas para o alto. O barqueiro não acreditou.

— Uma salamandra adulta… Pensei que você tinha invocado um filhote…

Mas o que realmente deixou o olímpico pasmo era o ser que batia as asas flamejantes acima deles. O ser que fez com que a sereia apontasse o arpão e recuasse alguns metros mostrando as presas. O ser que fez com que o dragão urrasse em desafio.

— Uma fênix…

O menino não pareceu ouvir as lamúrias de Corante. Unindo as mãos ele as ergueu para a fênix.

— Flecha rasante da besta fênix!

O magnífico animal disparou uma torrente de chamas em forma de flecha na direção da sereia. A criatura gritou quando foi atingida. O dragão urrou e atacou o barco. A salamandra girou e usou seu rabo para rechaçar o ataque. Acertou em cheio a cara do monstro.

Corante respirou fundo e levantou. O ex-olimpiano rodou seu bastão sobre a cabeça. A arma se transformou em lança.

— Lança Bumerangue do reino das chamas!

O barqueiro lançou sua arma girando contra o dragão. Ela cortou o pescoço da criatura na ida e também quando voltou para suas mãos. Sangue prateado escorreu quando a fera rugiu.

“Droga de sangue semidivino. Não podia ser um monstro comum?”

— Garoto, temos que tentar fugir. O sangue prateado significa que o monstro quase toca o divino em nível de poder.

Rod ignorou Corante.

A salamandra pulou e começou a correr sobre as nuvens, deixando a sereia perplexa. Ela gritou de ódio com a cara chamuscada e partiu em direção a eles. Espada e arpão se encontraram, fazendo faíscas saltarem. A sereia desviou e usou as garras para atacar a salamandra. Rod e o animal se esquivaram, mas as garras da sereia rasparam o pescoço da salamandra, que ganiu.

Ao ver o sangue da Salamandra escorrer, Rod gritou:

— Volte Bil! Volte para o barco!

Quando Bil voltou e correu, a sereia tentou atacar. Rod virou na hora e cortou a mão da sereia. O monstro gritou de dor. Ela ia atacar com o arpão mas a fênix deu um rasante e cortou as costas da sereia com as garras. O berro do monstro gelou a espinha dos guerreiros.

Eles se reagruparam. A salamandra respirava rápido demais. A fênix voava em volta deles. Rod respirava rápido como a salamandra.

Corante desviou de uma torrente de chamas do dragão e olhou para o garoto.

“Ele não tem controle ainda. Talvez… talvez seja o fato de estar aqui. Etherion é feita de éter, diferente de Midgard. Ele não consegue dominar o poder, o que faz com que os vínculos não possam dar seu máximo, pois a ligação está confusa.”

Corante sabia que precisavam destruir os dois lados da criatura. Mas o poder de que dispunham não era suficiente. E a sereia dragão não esperaria que o menino ganhasse experiência.

Toda a vida do barqueiro passou por sua mente. Ele e seu irmão Caronte correndo pelos corredores do castelo de sua mãe, Nix. Seu pai Érebo ensinado os dois a controlar seu poderes. A oferta de seu primo Hades para trabalharem no rio Stix. A armação de seu irmão. O julgamento dos olimpianos. A oferta de seu tio Urano para ser um barqueiro no Mar de Nuvens.

Olhou então para Rod. A salamandra e a fênix atacavam com sopros de chamas as duas partes do monstro. O garoto estava esgotado. Um sorriso se formou no rosto de Corante.

“Não vou sair dessa vivo. Mas posso honrar a promessa de proteger o garoto com minha vida. Não devo nada para meu primo idiota, mas o moleque tem fibra. Posso garantir que ele tenha tempo de descobrir o que tanto procura.”

Enquanto o monstro se recuperava, o barqueiro tirou pergaminho e pena do bolsão entre mundos. Escreveu umas palavras e pegou o sangue do garoto do chão, passando no papel. Ele deu um sorriso torto para o garoto que o encarava sem entender.

— Diga onde você mora filhote de Deus, em Etherion?

Rod franziu as sobrancelhas.

— Midgard. Mas você já sabe. Porque…

O pergaminho brilhou e um laço dourado o ligou ao peito de Rod.

Corante piscou para ele e pulou no Mar de Nuvens. O barco começou a se mover sozinho. O menino quase caiu, arregalando os olhos.

— O que você está fazendo?

Corante o ignorou e correu na direção da sereia. Seu corpo brilhou em chamas e o poder se elevou muito acima do que Rod tinha visto. A fênix deu um kiai triste, escoltando o barco.

— O que você vai fazer? Pare! — gritava Rod em vão.

O dragão pressentiu o aumento de poder e deixou de perseguir o barco para ir de encontro com sua metade. Corante cronometrou o tempo exato. A sereia tentava fugir mas estava ferida. O dragão se aproximava desesperado. Só quando enfiou a lança na barriga da sereia e o dragão mordeu seu braço que ele gritou:

— Fôlego final!

A aura de fogo de Corante mudou para a cor prata. Em seguida mudou para dourado. O barqueiro gargalhou.

“Que ironia”, ele pensou. “Não é que alcancei a divindade ao me sacrificar? Regras idiotas desses deuses idiotas!”

E pela primeira vez o Mar de Nuvens ardeu. As chamas douradas se espalharam por todas a direções. A sereia e o dragão gritaram de dor juntos e então as vozes se silenciaram.

O impacto chegou a Rod quando um portal luminoso se abriu. Antes que a paisagem do outro lado ficasse visível a onda de poder alcançou o barco. Rod caiu, bateu a cabeça e não viu mais nada.

***

— Acorde filho do fogo. Acorde.

Os sentidos de Rod foram voltando aos poucos. O cheiro adocicado de Etherion havia sumido. Pequenas ondas molhavam seus dedos de tempo em tempo. Algo o cutucou gentilmente. Ele abriu os olhos e viu Bil o olhar preocupado.

— Hey Bil, como está amigo?

Bil lambeu o rosto do garoto. Foi como se uma licha fervente passasse por sua pele. Mas não aconteceu nada. Nunca acontecia quando Bil o lambia.

Ele se sentou. A fênix estava próxima. Rod podia jurar que alívio tomou as feições do lindo animal.

— O que aconteceu? Onde está Corante?

Ele olhou em volta. Estava no centro de treinamento para semideuses. No lago do centro. Olhou em volta e viu um barco de madeira ao seu lado. Era uma imitação de 30 centímetros do barco de Corante.

— O barqueiro se sacrificou para que você chegasse até aqui. Pelo que entendi, passou o barco para você — falou a fênix.

Sim, havia um pergaminho ao lado do barco. Rod balançou a cabeça. Foi tomado de imensa tristeza. Porque o barqueiro fez aquilo? Porquê se sacrificou por ele?

— Nós temos que ir, filho do fogo. É mais difícil para nós permanecermos em Midgard depois de gastarmos tanta energia lutando.

A garganta de Rod se fechou. Ele não queria que os dois fossem. Bil cutucou Rod. Ele passou a mão na cabeça do animal.

— Também vou sentir sua falta amigão — ele olhou para a fênix. — E a sua também. Obrigado por me ajudar.

A fênix abaixou a cabeça.

— Sempre estarei disposto a atender um filho do fogo.

Rod não sabia ao que ele se referia ao chamá-lo de filho do fogo. Mas agradeceu com a cabeça.

— Meus amigos me chamam de Rod. Ficaria feliz se me chamasse assim.

A criatura pareceu sorrir.

— Está certo Rod. Quando precisar, chame por mim. Ikki responderá.

Rod arqueou as sobrancelhas, mas Bil e Ikki brilharam e desapareceram.

“Uma fênix com nome Ikki. Certo, os pais dela viram muito Cavaleiros do Zodíaco.”

Rod pegou o pergaminho e leu. Ikki estava certo. Ele agora era dono do barco. Ele esperava que não fosse obrigado a trabalhar como barqueiro no Mar de Nuvens. Bastava para ele de sereias dragão. Ele virou o pergaminho e franziu as sobrancelhas.

“Procure pelas filhas do Tempo, filho de Apolo”

Rod não sabia o que era uma filha do tempo. Mas sabia quem era Apolo. Por isso o nome dele veio a ele durante as lutas do mês anterior.

Era pior do que imaginava. Pelo que sabia, Apólo tinha sumido do Olimpo. Rod amassou o papel e jogou no lago. Olhou para o barco e resolveu guarda-lo, para honrar Corante.

Sentindo que não tinha conseguido nada com aquelas informações, e frustrado por ter sido responsável pela morte do barqueiro, ele começou a andar em direção de sua casa. Precisava sair dali antes que os outros semideuses o vissem e achassem que ele estava voltando. Preferia encarar outra sereia-dragão em vez de voltar.

Certo, talvez nem tanto. Mas se lhe oferecessem as opções ele ficaria tentado. Talvez.

Enquanto caminhava, ele pensava mas filhas do tempo. O que será que Corante queria dizer? Como ele as encontraria?

Essa seria mais uma das perguntas que ele nunca saberia a resposta. Dando de ombros ele continuou caminhando. Melhor deixar para lá. Essas filhas do tempo não deviam nem existir.