Capoeira, racismo e os verdadeiros monstros

  • Gênero: Fantasia | Público Juvenil

A mão em seu ombro machucava. Se ele mexesse, tentando se soltar, o cara apertava com mais força. Todos no supermercado olhavam para ele, que tentava engolir as lágrimas de vergonha. Foi uma das coisas que seu pai lhe ensinou antes de ir embora. Nunca dar o prazer de o verem chorando. Isso só fortalecia o ego das pessoas que o perseguiam.

Ele segurou o colar, passando a mão pela pena azul do pingente. Não podia usá-lo na frente das pessoas, disse sua mãe. Principalmente pessoas brancas. Tinha que manter o segredo da família. Seu pai lhe dizia para lutar contra os que os que o agrediam. Talvez por isso ele tivesse ido embora, porque a mãe era contra.

Michael tentaria o jeito da mãe. Ela quem tinha ficado para cuidar dele, no final das contas. E ele precisava se livrar daquela situação, já que ela esperava na cama pela sua volta.

Olhando por sobre o ombro, ele encarou o segurança do supermercado.

— Moço, eu não fiz nada — falou Michael pela décima vez.

O segurança riu. Michael não gostou da risada dele.

— Isso é o que vocês, trombadinhas, sempre falam. Mas peguei você roubando a bolacha. Vai ter o que merece neguinho.

Ele enfatizou isso dando um empurrão no garoto. Michael caiu, raspando o braço em algo na prateleira. Quando olhou o sangue que manchava a manga da camiseta, uma das lágrimas acabou caindo.

— Vamos. De pé ladrãozinho.

Michael ficou de pé, já que seu outro braço seria arrancado pelo tranco que o segurança lhe deu. As pessoas apenas assistiam ao show. Algumas sussurravam, balançando a cabeça. Outras, riam, como se o que acontecia fosse engraçado. Ele não estava achando nada engraçado.

Eles atravessaram a seção de congelados, chegando a uma porta. O menino leu Apenas pessoal autorizado. O segurança olhou para um rapaz que estava repondo estoque de Yakult.

— Aí, Ricardo — chamou o segurança. — Fica de olho nas coisas pra mim? Preciso dar um corretivo nesse pivete.

O tal Ricardo olhou para Michael. Devia ter uns dezesseis anos, só quatro a mais que o menino. Quando seus olhos se encontraram, Michael notou algo como pena tomar conta do rosto do garoto mais velho.

— Precisa mesmo disso João?

João, o segurança, estreitou os olhos. De branco ficou vermelho.

— Ele roubou uma bolacha.

Percebendo a abertura, Michael tentou mais uma vez.

— Eu comprei a bolacha. Te mostrei o recibo. Você amassou e jogou fora, e…

Um tabefe na nuca fez o garoto se calar. A voz da sua mãe soou em sua mente. Sempre abaixar a cabeça. Era o melhor jeito das coisas não piorarem para pessoas como eles. Pessoas negras.

Michael não entendia porque as coisas eram assim. Porque as pessoas olhavam feio para sua mãe e ele, dependendo da loja onde entravam. Porque seguranças sempre o seguiam nos comércios. Quando começou a reparar isso, percebeu que não acontecia com seus amigos. Pelo menos com os que eram brancos.

Ele segurou a pena do colar novamente. Uma energia inquietante dentro dele gritava para sair. O rosto de seu pai apareceu em sua mente. Lute filho, ele dizia sempre. Lute contra a injustiça que esse ou qualquer mundo tente jogar sobre você.

Lutar. Ele poderia lutar. Mas isso magoaria sua mãe. Poderiam descontar nela. E ela não tinha como se defender. Não depois que a doença piorou.

Ele olhou para Ricardo. Talvez ele chamasse o gerente. Ou outra pessoa que pudesse ajudar.

A esperança de conseguir ajuda morreu quando Ricardo virou o rosto para o lado, envergonhado. Algo se quebrou em Michael quando o empacotador falou em voz baixa:

— Beleza João. Eu seguro as pontas por aqui.

O segurança deu um sorriso maldoso. Abriu a porta e empurrou Michael para dentro. Ele olhou em volta, o coração batendo na garganta. João o empurrou pelo estoque. Não havia quase ninguém ali.

Eles andaram até uma salinha no final do corredor. João abriu a porta e fez sinal para o garoto entrar. Michael hesitou.

Seu pai tinha lhe dito que o que corria em suas veias era suficiente para fazer pessoas como João se acovardarem. Ele não precisava ser muito agressivo. Apenas mostrar do que era capaz.

As pessoas perseguem apenas os mais fracos que elas, dizia seu pai. Mostre que seu poder é superior e elas te deixarão em paz.

Michael encarou João. Os olhos dele eram maus. O menino não sabia como, mas sentia a maldade escoar do segurança. O sorriso dele era cruel. Michael aprendeu sobre monstros com seu pai. Chegou até a ver um ou outro monstro. Mas o medo que sentia naquele momento lhe disse que João seria um tipo pior de monstro. Um tipo muito mais cruel.

— Não vou entrar aí — ele falou, sabendo que sua mãe ficaria magoada.

Ele sentia. Sentia que se entrasse naquela sala, as coisas acabariam muito mal para ele.

João estreitou os olhos negros e cruéis. Colocou as mãos sobre a cintura gorda e tentou estufar o peito, algo que mal deu para notar graças à enorme sua pança. Os botões do uniforme azul de segurança estavam quase explodindo. Michael acharia graça se não estivesse com tanto medo.

— Não quer entrar, é neguinho?

João olhou em volta. Michael também. Nenhuma viva alma.

O garoto engoliu em seco. Suor escorria por sua cabeça raspada. Ele molhou os lábios ressecados. Suas mãos tremiam, mesmo com os punhos fechados.

João sorriu novamente.

— Já que você prefere aqui fora, que seja.

O segurança começou a soltar o cinto da calça jeans surrada. Michael mordeu os lábios. A voz do seu pai chegou até seus ouvidos.

Se um homem mexer no cinto perto de você quando estiverem sozinhos, só tem duas coisas que ele poderá fazer. Uma delas é te dar uma surra com cinto. A outra alternativa é bem pior. Então nunca permita. Nunca permita que tirem o cinto perto de você.

O medo de Michael virou outra coisa. Raiva. Ele sabia o que o segurança gordo queria com ele. E ficou com nojo. O odiou por isso.

João parou com o cinto na mão ao ver a expressão do garoto. Ele hesitou.

— O que foi moleque? Acha que vai me assustar com essa cara feia? Vamos ver se você vai continuar com essa careta quando eu dar um trato em você.

Michael não respondeu, e viu que isso abalou o segurança. Ele levou a mão à pena de seu pingente e falou, tão baixo que João não entendeu a palavra.

— Etherion.

A palavra que dava nome à dimensão dos seus antepassados. A chave para liberar o poder armazenado em seu pingente.

O corpo de Michael brilhou. A energia que corria dentro dele pareceu suspirar quando foi libertada, pronta para ser moldada pela kamui, a armadura do garoto magicamente transformada em pingente.

Um cocar de com penas que alternavam as cores azul e prata surgiu em sua cabeça. Seus ombros, cotovelos, mãos, joelhos e pés foram revestidos por peças de bronze. Um saiote, também de bronze, envolveu sua cintura. Um peitoral envolveu seu peito, com desenhos que lembravam tribais africanos. Em sua mão, uma espada que lembrava uma meia lua: uma koshep.

Ele sabia que havia uma faixa pintada de preto na altura dos seus olhos. E se orgulhava disso. Se orgulhava do legado de seu povo. E não deixaria isso ser maculado por aquele racista.

— Vou falar só uma vez — falou Michael, ao ver o pavor tomar conta do rosto de João. — Apenas saia da minha frente e te deixo em paz.

A resposta de João foi um grito de raiva e indignação. Ele atacou com o cinto, como se fosse um chicote. Michael rolou pelo chão e se levantou, começando a dançar. Gingava de um lado para o outro, com a arma na mão. O som do berimbau e do pandeiro ecoando em suas veias, algo que só ele podia ouvir. O poder que cada ser humano levava dentro de si de forma única. Muitos conheciam como aura, cosmo, energias místicas.

Para aqueles como Michael, que seguiam o caminho iorubá, essa energia era conhecida como axé.

Jorge olhou com ódio em seus olhos.

— Acha que a dança da chuva vai te ajudar criolo? Vou acabar com a sua raça.

Quando Jorge foi para cima de Michael, o garoto pulou no ar, girando, e deu um chute na cara do segurança. Ele pousou no chão e olhou para homem, que se levantou tremendo de ódio. Então ele relaxou.

— Olha menino, foi um mal-entendido tá. Me desculpa.

De cabeça baixa ele estendeu a mão para Michael. O garoto suspirou. Ele odiava entrar em brigas. Estendeu a mão para apertar a do homem.

João puxou a mão do garoto e começou a socá-lo no rosto.

— Me desculpa o caramba! Você vai ficar pianinho, seu preto. Vai cantar na minha mão.

Entre um soco e outro, a consciência de Michael ameaçava abandoná-lo. A espada caiu da mão. Ele pensou em seu pai. Pensou em sua mãe, sozinha na cama, esperando um pacote de bolachas enquanto seu filho apanhava.

Seu sangue ferveu. O axé de Michael explodiu, lhe dando forças. Ele voltou a si e segurou a mão do cara, que o olhou assustado. Com um dos olhos inchado, os lábios sangrando e o nariz quebrado, Michael olhou para João. E o que o segurança viu naquele olhar, o fez tremer.

— Eu disse que você teria uma chance — falou Michael.

Ele fechou o outro punho, que começou a brilhar com luz azul.

— Pai, me empresta sua força. Ancestrais, me emprestem seu axé para que eu possa me defender. — o menino pediu. Respirando fundo, ele gritou — Vingança de Ogum!

Michael se abaixou e socou o queixo de João. O garoto subiu levando o homem preso em seu punho. Dois metros. Três metros. No ar, ele rodopiou e chutou a barriga do segurança, que foi parar dentro do quarto onde queria levá-lo, atravessando a janela que estava fechada.

Quando voltou ao chão, Michael viu o empacotador, Ricardo, o olhando com a boca aberta. O filho de Ogum, orixá da guerra, pegou sua espada e foi andando em direção do empacotador. Ricardo se encolheu, esperando o golpe que não veio. Quando abriu os olhos novamente, o menino já tinha passado por ele.

Michael deu alguns passos antes de olhar por sobre o ombro.

— Você podia ter me ajudado.

Ricardo começou a tremer.

— Eu… eu não podia… ele é mais forte… meu serviço é tudo que tenho e…

— Não há desculpas — falou Michael, calando o outro garoto. — O cara me pegou no estacionamento, alegando que eu roubei uma bolacha que tinha comprado. Eu tinha a nota. Eu te contei. E você não fez nada. Ninguém fez.

Ricardo se aproximou. Hesitou, mas entregou uma bolacha para ele que Michael nem notou que o outro segurava. Michael olhou aquilo e ficou com vontade de jogar fora. Mas lembrou de sua mãe.

Ele desmaterializou sua kamui. Enfiou a bolacha na pochete e foi embora.

Seu pai tinha razão. Doía pensar assim, mas o mundo onde sua mãe vivia não existia. As pessoas eram más. Os brancos odiavam os negros. Ou não se importavam o suficiente com eles para impedir aqueles que odiavam de lhes fazer mal.

Michael tomou uma decisão. Não abaixaria mais a cabeça. Não mais.

O sol o recebeu com seu abraço caloroso quando ele saiu do supermercado. As pessoas passavam por ele. A pé, de bicicleta e de carro. Não se importavam com ele.

A partir daquele dia, ele também não se importaria com elas.