Ayla ouviu um estrondo alto vindo do saguão principal. Levantou-se da poltrona e deixou o livro sobre ela. Estranhou não ouvir a voz do Comendador. A casa estava silenciosa. Deu passos cautelosos até a entrada. A porta estava aberta, mas não havia ninguém.
— Comendador, é o senhor? — Ela olhou ao redor enquanto se aproximava da porta aberta. Sentiu um frio na espinha. Algo estranho estava acontecendo. Foi então que ouviu o som de passos pesados no corredor. Algo estava errado. O silêncio, que antes a confortava, agora a deixava inquieta. O som das botas era inconfundível. Aquela marca rítmica de poder e autoridade era tão familiar que Ayla gelou por dentro. Lentamente, virou-se, e viu a sombra que tanto temia.
— Não pode mais reconhecer seu pai? — a voz grave, fria e cortante, fez seu corpo estremecer.
Ela recuou instintivamente, o coração acelerado. Seus pés pareciam presos ao chão, incapazes de reagir. “Como ele a encontrou ali?, se questionava”.
— Não sou mais sua filha — sussurrou Ayla, com a voz embargada. — Meu pai está morto!
— Eu a criei! — bradou o capataz, avançando com um chicote enrolado em sua mão. — E você fugiu como uma ingrata!
— Devem ter mimado você tanto que já esqueceu como tratar os mais velhos. Mas eu a relembro — afirmou ele, puxando um chicote.
Ayla correu, desesperada, subindo as escadas da mansão. Trancou-se no quarto, tentando encontrar uma saída. A única opção era a sacada. Olhou para baixo, medindo a altura, mas sabia que pular seria arriscado demais. Foi quando ouviu a porta ser arrombada. Seu corpo congelou, e ela se viu sem saída.
— Não fugirá de mim, menina malcriada.
O capataz a encontrou, e sem piedade, agarrou-a pelos cabelos. Arrastou-a pelo quarto, empurrando-a em direção à sacada. Ayla se debatia na expectativa de conseguir se libertar.
— Achei que morreria sem antes revê-la, menina ingrata. Vai me pedir a bênção agora? — gritou ele, enquanto a forçava para mais perto da beirada.
Foi então que uma voz firme e autoritária cortou o ar.
— Largue minha esposa! — a voz do Comendador Antunes ecoou pelo quarto.
O capataz se virou, mantendo Ayla presa pelos cabelos. Estalou o chicote entre eles, traçando uma distância.
— Veio de mãos vazias, senhor Comendador? Realmente me subestimou.
Antunes aproximou-se cautelosamente, os olhos fixos na figura ameaçadora à sua frente.
— Podemos resolver isso como homens. Diga o que quer — sugeriu o Comendador, tentando ganhar tempo.
O capataz riu, enquanto puxava Ayla com mais força, aproximando-a da sacada. Ela se contorcia, buscando uma maneira de se libertar.
— Ela não pertencerá a nenhum de nós!— gritou o homem.
Ayla, em um ato de desespero, girou o corpo, forçando-se a se virar para o homem. No momento em que ele se distraiu com o Comendador, ela chutou seus quadris com força, fazendo-o perder o equilíbrio.
Antes que pudesse retaliar, os homens de Antunes surgiram das sombras e o imobilizaram. Com esforço, derrubaram-no no chão, prendendo seus braços para trás. O capataz rugia de ódio, mas estava dominado.
Ayla caiu ao chão, o corpo tremendo de medo e exaustão. Lágrimas escorriam por seu rosto enquanto seu coração ainda batia descompassado. O Comendador aproximou-se rapidamente e a envolveu em seus braços.
— Levem-no daqui! Quero estar livre do sangue deste imprestável.
O rosto do Comendador estava vermelho, com uma feição dura. Ayla nunca havia visto aquela expressão antes.
— Está tudo bem agora — sussurrou ele, suavemente, secando suas lágrimas com os dedos.
Antunes pareceu ser outro homem.
Ela assentiu, mas a dor em seu peito ainda era insuportável. Não era só o medo que a consumia, mas as cicatrizes profundas, cauterizadas na sua infância, deixadas por anos de sofrimento. Quando tentou se levantar, uma dor aguda na cabeça a impediu. Ela caiu em prantos novamente.
— Ele… ele não pode mais me machucar? — questionou Ayla, com a voz trêmula.
— Nunca mais — afirmou o Comendador, olhando-a com uma intensidade que ela nunca tinha visto antes.
Depois de se acalmar, deitou-se no quarto, mas o que havia acontecido continuava passando em sua mente como um pesadelo.
O Comendador entrou e se sentou na beirada da cama.
— Prometo que, enquanto eu viver, ele nunca mais lhe fará mal — disse ele, com suavidade. — Eu nunca poderia imaginar tudo o que enfrentou sozinha.
— Estou envergonhada — disse ela, cobrindo o rosto com as mãos.
Ele alisou seus cabelos longos, descobrindo seu rosto e seus ombros. Tocou-lhe a pele e seguiu as cicatrizes que a marcavam. As histórias que elas carregavam eram dolorosas.
Ayla queria revelar que aquelas marcas foram resultado das vezes em que não conseguira carregar um saco de arroz ou o peso de uma panela. Mas não suportava nem as lembranças, quanto mais contar como as adquiriu!
— A pessoa que lhe deixou essas marcas que deveria sentir vergonha.
— Achei que morreria — continuou Ayla. — Você arriscou sua vida para salvar a minha.
— Eu não me perdoaria se lhe causasse algum mal. Nunca poderia imaginar que havia enfrentado sozinha tantas coisas ruins.
— Tive medo de que me rejeitasse. O que restaria para mim? Por isso, fui cautelosa. Queria conhecê-lo para, enfim, saber se poderia confiar. Desculpe, sei que não deveria…
Ele a virou, secou suas lágrimas mais uma vez e afastou os cabelos negros de seu rosto, deixando-o à mostra. Fixou o olhar nos olhos marejados dela. Eles brilhavam com o reflexo das lágrimas.
Agora ele entendia o que havia de diferente nela. Ayla não demonstrou ambição durante a cerimônia de casamento, não fez pedidos extravagantes. A princípio, isso parecia suspeito. Depois, ele percebeu que ela não se prendia a padrões financeiros. Só queria se sentir segura. Por um motivo que não sabia explicar, ele se sentia feliz por poder protegê-la.
— Prometo que só a deixarei quando o amanhecer já não mais existir. Você me pertence! Preciso que seja minha esposa pelos próximos cinquenta ou sessenta anos, compreendeu?
Ela meneou a cabeça. Fechou os olhos enquanto sentia o calor daqueles braços fortes envolvê-la. A vida lhe dado uma chance de ver o amanhecer novamente.
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