Bocatorta

  • Gênero: Terror

A quarto de légua do arraial do Atoleiro começam as terras da fazenda de igual nome, pertencente ao major Zé Lucas. A meio entre o povoado e o estirão das matas virgens dormia de papo acima um famoso pântano. Pego de insidiosa argila negra fraldejado de velhos guaiambés nodosos, a taboa esbelta cresce-lhe à tona, viçosa na folhagem eréctil que as brisas tremelicam. Pela inflorescência, longas varas soerguem-se a prumo, sustendo no ápice um chouriço cor de telha que, maturado, se esbruga em paina esvoaçante. Corre entre seus talos a batuíra de longo bico, e saltita pelas hastes a corruíra-do-brejo, cujo ninho bojudo se ouriça nos espinheiros marginais. Fora disso, rãs, mimbuias pensativas e, a rabear nas poças verdinhentas de algas, a traíra, esse voraz esqualozinho do lodo. Um brejo, enfim, como cem outros.

Notabiliza-o, porém, a profundidade. Ninguém ao vê-lo tão calmo sonha o abismo traidor oculto sob a verdura.

Dois, três bambus emendados que lhe tentem alcançar o fundo subvertem-se na lama sem alçar pé.

Além de vários animais sumidos nele, conta-se o caso do Simas, português teimoso que, na birra de salvar um burro já atolado a meio, se viu engolido lentamente pelo barro maldito. Desd’aí ficou o atoleiro gravado na imaginativa popular como uma das bocas do próprio inferno.

Transposto o abismo, a vegetação encorpa, até formar a mata por cujo seio corre a estrada mestra da fazenda.

Na manhã daquele dia passara por ali o trole do fazendeiro, de volta da cidade. Além do velho, de sua mulher Don’Ana e de Cristina a filha única, vinha a passeio o bacharel Eduardo, primo longe e noivo da moça. Chegaram e agora ouviam na varanda, da boca do Vargas, fiscal, a notícia do sucedido durante a ausência. Já contara Vargas do café, da puxada dos milhos e estava na criação.

— Porcos têm sumido alguns. Uma leitoa rabicó e um capadete malhado dos “Polancham”, há duas semanas que moita. Para mim — ninguém me tira da cabeça — o ladrão foi o negro, inda mais que essa criação costumava se alongar das bandas do brejo. Eu estou sempre dizendo: é preciso tocar de lá o raio do maldelazento. Aquilo, Deus me perdoe, é bicho ruim inteirado. Mas não “querem” me acreditar…

O major sorriu àquele “querem”. Vargas, com ojeriza velha ao mísero Bocatorta, não perdia ensanchas de lhe atribuir malefícios e de estumar o patrão a corrê-lo das terras que aquilo, Nossa Senhora! Até enguiçava uma fazenda…

Interessado, o moço indagou da estranha criatura.

— Bocatorta é a maior curiosidade da fazenda, respondeu o major. Filho duma escrava de meu pai, nasceu, o mísero, disforme e horripilante como não há memória de outro. Um monstro, de tão feio. Há anos que vive sozinho, escondido no mato, donde raro sai e sempre de noite, O povo diz dele horrores — que come crianças, que é bruxo, que tem parte com o demo. Todas as desgraças acontecidas no arraial correm-lhe por conta. Para mim, é um pobre-diabo cujo crime único é ser feio demais. Como perdeu a medida, está a pagar o crime que não cometeu…

Vargas interveio, cuspilhando com cara de asco: — Se o doutorzinho o visse!… É a coisa mais nojenta deste mundo.

— Feio como o Quasímodo? — Esse não conheço, seu doutor, mas estou aqui estou jurando que o negro passa diante do… como é? Eduardo apaixonava-se pelo caso.

— Mas, amigo Vargas, feio como? Por que feio? Explique-me lá essa feiura.

Grande parola quando lhe davam trela, Vargas entreparou um bocado e disse: — O doutor quer saber como é o negro? Venha cá.

Vossa Senhoria garre um juda de carvão e judie dele; cavoque o buraco dos olhos e afunde dentro duas brasas alumiando; meta a faca nos beiços e saque fora os dois; ranque os dentes e só deixe um toco; entorte a boca de viés na cara; faça uma coisa desconforme, Deus que me perdoe.

Depois, como diz o outro, vá judiando, vá entortando as pernas e esparramando os pés. Quando cansar, descanse.

Corra o mundo campeando feiúra braba e aplique o pior no estupor. Quando acabar ‘garre no juda e ponha rente de Bocatorta. Sabe o que acontece? O juda fica lindo!…

Eduardo desferiu uma gargalhada.

— Você exagera, Vargas. Nem o diabo é tão feio assim, criatura de Deus! — Homem, seu doutor, quer saber? Contando não se acredita. Aquilo é feiura que só vendo! — Nesse caso quero vê-la. Um horror desse naipe merece uma pernada.

Nesse momento surgiu Cristina à porta, anunciando café na mesa.

— Sabe? — disse-lhe o noivo. — Temos um belo passeio em perspectiva: desentocar um gorila que, diz o Vargas, é o bicho mais feio do mundo.

— Bocatorta? — exclamou Cristina com um reverbero de asco no rosto. — Não me fale. Só o nome dessa criatura já me põe arrepios no corpo.

E contou o que dele sabia.

Bocatorta representara papel saliente em sua imaginação. Pequenita, amedrontavam-na as mucamas com a cuca, e a cuca era o horrendo negro. Mais tarde, com ouvir às crioulinhas todos os horrores correntes à conta dos seus bruxedos, ganhou inexplicável pavor ao notâmbulo. Houve tempo no colégio em que, noites e noites a fio, o mesmo pesadelo a atropelou. Bocatorta a tentar beijá-la, e ela, em transes, a fugir. Gritava por socorro, mas a voz lhe morria na garganta. Despertava arquejante, lavada em suores frios.

Curou-a o tempo, mas a obsessão vincara fundos vestígios em su’alma.

Eduardo, não obstante, insistia.

— É o meio de te curares de vez. Nada como o aspecto cru da realidade para desmanchar exageros de imaginação.

Vamos todos, em farrancho — e asseguro-te que a piedade te fará ver no espantalho, em vez dum monstro, um simples desgraçado digno do teu dó.

Cristina consultou-se por uns momentos e: — Pode ser — disse. — Talvez vá. Mas não prometo! Na hora verei se tenho coragem…

A maturação do espírito em Cristina desbotara a vivacidade nevrótica dos terrores infantis. Inda assim vacilava.

Renascia o medo antigo, como renasce a encarquilhada rosa de Jericó ao contato de uma gota d’água. Mas vexada de aparecer aos olhos do noivo tão infantilmente medrosa, deliberou que iria; desde esse instante, porém, uma imperceptível sombra anuviou-lhe o rosto.

Ao jantar foram o assunto as novidades do arraial — eternas novidades de aldeias, o Fulano que morreu, a Sicrana que casou. Casara um boticário e morrera uma menina de quatorze anos, muito chegada à gente do major. Particularmente condoída, Don’Ana não a tirava da ideia.

— Pobre da Luizinha! Não me sai dos olhos o jeito dela, tão galante, quando vinha aqui pelo tempo das jabuticabas.

Ali, naquela porta — “Dá licença, Don’Ana!” — tão cheia de vida, vermelhinha do sol… Quem diria…

— E ainda por cima a tal história de cemitério… interveio Cristina. Papai soube? Corriam no arraial rumores macabros. No dia seguinte ao enterramento o coveiro topou a sepultura remexida, como se fora violada durante a noite; e viu na terra fresca pegadas misteriosas de uma “coisa” que não seria bicho nem gente deste mundo. Já duma feita sucedera caso idêntico por ocasião da morte da Sinhazinha Esteves; mas todos duvidaram da integridade dos miolos do pobre coveiro sarapantado. Esses incréus não mofavam agora do visionário, porque o padre e outras pessoas de boa cabeça, chamadas a testemunhar o fato, confirmavam-no.

Imbuído do ceticismo fácil dos moços da cidade, Eduardo meteu a riso a coisa muita fortidão de espírito.

— A gente da roça duma folha d’embaüva pendurada no barranco faz logo, pelo menos, um lobisomem e três mulas-sem-cabeça. Esse caso do cemitério: um cão vagabundo entrou lá e arranhou à terra. Aí está todo o grande mistério! Cristina objetou: — E os rastos? — Os rastos! Estou a apostar como tais rastos são os do próprio coveiro. O terror impediu-lhe de reconhecer o molde do casco…

— E o padre Lisandro? — acudiu Don’Ana, para quem um testemunho tonsurado era documento de muito peso.

Eduardo cascalhou uma risada anticlerical e, trincando um rabanete, expectorou: — Ora, o padre Lisandro! Pelo amor de Deus, Don’Ana! O padre Lisandro é o próprio coveiro de batina e coroa! A propósito…

E contou a propósito vários casos daquele tipo, os quais no correr do tempo vieram a explicar-se naturalmente, com grande cara d’asno dos coveiros e lisandros respectivos.

Cristina ouviu, com o espírito absorto em cismas, a bela demonstração geométrica. Don’Ana concordou da boca para fora, por delicadeza. Mas o major, esse não piou sim nem não. A experiência da vida ensinara-lhe a não afirmar com despotismo, nem negar com “oras — Há muita coisa estranha neste mundo… — disse, traduzindo involuntariamente a safada réplica de Hamlet ao cabeça forte do Horácio.

Zangara o tempo quando à tarde o rancho se pôs de rumo ao casebre de Bocatorta.

Ventava. Rebojos de nuvens prenhes sorviam as últimas nesgas do azul.

Os noivos breve se distanciaram dos velhos que, a passos tardos, seguiam comentando a boa composição do futuro casal. Não havia nisso exagero de pais. Eduardo, embora vulgar, tinha a esbelteza necessária para ouvir sem favor o encômio de rapagão, e Cristina era um ramalhete completo das graças que os dezoito anos sabem compor.

Donaire, elegância, distinção… pintam lá vocábulos esbeiçados pelo uso esse punhado de quês particularíssimos cuja soma a palavra “linda” totaliza? Lábios de pitanga, a magnólia da pele acesa em rosas nas faces, olhos sombrios como a noite, dentes de pérola… As velhas tintas de uso em retratos femininos desde a Sulamita não pintam melhor que o “linda!” dito sem mais enfeites além do ponto de admiração.

Vê-la mordiscando o hastil duma flor de catingueiro colhida à beira do caminho, ora risonha, ora séria, a cor das faces mordida pelo vento frio, madeixas louras a brincarem-lhe nas têmporas, vê-la assim formosa no quadro agreste duma tarde de junho, era compreender a expressão dos roceiros: linda que nem uma santa.

Olhos, sobretudo, tinha-os Cristina de alta beleza. Naquela tarde, porém, as sombras de sua alma coavam neles penumbras de estranha melancolia. Melancolia e inquietação. O amoroso enlevo de Eduardo esfriava amiúde ante suas repentinas fugas. Ele a percebia distante, ou pelo menos introspectiva em excesso, reticências que o amor não vê de boa cara. E à medida que caminhavam recrescia aquela esquisitice. Um como intáctil morcego diabólico riscava-lhe a alma de voejos pressagos. Nem o estimulante das brisas ásperas, nem a ternura do noivo, nem o “cheiro de natureza” exsolvido da terra, eram de molde a esgarçar a misteriosa bruma de lá dentro.

Eduardo interpelou-a: — Que tens hoje, Cristina? Tão sombria…

E ela, num sorriso triste: — Nada!… Por quê? Nada… É sempre nada quando o que quer que é lucila avisos informes na escuridão do subconsciente, como sutilíssimos ziguezagues de sismógrafo em prenúncio de remota comoção telúrica. Mas esses nadas são tudo!…

— À esquerda, pelo trilho! A voz do major chamou-os à realidade. Um carreiro mal batido na macega esgueirava-se coleante até a beira dum córrego, onde se reuniram de novo.

O major tomou a frente, e guiou-os floresta adentro pelos meandros duma picada. Era ali o mato sinistro onde se alapavam Bocatorta e o seu cachorro lazarento, Merimbico, nome tresandante a satanismo para o faro do poviléu.

Às sextas-feiras, na voz corrente do arraial, Merimbico virava lobisomem e se punha de ronda ao cemitério, com lamentosos uivos à lua e abocamentos às pobres almas penadas — coisa muito de arrepiar.

O sombrio da mata enoiteceu de vez o coração de Cristina.

— Mas, afinal, para onde vamos, meu pai? Afundar no atoleiro, como o Simas? Meu pai já fez o testamento? — Já, minha filha — chasqueou o major —, e deixo o Bocatorta para você…

Cristina emudeceu. Retransia-a em doses crescentes o velho medo de outrora, e foi com um estremecimento arrepiado que ouviu o ladrido próximo de um cão.

— É Merimbico — disse o velho. — Estamos quase.

Mais cem passos e a mata rasgou-se em clareira, na qual Cristina entreviu a biboca do negro. Fez-se toda pequenina e achegou-se a Don’Ana, apertando-lhe nervosamente as mãos.

— Bobinha! Tudo isso é medo? — Pior que medo, mamãe; é… não-sei-quê! Não tinha feição de moradia humana a alfurja do monstro. À laia de paredes, paus-a-pique mal juntos, entressachados de ramadas secas. Por cobertura, presos, com pedras chatas, molhos de sapé no fio, defumado e podre. Em redor, um terreirinho atravancado de latas ferrujentas, trapos e cacaria velha. A entrada era um buraco por onde mal passaria um homem agachado.

— Olá, caramujo! Sai da toca que estão cá o sinhô moço e mais visitas! — gritou o major.

Respondeu de dentro um grunhido cavo. Ao ouvir tão desagradável som, Cristina sentiu correr na pele o arrepio dos pesadelos antigos, e num incoercível movimento de pavor abraçou-se com a mãe.

O negro saiu da cova meio de rastos, com a lentidão de monstruosa lesma. A princípio surgiu uma gaforinha arruçada, depois o tronco e os braços e a traparia imunda que lhe escondia o resto do corpo, entremostrando nos rasgões o negror da pele craquenta.

Cristina escondeu o rosto no ombro de Don’Ana — não queria, não podia ver.

Bocatorta excedeu a toda pintura. A hediondez personificara-se nele, avultando, sobretudo, na monstruosa deformação da boca. Não tinha beiços, e as gengivas largas, violáceas, com raros cotos de dentes bestiais fincados às tontas, mostravam-se cruas, como enorme chaga viva. E torta, posta de viés na cara, num esgar diabólico, resumindo o que o feio pode compor de horripilante. Embora se lhe estampasse na boca o quanto fosse preciso para fazer daquela criatura a culminância da ascosidade, a natureza malvada fora além, dando-lhe pernas cambaias e uns pés deformados que nem remotamente lembravam a forma do pé humano. E olhos vivíssimos, que pulavam das órbitas empapuçadas, veiados de sangue na esclerótica amarela. E pele grumosa, escamada de escaras cinzentas. Tudo nele quebrava o equilíbrio normal do corpo humano, como se a teratologia caprichasse em criar a sua obra-prima.

À porta do casebre, Merimbico, cachorro à-toa, todo ossos, pele e bernes, rosnava contra os importunos.

Don’Ana e a filha afastaram-se, engulhadas. Só os homens resistiram à nauseante vista, embora a Eduardo o tolhesse uma emoção jamais experimentada, misto de asco, piedade e horror. Aquele quadro de suprema repulsão, novo para seus nervos, desnorteava-lhe as idéias. Estarrecido como em face da Górgona, não lhe vinha palavra que dissesse.

O major, entretanto, trocava língua com o monstro, que em certo ponto, a uma pergunta alegre do velho, arregaçou na cara um riso. Eduardo não teve mão de si. Aquele riso naquela cara sobre-excedia a sua capacidade de horripilação. Voltou o rosto e se foi para onde as mulheres, murmurando: — É demais! É de fazer mal a nervos de aço…

Seus olhos encontraram os de Cristina e neles viram a expressão de pavor da preá engrifada nas puas da suindara — o pavor da morte…

Quando deixaram a floresta, morria a tarde sob o chicote dum vento precursor de chuva.

— Foi imprudência, Cristina, vires sem um xalinho de cabeça ao menos!… Queira Deus!

A moça não respondeu. D’olhos baixos, retransida, respirava a largos haustos, para desafogo dum aperto de coração nunca sentido fora dos pesadelos.

Generalizara-se o silêncio. Só o major tentava espanejar a impressão penosa, chasqueando ora o terror da filha, ora o asco do moço; mas breve calou-se, ganho também pelo mal-estar geral.

Triste anoitecer o daquele dia, picado a espaços pelo surdo revoo dos curiangos. O vento zunia, e numa lufada mais forte trouxe da mata o uivo plangente de Merimbico.

Ao ouvi-lo, um comentário apenas escapou da boca do major: — Diabo! Fechara-se a noite e vinham as primeiras gotas de chuva quando pisaram no alpendre do casarão.

Cristina sentiu pelo corpo inteiro um calafrio, como se a sacudisse a corrente elétrica.

No dia seguinte amanheceu febril, com ardores no peito e tremuras amiudadas. Tinha as faces vermelhas e a respiração opressa.

O rebuliço foi grande na casa.

Eduardo, mordido de remorsos, compulsava com mão nervosa um velho Chernoviz, tentando atinar com a doença de Cristina; mas perdia-se sem bússola no báratro das moléstias. Nesse em meio, Don’Ana esgotava o arsenal da medicina anódina dos símplices caseiros.

O mal, entretanto, recalcitrava às chaçadas e sudoríferos. Chamou-se o boticário da vila. Veio a galope o Eusébio Macário e diagnosticou pneumonia.

Quem já não assistiu a uma dessas subitâneas desgraças que de golpe se abatem, qual negro avejão de presa, sobre uma família feliz, e estraçoam tudo quanto nela representa a alegria, e esperança, o futuro? Noites em claro, o rumor dos passos abafados… E o doente a piorar… O médico da casa apreensivo, cheio de vincos na testa… Dias e dias de duelo mudo contra a moléstia incoercível… A desesperança, afinal, o irremediável antolhado iminente; a morte pressentida de ronda ao quarto…

Ao oitavo dia, Cristina foi desenganada; no décimo o sino do arraial anunciou o seu prematuro fim.

— Morta!

Eduardo escondia as lágrimas entre as almofadas do leito, repetindo cem vezes a mesma palavra.

Alcançava-lhe o significado tremendo e, no entanto, quantas vezes a ouvira como a um som oco de sentido! A imagem de Cristina morta, a esfervilhar na dissolução dentro da terra gelada, contrapunha-se às visões da Cristina viva, toda mimos d’alma e corpo, radiosa manhã humana de cuja luz toda se impregnara sua alma. Cerrando os olhos, revia-se durante o passeio fatal, envolta nas brumas de vagos pressentimentos. Vinham-lhe à memória as suas palavras dúbias, a sua vacilação. E arrepelava-se por não ter adivinhado na repulsa da moça os avisos informes de qualquer coisa secreta que tenazmente a defendia. Tais pensamentos, enxameantes como moscas em torno à carne viva da dor de Eduardo, coavam nele venenos cruéis.

Fora, o sol redoirava cruamente a vida.

Brutalidade!…

Morria Cristina e não se desdobravam crepes pelo céu, nem murchavam as folhas das árvores, nem se recobria de cinzas a terra…

Espezinhado pela fria indiferença das coisas, fechou-se na clausura de si próprio, torvo e dolorido, sentindo-se amarfanhar pela pata cega do destino.

Correram horas. Noite alta, acudiu-lhe a ideia de ir ao cemiterinho beijar num último adeus o túmulo da noiva.

Por sobre a vegetação adormecida coava-se o palor cinéreo da minguante. Raras estrelas no céu, e na terra nenhum rumorejo além do remoto uivar de um cão — Merimbico talvez — a escandir o concerto das untanhas que coaxavam glu-glus nas aguadas.

Eduardo alcançou o cemitério. Estava encadeado o portão. Apoiou a testa nos frios varões ferrujentos e mergulhou os olhos queimados de lágrimas por entre os carneiros humildes, em busca do que recebera Cristina.

No ar, um silêncio de eternidade.

Brisas intermitentes carreavam o olor acre dos cravos-de-defunto floridos na tristeza daquele cemitério da roça.

Seu olhar pervagava de cruz em cruz na tentativa de atinar com o sítio onde Cristina dormia o grande sono, quando um rumor suspeito lhe feriu os ouvidos. Direis um arranhar de chão em raspões cautelosos, ao qual se casava o resfôlego duma criatura viva.

Pulsou-lhe violento o sangue. Os cabelos cresceram-lhe na cabeça. Alucinação? Apurou os ouvidos: o rumor estranho lá continuava, vindo de um ponto sombreado de ciprestes. Firmou a vista: qualquer coisa agachava-se na terra.

Súbito, num relâmpago, fulgurou em sua memória a cena do jantar, o caso de Luizinha, as palavras de Cristina.

Eduardo sentiu arrepiarem-se-lhe os cabelos e, ganho dum pânico desvairado, deitou a correr como um louco rumo à fazenda, em cujo casarão penetrou de pancada, sem fôlego, lavado em suor frio, despertando de sobressalto a família.

Com gritos de espanto, que o cansaço e o bater dos dentes entrecortavam, exclamou entre arquejos: — Estão desenterrando Cristina… Eu vi uma coisa desenterrando Cristina…

— Que loucura é essa, moço? — Eu vi… — continuava Eduardo com os olhos desmesuradamente abertos. — Eu vi uma coisa desenterrando Cristina…

O major apertou entre as mãos a testa. Esteve assim imóvel uns instantes. Depois sacudiu a cabeça num gesto de decisão e, horrivelmente calmo, murmurou entre dentes, como em resposta a si próprio: — Será possível, meu Deus? Vestiu-se de golpe, meteu no bolso o revólver e atirando três palavras enigmáticas à estarrecida Don’Ana, gritou para Eduardo com inflexão de aço na voz: — Vamos! Magnetizado pela energia do velho, o moço acompanhou-o qual sonâmbulo.

No terreiro apareceu-lhes o capataz.

— Venha conosco. A “coisa” está no cemitério.

Vargas passou mão de uma foice.

— Vai ver que é ele, patrão, até juro! O major não respondeu — e os três homens partiram a correr pelos campos em fora.

A meio caminho, Eduardo, exausto de tantas emoções, atrasou-se. Seus músculos recusaram-lhe obediência. Ao defrontar com o atoleiro, as pernas lhe fraquearam de vez e ele caiu, ofegante.

Entrementes, o major e o feitor alcançavam o cemitério, galgavam o muro e aproximavam-se como gatos do túmulo de Cristina.

Um quadro hediondo antolhou-se-lhes de golpe: um corpo branco jazia fora do túmulo — abraçado por um vulto vivo, negro e coleante como o polvo.

O pai de Cristina desferiu um rugido de fera, e qual fera mal ferida arrojou-se para cima do monstro. A hiena, mau-grado a surpresa, escapou ao bote e fugiu. E, coxeando, cambaio, seminu, de tropeços nas cruzes, a galgar túmulos com agilidade inconcebível em semelhante criatura, Bocatorta saltou o muro e fugiu, seguido de perto pela sombra esganiçante de Merimbico.

Eduardo, que concentrara todas as forças para seguir de longe o desfecho do drama, viu passar rente de si o vulto asqueroso do necrófilo, para em seguida desaparecer mergulhando na massa escura dos guaiambés.

Voando-lhe no encalço, viu passar em seguida o vulto dos perseguidores.

Houve uma pausa, em que só lhe feriu o ouvido o rumor da correria. Depois, gritos de cólera, d’envolta a um grunhir de queixada caído em mundéu — e tudo se misturou ao barulho da luta que o uivo de Merimbico dominava lugubremente.

O moço correu a mão pela testa gelada: estaria nas unhas dum pesadelo? Não; não era sonho. Disse-lho a voz alterada do feitor, esboçando o epílogo da tragédia: — Não atire, major, ele não merece bala. P’ra que serve o atoleiro? E logo após Eduardo sentiu recrudescer a luta, entre imprecações de cólera e os grunhidos cada vez mais lamentosos do monstro. E ouviu farfalhar o mato, como se por ele arrastassem um corpo manietado, a debater-se em convulsões violentas. E ouviu um rugido cavo de supremo desespero. E após, o baque fofo de um fardo que se atufa na lama.

Uma vertigem escureceu-lhe a vista; seus ouvidos cessaram de ouvir; seu pensamento adormeceu…

Quando voltou a si, dois homens borrifavam-lhe o rosto com água gelada. Encarou-os, marasmado. Ergueu-se, mal firme, apoiado a um deles. E reconheceu a voz do major, que entre arquejos de cansaço lhe dizia: — Seja homem, moço. Cristina já está enterrada, e o negro…

— … Está beijando o barro, concluiu sinistramente o Vargas.

Ao raiar do dia, Merimbico ainda lá estava, sentado nas patas traseiras, a uivar saudosamente com os olhos postos no sítio onde sumira o seu companheiro.

Nada mais lembrava a tragédia noturna nem denunciava o túmulo de lodo açaimador da boca hedionda que babujara nos lábios de Cristina o beijo único de sua vida.

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