Os Baús do Sótão

  • Gênero: Terror | Público Infantil

Lívia observava cada fresta e aresta da fachada de pedra daquela casa nos limites de Évora. O seu tom, outrora amarelo-canário, tinha perdido a sua vivacidade, e agora não era mais do que um amarelo-vetusto, desgastado pelo tempo, ponteado pelo negro da humidade e do bolor.

O jardim assumiu um aspecto alpestre e descuidado. Apenas a velha árvore, repleta de galhos secos, resistia no meio do terreno. Nem parecia que, em tempos, as crianças gostavam de ali brincar, ao ar livre.

Menos Lívia, ela gostava de brincar no sótão, pois era o local preferido da sua avó.

Gostava de passar horas e horas a brincar lá em cima, com a avó. Retiravam as roupas antigas dos baús, mascaravam-se e faziam festas de chá enquanto conversavam com meninas imaginárias.

Nunca conseguiu entender o motivo pelo qual os pais nunca mais a deixaram visitar a avó. “Essa é uma questão da tua avó e da tua mãe”, era a resposta do pai. Já a mãe desconversava quando era questionada e mudava de assunto ou dizia categoricamente que não queria falar sobre aquilo.

Agora, em frente à escadaria de acesso à casa, sentiu que teria as suas respostas. Esse conhecimento provocou-lhe um calafrio pela espinha abaixo. Tenho de prosseguir, pensou. Não percorri trezentos quilómetros em vão. Ergueu a cabeça e subiu as escadas de forma decidida.

Colocou a chave dourada na fechadura da porta de madeira maciça e girou. No momento em que ela se abriu, foi inundada por um fragmento de memória.

Lívia, treze anos, estava de volta do sótão com a avó e acabara de descer quando foi interpelada pela mãe. Visivelmente alterada, esta repreendeu Lívia veementemente pela sua visita ao sótão. Rapidamente, gerou-se uma acesa discussão entre mãe e avó, e Lívia sem entender o porquê. Deu-se então a ruptura na família e foi esta a última visita da jovem ao casarão.

Uma corrente eléctrica percorreu-lhe o corpo, fazendo-a estremecer. Como pudera esquecer-se daquela altercação estranha entre a mãe e a avó, a conversa que mudara a sua infância.

Ainda azamboada por aquela memória, entrou pé ante pé. A casa estava submersa em escuridão, tentou ligar as luzes, mas sem resultado.

Com cuidado, palmilhou o piso térreo e abriu todas as janelas arcadas para deixar entrar a luz e arejar a casa. A mobília parecia estar toda coberta de um manto de neve sujo. Passou uma hora a sacudir e a dobrar os lençóis empoeirados.

Parou junto ao quadro de energia e ligou-o. Subiu e deixou as malas junto à porta do quarto de hóspedes, porque precisava de visitar o sítio preferido dela e da avó.

Um alçapão dava entrada para o sótão, uma escada encostada à parede permitia a subida.

O tempo não tinha passado pelo sótão, tudo permanecia igual e imutável. O chão de cimento pulverulento e irregular, as paredes de tijolo sujas e com teias de aranha, as vigas de madeira escuras e velhas. Espalhadas pela divisão três arcas antigas, uma cadeira a cair aos pedaços e uma ou outra peça de mobília antiquada e esquecida encostada à parede.

Pequenas partículas de pó dançavam no ar, iluminadas pelos poucos raios de luz que entravam pelas duas únicas clarabóias que serviam o espaço. Uma brisa bafienta vinda das telhas soltas assomou-lhe ao nariz e fê-la espirrar, acariciou uma das vigas de madeira negra e sentiu a sua aspereza e os seus nós rugosos. Afagou uma das arcas, seguindo com o dedo os desenhos talhados na mesma, enquanto pensava nos acontecimentos do último mês.

Numa bela tarde de Junho, caminhava pelo parque da cidade, junto ao lago, quando recebeu uma chamada de número desconhecido. Era o advogado da avó Júlia. A sua avó falecera de cancro no pâncreas. Havia iniciado o tratamento há seis meses, mas a doença estava num estado muito avançado e não houve mais nada que fazer.

Sentou-se com cautela na cadeira junto à arca. Tirou do bolso do casaco a carta que o advogado lhe deu em privado, depois da reunião de família e releu-a, passando a ponta dos dedos pela letra torta e esguia da avó.

Minha querida Lívia,

Se estás a ler esta carta é porque eu perdi a minha luta para o cancro, talvez tenha sido melhor assim. Já estou velha e cansada, preciso do meu descanso.

Eu sei que tanto a tua mãe, como o teu tio vão querer vender o casarão o mais rápido possível, não tanto pelo dinheiro, mas pelo receio que envolve um grande segredo e não posso deixar isso acontecer.

Neste momento, o advogado, com certeza, já vos informou de que o casarão foi vendido e o dinheiro dividido irmãmente, mas a verdade minha querida é que o casarão não foi vendido, ele apenas mudou do meu nome para o teu.

De onde veio o dinheiro então?

A família do teu avô era abastada e eu sempre tive uma vida pacata e com poucos luxos, por isso pude ao longo da vida juntar um bom pé-de-meia.

O meu último desejo, minha querida, é que tomes bem conta do meu casarão. És a única que aquelas paredes conhecem e deixarão lá viver.

Deves ter muitas perguntas, mas não te preocupes que elas serão todas respondidas a seu tempo, mas para isso acontecer tens de te mudar para o casarão.

Deixei o quarto de hóspedes preparado para ti.

Despeço-me com muito amor,

Avó Júlia

Acabou de ler e fechou os olhos. Foi tomada por uma emoção tal que a sua respiração vinha aos soluços. Numa tentativa de recuperar o fôlego, inspirou com força e o ar que sorveu vinha carregado de electricidade e de um odor acre.

Um sopro na nuca assustou-a, sentiu-se observada. Levantou-se rápido deixando cair a carta no chão e olhou em todo o redor, dando várias voltas sobre si mesma.

Foi então que ouviu uma voz rouca e metálica a ecoar pelo sótão.

Voltaste.

Piruteou no ar ao mesmo tempo que impeliu um guincho. Silêncio. Abanou a cabeça, tentando recobrar os pensamentos.

Queres brincar?

Passos ligeiros indicavam que não estava sozinha, mas não viu vivalma. Sentiu um toque gélido no seu braço, o seu coração disparou, mas o seu corpo estava paralisado.

Quando olhou de novo à volta, viu que em cima de uma das arcas, descansava agora uma caixa de sapatos velhos e um pequeno cartão com o seu nome, escrito na letra da Avó Júlia.

Lívia sentou-se no chão, colocando-se de pernas cruzadas e abriu a caixa. Dentro tinha duas fotos em preto-e-branco e três recortes de jornais, amarelados pelo tempo.

Retirou tudo da caixa com muita minúcia e começou a analisar o seu conteúdo.

A primeira foto era de um casal com uma criança de não mais de seis anos; o homem alto e magro com um farto bigode, numa pose muito direita e autoritária, tinha o braço esquerdo por cima da mulher de cabelos escuros e olhos tristes; na frente do homem, uma menina de cabelos claros olhava para cima na sua direcção. No verso da foto, na letra da avó, lia-se Honório, Dinora e Isabel Barreto.

Na segunda foto via-se o mesmo homem na mesma posição, mas agora com o braço por cima de uma jovem de cabelo claro, que olhava para ele. No meio dos dois uma criança de não mais de três anos, que reconheceu ser a sua avó Júlia. No verso lia-se Honório, Isabel e Júlia Barreto.

Todos os recortes de jornais estavam muito deteriorados, pelo que resolveu alinhá-los com muito cuidado no chão para os ler. Os recortes relatavam o desaparecimento de três crianças, de seis, sete e oito anos. Em cada reportagem vinha estampada a foto da menina desaparecida.

Lívia leu e releu várias vezes. Tentava auferir e interligar os acontecimentos, mas não tinha nenhuma explicação para o que acabava de ler.

Quando voltou para o quarto, sentiu frio, o corpo pesado e os olhos a arder. Deitou-se, tapou-se com uma manta e acabou por adormecer.

***

É de noite, uma menina loira dorme naquela cama. A porta abre lentamente. Uma sombra entra e tranca a porta. Aproxima-se da menina e deita-se a seu lado, despertando-a.

Chiu, Isa, é o pai.

Pai?

Sim, queria estar perto da minha princesinha mais linda. Isa, tu amas o pai?

Sim, muito — aconchegando-se mais.

Eu também te amo. Queria mostrar-te como as pessoas demonstram o seu amor um pelo outro.

Como quando abraças e dás um beijinho à mãe?

Sim, mas mais profundo. Não queres ser como a mamã?

Quero.

Eu mostro-te, mas é segredo nosso, não queres que a mamã tenha ciúmes nossos, pois não?

Não. Eu prometo que não conto.

O nosso amor é um segredo só nosso.

A mão de Honório percorre o pequeno corpo de cinco anos de Isa e toca na sua parte íntima, sobressaltando a menina. Depois, agarra na pequena mão de Isa e coloca-a sobre a sua masculinidade, afagando-a.

Lívia tentou gritar “Não, não faça isso, ela é apenas uma criança”, mas as palavras não saíram. Debateu-se, queria acordar, mas não conseguia e como se uma força a estivesse a puxar, ela foi arremessada de novo para o mundo dos sonhos.

Via agora a mesma menina, mais velha, talvez com uns dez anos. Espreitava o corredor por detrás da porta do quarto. Via Honório a falar carinhosamente com Dinora. Os olhos da criança fulminavam a mãe, ao mesmo tempo que arreganhava os dentes.

Ela chama o pai, “E o meu beijo?”. Honório salta de surpresa, e olha entre a mulher e a filha algumas vezes, antes de se dirigir à menina e dar-lhe um beijo no alto da cabeça, depois diz até logo e dá um beijo na mulher.

Isabel fica vermelha, bate com a porta do quarto. Na sua fúria começa a deitar todos os livros que estão em cima da secretária para o chão e a partir as molduras contra a parede. A mãe entra no quarto e pergunta: “O que se passa aqui Isa, ‘tás doida? Arruma já tudo.”

Isabel pára com o olhar perdido na parede e grita: “Não, agora vejo tudo muito claro. Sei o que devo fazer”. Com as mãos atrás das costas, abre a gaveta e retira uma tesoura de costura, corre para a mãe e enterra a tesoura treze vezes no seu tronco, enquanto diz repetidamente: “Ele é meu, meu, meu, e agora quem vai ser a sua mulher sou eu, para sempre”

Anos passam em segundos.

Agora vê Isabel um pouco mais velha, está sozinha no casarão e começa a ouvir sons vindos do sótão. Sobe ao sótão, o barulho vem de um dos baús. Amedrontada, abre devagar a arca e lá dentro está uma menina de sete anos. A menina encolhe-se e chora. Isabel tira-lhe a mordaça e pergunta: “Quem és tu e o que fazes aqui?”. “O meu nome é Julieta, um homem mau raptou-me e trouxe-me para aqui. Ele fez-me mal, ajuda-me.” Isabel esboça um sorriso que não lhe chega aos lábios, e diz: “Claro, espera aqui que eu vou buscar uma coisa”. Quando volta, mostra à criança uma tesoura. Depois de lhe cortar a corda que lhe prendia as mãos e levantá-la ainda dentro da arca, enfia a tesoura no pescoço da menina e continua por treze vezes. A mala é trancada.

***

Lívia conseguiu finalmente soltar-se das garras daqueles sonhos horríveis e acordou aos gritos, a suar. Arfava copiosamente. Dirigiu-se até à casa de banho anexa ao quarto e molhou a cara, quando se endireitou viu a sombra de uma criança reflectida no espelho. Virou-se de rompante para trás, mas não estava lá ninguém. Devo estar a ficar maluca, pensou para si mesma.

Foi até à janela do quarto. Era o fim da tarde e nuvens espessas e negras pincelavam o céu. Ligou a luz do candeeiro da mesinha-de-cabeceira e sentou-se na cama a pensar em todos aqueles sonhos estranhos, obviamente provocados pelas fotos e recortes da caixa da avó.

***

Acordou às escuras, ia jurar que tinha ligado a luz, pensou. Carregou várias vezes no interruptor do candeeiro, mas não funcionava. Tacteou na escuridão pelo seu telemóvel e ao encontrá-lo ligou a lanterna.

Quando a claridade banhou o quarto, fez surgir à volta da cama três meninas com sorrisos arrepiantes, quais personagens dos filmes em preto-e-branco dos anos cinquenta. Claramente identificou-as como as crianças desaparecidas dos recortes de jornal.

Lívia gritou histericamente e no alvoroço deixou cair o telemóvel, ficando sem fonte de luz. Tentou procurá-lo, mas não o encontrou. De súbito, sentiu na escuridão uma mão pequena, de toque áspero e gélido agarrar-lhe no braço, puxando-o.

A voz metálica ecoou de novo.

Ajuda-nos, ela matou-nos, mas quem nos fazia mal era ele. Estamos nos baús, livra-nos dele.

Pediu força a Deus, fechou os olhos e gritou insanamente.

Deixem-me em paz.

Tudo ficou em silêncio, abriu os olhos para reparar que a luz do candeeiro estava ligada e o telemóvel sossegado na mesa-de-cabeceira. Será que sonhei, esta casa está a pôr-me doida, pensou.

O sol começava a mostrar-se no horizonte, levantou-se para tomar o pequeno-almoço, mas no corredor começou a ouvir passos no sótão e algo a arrastar. Não conseguiu mais, sonhos ou não, tinha de pôr um fim a tudo isto.

Subiu resoluta até ao sótão, abriu os baús e tirou as roupas velhas, por baixo de tudo encontrou os ossos das crianças. Teve pena delas, eram apenas pequenas almas injustiçadas e perdidas.

A atmosfera esfriou e pôde sentir a electricidade estática no ar, ali no meio das arcas abertas elas manifestaram-se.

Fechou os olhos e orou a Deus, com todo o fervor. Invocou o seu nome em nome do seu filho, pediu que livrasse aquelas almas e as levasse para junto dele, para que pudessem finalmente ter o seu eterno descanso. Enquanto falava, o ar à sua volta tornava-se mais denso, o vento soprava, até que por fim tudo acalmou.

Abriu os olhos e sentiu a leveza no ar. Um sorriso desenhou-se na sua cara e relaxou os ombros.

Depois, pegou nas ossadas das meninas e enterrou-as no jardim, lendo um pequeno trecho bíblico.

***

Na madrugada seguinte, acordou de surpresa. Estava a ter um sonho maravilhoso com o seu eterno amor de juventude, quando, a meio do sonho, o velho Honório apareceu. Gritava com ela por lhe ter tirado as suas pequenas mulheres, dizia-lhe que agora teria de tomar o lugar delas e satisfazê-lo.

O nojo foi tanto que teve de correr para a casa de banho e expelir o jantar da noite anterior.

Entrou no quarto, deitou-se novamente na cama.

A cama estremeceu e ouviu unhas a esgravatar na madeira, tentou mexer-se, mas o seu corpo estava inerte. Das sombras ergueu-se uma jovem mulher de cabelos claros, nas suas mãos trazia uma tesoura. Os seus olhos sanguinários eram arrepiantes e uma voz estridente ecoou pelo quarto fazendo tremer a casa.

Ele é meu, não o podes ter, é meu, meu, meu.

O espectro de Isabel Barreto lançou-se sobre Lívia, que continuava paralisada, perfurando-a treze vezes.

O sangue jorrava pelos orifícios. Lívia sentiu-se tonta e enjoada. Tremia com espasmos e tentava falar, mas o único som que saía era soluçado e gargarejado de sangue. Ainda suspensa por um fio de vida, sentiu-se a ser arrastada pelos cabelos deixando um rasto do seu suco interior pelo chão da casa. Foi elevada até ao sótão e atirada para dentro de um dos baús. O baú foi trancado.

FIM

Este conto faz parte da antologia de contos de terror (In)Cômodos, onde o mal habita, disponível na Amazon