Marcos Siqueira

Deixado para trás

  • Gênero: Drama

Nenhum outro dia foi tão marcante para João como aquela segunda-feira nublada e cinza. Não por algo que Carla tivesse feito, mas sim pela sua total indiferença. O que o fez refletir sobre seu casamento, sobre a paternidade, e sobre si. Aliás, já eram 9 horas e estava atrasado, pegou o casaco, comeu mais um pedaço de pão, tomou um último gole de café e saiu.

Durante a espera no ponto de ônibus pensava no que havia feito de errado, mas não conseguia encontrar na memória o momento exato em que tudo desandou. Talvez este momento não existisse mesmo, geralmente mudamos dia a dia ‒ às vezes de forma tão gradual ‒, que é impossível identificar o momento que a casca se parte e a metamorfose acontece. João não estava com cabeça para trabalhar, então pegou o celular, ligou para seu patrão e pediu um dia de folga.

Caminhou até o centro da cidade ‒ João sempre gostava de caminhar quando precisava pensar ‒ passou em frente a igreja que seus pais, há muito tempo, frequentavam e sempre o traziam para as missas de domingo. Reduziu o ritmo dos passos. Pensou um pouco. Respirou fundo. Pensou mais um pouco. E por fim… decidiu entrar.

Não era religioso, mas sua mãe era católica. Pensou que aquilo poderia ter algum valor de barganha com o “Todo Poderoso”, então, sentado em um dos confortáveis bancos de madeira, suspirou, abaixou a cabeça, encolheu os ombros e rezou tentando, por meio da ajuda divina, de alguma forma mágica ter tudo resolvido.

Ao terminar a oração não sentiu nada de diferente, isso apenas confirmou sua condição de ateu. Levantou os olhos para o alto e mirando os belos ornamentos barrocos daquela construção ‒ que, aliás eram de fato impressionantes ‒ lembrou-se de como seu relacionamento costumava ser: de sua romântica lua de mel em Gramado, da felicidade de quando entraram pela primeira vez no novo lar, dos passeios que fazia com Carla e seu filho Lucas, e, tantos outros momentos felizes. Mas logo veio a memória também as constantes brigas por causa da toalha molhada sobre a cama, a quantidade exagerada de sal e vinagre na salada, e a velha discussão sobre o momento certo para consertar o telhado ‒ que com certeza não era durante o jogo de futebol ‒, isso inclusive havia explicado para Carla diversas vezes que, por sua vez, teimava em não entender e se enfurecer pela demora. Até que chegou um dia que o único condimento que temperava a salada era o vinagre, e toda sua fúria pela inércia de João tornou-se indiferença.

Após refletir sobre estes assuntos, levantou-se do banco e caminhou em direção a robusta porta de madeira que embelezava a entrada da igreja, decidido a voltar para casa começou a cruzar o pátio central quando ouviu uma voz gritando:

‒ Ei, me ajude! Tem alguém aí?

João percebeu que a voz vinha de um poço que ficava no pátio de trás da igreja. Imaginou que fosse alguém em perigo, então correu para ver do que se tratava. Se aproximou do poço e se inclinou sobre a mureta de tijolos, que lhe servia como proteção enquanto gritava:

‒ Olá, tudo bem aí embaixo? 

‒ Olá, está tudo bem, não me machuquei com a queda, mas acho que vou precisar de ajuda para sair ‒ falou a voz vinda do poço.

‒ Claro, mas o que houve?

‒ Hã! Bem… só lembro estar procurando minha joia que caiu aqui. Debrucei-me sobre a mureta, mas não consegui alcançá-la porque o poço era mais profundo do que imaginei, então acabei caindo e não consegui mais sair.

Era um poço raso, mas apesar de não ter muita profundidade não conseguia ver direito o rosto da pessoa que estava presa ali. Não pensou muito, apenas estendeu a mão, que foi agarrada com força, o que fez com que João caísse no poço enquanto tirava o rapaz ‒ até então preso ‒ da sua situação. João pediu por ajuda, mas já não havia ninguém ouvindo que pudesse ajudá-lo.

 

* * *

 

Após muito gritar João se acalmou.

‒ Como assim? Paro para ajudar um estranho e acabo nesta situação? Falou enfurecido. “Nunca mais paro para ajudar ninguém, nunca mais”, pensou consigo mesmo. 

Para ele não fazia sentido tudo o que aconteceu. Sentou-se encostado na parede para descansar quando notou um brilho amarelado no canto oposto ao que estava, era a tal joia que o homem havia perdido.

‒ Realmente é muito bonita ‒ disse João olhando fixamente o objeto enquanto o segurava entre seu polegar e o dedo indicador.

Notou também que era uma pedra bem mais pesada do que aparentava, apesar de pequena.

‒ Vou dar o fora daqui, e a partir de agora ela será minha ‒ falou convicto.

Tentou agarrar a mureta da borda do poço, mas não alcançava.

Percebeu que um dos tijolos da mureta estava desgastado, então deixou de tentar alcançar o topo do muro e se concentrou nele. Tomou impulso, pulou, e acertou um soco certeiro transformando parte da mureta em uma chuva de poeira e cacos. Bem desagradável, pois seus cabelos ficaram cheios de pó. Pelo menos agora poderia usar o buraco recém-criado na parede como apoio para se suspender e então sair dali.

Após tentar, e falhar, percebeu estar muito pesado e não conseguia se suspender. A princípio não compreendeu ‒, pois sempre subiu em muros até mais altos do que aquele ‒ até que notou que a pedra estava muito mais pesada, de modo que o peso da mesma o trazia para baixo, teria que deixá-la ali mesmo. Olhou para ela, pensou bem, tentou novamente, pois não queria deixar ali o único espólio resultante daquele momento desagradável e dessa vez, num esforço sobre-humano, conseguiu puxar o corpo para cima. Primeiro uma mão. Depois a outra mão. Em seguida a cabeça, e em poucos segundos, completamente exausto, seu corpo estava para fora do poço.

 

* * *

 

Ok, já entendera que aquele não era de fato seu dia, olhou em seu relógio e viu que já eram 15 h. Decidiu voltar para casa, contaria a sua esposa e ao filho a verdade, que pegou o dia de folga, saiu para caminhar um pouco e chegou em casa mais cedo.

Ao chegar em casa notou uma movimentação estranha, a porta estava aberta, isso é algo que geralmente não acontecia. Como o bairro em que moram fica distante do centro e já foram assaltados algumas vezes, Carla costumava manter a porta sempre fechada a menos que João estivesse em casa.

João contornou a casa pelo corredor, cautelosamente, e quando passou pela janela da sala de jantar viu de relance algo em que não quis acreditar. Em um primeiro momento pensou estar cansado demais, porém logo percebeu ser inútil lutar contra a realidade, sim, havia outro homem na casa. E não, não era um bandido apesar de ter desejado que fosse.

João não sabia o que fazer, ficou completamente atordoado pela raiva, decidiu não fazer nada no momento, pois com certeza faria alguma besteira. Sentou-se embaixo da janela de modo que ninguém pudesse vê-lo, inspirou fundo, e com cuidado tornou a espiar, mas apenas confirmou a decepção. Tornou a se esconder embaixo da janela.

Enquanto se lamentava notou algo muito estranho, a voz do homem era idêntica a do rapaz com quem falara no poço horas antes. Não aguentando mais ouvir os sons de prazer que vinham da cozinha, espiou uma terceira vez, não que gostasse de sofrer, mas ainda não queria acreditar em tudo aquilo. 

Pois bem, na terceira vez que João espiou, viu algo incrível. Já estavam se vestindo quando João viu o rosto do homem, e percebeu ser idêntico ao dele, o que fez sua mente entrar em uma espiral de confusão. Como era possível? Isso com certeza eximia Carla da culpa ou pelo menos amenizava as coisas. Decidiu entrar e acabar com a festa daquele impostor de uma vez por todas.

Voltou pelo corredor de onde viera e entrou pela porta da frente. Notou que Carla havia voltado a colocar flores na sala, algo que há muito tempo não fazia. Entrou pela cozinha e viu Lucas parado próximo à mãe, notou estarem conversando, a princípio meio sem jeito, só enquanto Carla ajeitava o cabelo e o rapaz terminava de abotoar as calças. Logo Carla e o Impostor se achegaram ao menino carinhosamente. 

João não ouviu direito o que estavam conversando, mas estranhamente se sentiu convidado a apreciar aquele momento. Viu que era um momento feliz, um momento que há muito tempo não vivenciava, apesar de estar parado na entrada da cozinha se sentiu como se estivesse ali entre eles, sendo abraçado e abraçando cada membro da sua família.

Ver os três ali, como a família que um dia foram, o deixou emocionado e contente em certa medida, e logo percebeu que não notavam a sua discreta presença, então decidiu sair daquele local e ir para longe; não queria estragar aquele momento. Caminhou até a igreja no centro da cidade arrastando aquela pesada joia ‒ pensou em devolver ao verdadeiro dono, mas teve certeza de que não faria mais falta ‒ se lançou de volta ao poço e dali nunca mais saiu.

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