Rosângela Martins

O Mistério da Campainha

  • Gênero: Suspense | Público Jovem Adulto

Qualquer dia, em Paris, no ano de 1857.

Émile, menina de modos delicados, olhar baixo e gestos contidos estava no auge dos seus catorze anos. Mas nem o trabalho pesado ou o uso de roupas sujas, ou maltrapilhas, tiravam-lhe o brilho do despertar da adolescência. Os vizinhos frequentemente a viam varrendo a soleira da porta ou levando cestos de compras, sem nunca erguer a voz.

Certa manhã, no mercado, uma conversa discreta ecoou entre as barracas de frutas e verduras.

— Dizem que a pequena Émile atrai desgraças… — cochichou uma peixeira, ajeitando o lenço na cabeça.

— Besteira! É apenas uma criança — retrucou a florista, ainda assim lançando um olhar apreensivo na direção da casa dos Briot.

— Toda história tem um fundo de verdade. A senhora Gambart disse que tem desaparecido roupas do seu varal. E as garrafas de leite aparecem vazias em sua porta. Ela reclamou com o leiteiro, mas tudo indica que alguém está roubando o seu leite também.

A vida seguia tranquila, apesar dos constantes comentários espalhados pela senhora Gambart, no mercado e na vizinhança.

A senhora Gambart, era vizinha dos Briot e conhecida por seu humor instável. Ninguém sabia ao certo por que alimentava tanto rancor a ponto de acusar a menina Émile pelos seus infortúnios. Talvez inveja da afeição que os Briot tinham pela pequena empregada, ou quem sabe algo mais profundo e obscuro que ninguém sabia.

Até que, numa tarde enevoada, algo que ninguém poderia prever ocorreu.

Naquela tarde, Gambart apareceu no pátio interno da residência dos Briot, empunhando uma velha vassoura. Seus olhos faiscavam de raiva.

— Maldita fedelha! Vou te ensinar uma lição!

Émile, assustada, recuou até a porta. Tentou puxar o cordão da campainha para pedir socorro, mas percebeu que ele estava rompido e ela não o alcançava. O desespero tomou conta de seus gestos, os olhos marejados de pavor.

De repente, como por encanto, a campainha soou por conta própria, com um tinido claro que ecoou pelos corredores.

Monsieur Briot surgiu correndo, empalidecido, seguido por um criado.

Quando a porta se abriu, Émille entrou feito um raio, abrigando-se na cozinha. Do lado de fora, a senhora Gambart e Monsieur Briot apenas se encararam e logo deram meia-volta. O chefe da casa não precisou de palavras para perceber o ódio no olhar daquela mulher.

Na mesma noite, a campainha voltou a tocar. Primeiro, por volta das nove, quando a família se reunia para o chá. Depois, às onze, acordando madame Rose de um sono inquieto.

Porém, cada vez que alguém corria até a porta, não havia viva alma.

Monsieur Briot, homem de razão, tentou encontrar uma explicação lógica.

— Deve haver um fio solto, talvez um moleque travesso… — murmurava, examinando a parede, a campainha e o batente da porta.

Mas os dias passaram, e o mistério apenas se aprofundou.

O som ressoava pela casa em horários aleatórios, assustando os criados e alimentando rumores no bairro.

Preocupado com a perturbação crescente, Briot decidiu procurar o comissário Lefèvre, homem meticuloso e cético, conhecido por resolver casos estranhos com frieza quase científica.

Lefèvre visitou a casa numa manhã chuvosa. Sua figura imponente percorreu cada cômodo, acompanhada por um ajudante que anotava tudo em um caderno de capa preta.

— Algum fio secreto? Alguma passagem oculta? — perguntou Lefèvre, encostando o ouvido na parede.

— Nada, senhor comissário — respondeu o ajudante, após minuciosa inspeção.

Lefèvre olhou para Émile. Os olhos da menina, grandes e castanhos, refletiam mais medo que culpa.

— E quanto a você, mocinha? Não tem algo a confessar?

— Eu… juro que não, senhor — respondeu Émile, com voz trêmula.

O comissário suspirou. O mistério permanecia.

A Travessa dos Panoramas fervilhava de histórias. Uns diziam que era engenhosa armação da menina; outros, que a casa era assombrada pelo fantasma de algum antigo morador. Entretanto, a única verdade é que cada novo toque da campainha, o pânico crescia.

As feiras, cafés e confeitarias tornaram-se pontos de encontro para as teorias mais fantásticas. A palavra “espírito” surgia cada vez com mais frequência, alimentando a imaginação e a curiosidade local.

Émile passou a andar de cabeça ainda mais baixa, sentindo o peso dos olhares que a perseguiam por toda parte.

Na sala de jantar, iluminada por candelabros, Briot conversava com madame Rose, aflita:

— A culpa não é de Émile, Ernest. Eu vejo em seus olhos que ela está apavorada…

— Eu sei, querida. Mas a cidade inteira fala. Se não tomarmos providências, nossa família ficará marcada.

O silêncio pairou por instantes, até Briot bater levemente a mão sobre a mesa.

— Vou pedir a um casal de amigos no campo que fique com ela por um tempo. Talvez assim tudo volte ao normal.

As palavras pesaram no ar, como uma sentença.

Na manhã seguinte, com o coração apertado, Émile arrumou seus poucos pertences em uma trouxa. Despediu-se dos patrões com os olhos marejados.

— Cuide-se, menina — disse madame Rose, contendo as lágrimas.

O coche partiu lentamente, levando Émile pela estrada de terra molhada até uma casa modesta no interior.

Assim que Émile partiu, a campainha silenciou. Nenhum toque, nenhum ruído estranho. O sossego voltou à residência Briot, mas junto dele, uma sensação de vazio e culpa.

O comissário Lefèvre, ao saber do desfecho, comentou com o ajudante:

— Interessante, não? A campainha parou no mesmo instante em que a menina foi afastada.

— Então era ela a responsável? — indagou o ajudante.

— Ou algo… que a acompanhava — disse Lefèvre, pensativo, fixando o olhar na janela que dava para a rua.

Então Émile viveu tranquila no campo, longe dos olhares acusadores da cidade. Nunca mais se ouviu falar de campainhas que tocavam sozinhas.

Na Travessa dos Panoramas, porém, alguns juravam ainda escutar, nas madrugadas mais frias, um leve tinido distante — como o eco de um mistério jamais resolvido.

Observação

Esta história é uma adaptação livre de uma das primeiras narrativas da Revista Espírita 1858, de Allan Kardec.

Observação do Autor

Adaptação livre de uma das primeiras narrativas da Revista Espírita 1858, de Allan Kardec.

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