Loucura Real

  • Gênero: Terror | Público Jovem adulto

Quando Maria Alice entrou na Estação Ferroviária de Desterro do Melo, seus pés ganharam velocidade. Suas mãos tremiam dentro do bolso e ela tentava conter a alça da mochila, que escorregava pelo ombro. Era meio-dia, o som dos sinos de uma igreja próxima ressoava e o trem estava prestes a partir.

— Dois bilhetes. Ida e volta — ela pediu afoita, apanhando uma luva de tricô guardada entre os seus pertences e colocando-a rapidamente para ocultar as unhas sujas de sangue. Maria Alice sequer olhou para o vendedor na cabine.

— Para agora é impossível, senhorita. O trem para Santa Cruz dos Murmúrios já está saindo. O próximo parte às 15h.

— Mas eu preciso para agora! — Ela jogou as moedas no balcão e encarou o homem com olhos de desespero.

Ele engoliu em seco.

— A senhorita pode soltar a minha mão?

A jovem nem notou que apertava com força a mão do vendedor.

— Desculpe — ela tomou fôlego. — É que estou com pressa.

— Se não se importar de pegar o passeio turístico na locomotiva a vapor… O trajeto é um pouco diferente, mas o destino é o mesmo.

Maria Alice olhou para o lado e encarou o aço negro da locomotiva, que não demorou muito para ser engolido por uma nuvem de fumaça.

— Maria Degolada — a jovem deixou escapar.

— Como disse? — o vendedor perguntou.

— Não disse nada. O importante é chegar em Santa Cruz dos Murmúrios.

Ele sorriu e lhe entregou um bilhete.

Assim que Maria Alice subiu os primeiros degraus do expresso turístico, percebeu a queda na temperatura. Prosseguiu pelo corredor, com um olhar no bilhete e o outro nas poltronas. Procurava pelo assento 13. E quando o encontrou, se deparou com um garotinho magro, usando boina e com um gibi na mão.

— Você está no meu lugar.

Ele apenas se arrastou para o assento do lado.

Maria Alice se aprumou e com as mãos escondidas dentro da mochila, retirou as luvas e começou a limpar as unhas com um lenço umedecido.

O menino a fitou.

— Por que está me olhando? — Ela o indagou.

— A senhora não parece bem.

— Senhorita — corrigiu-o, prosseguindo com sarcasmo: — Obrigada pelo elogio. 

— Eu entendo — o garotinho disse, fechando o gibi.

     A jovem      disparou-lhe um olhar de ira, mas quando seus olhos recaíram sobre as mãos do menino percebeu que as unhas dele estavam tão sujas quanto as dela.

— Tome. Acho que está precisando de um — Maria Alice ofereceu-lhe um lenço umedecido.

O menino o apanhou, avistando sangue nas mãos da jovem.

— O que a senhorita fez? — perguntou, após um suspiro.

— Trabalho com pintura. É tinta — ela respondeu, recordando-se do seu corpo sobre o de sua mãe e um vaso de plantas de concreto que descia e subia, na direção do crânio daquela que lhe dera a vida.

— E está na moda usar vermelho nas paredes?

— Não. É preciso coragem para se ter uma parede vermelha em casa — e a cena de seus pés esmagando as costelas do irmão mais novo lhe sobreveio. Tão pequeno quanto aquele garoto, ele não teve força suficiente para se defender, restou apenas o sangue e esguichos pelas paredes.

Maria Alice pareceu confusa, mas sorriu.

— Parece que gosta do que faz — o garotinho comentou.

— Não, eu só faço o que é necessário. Sabe… é difícil. Mas depois que você entende o que precisa ser feito, torna-se mais fácil. E confesso, dessa vez foi bem demorado o processo.

— Por quê? Eram muitas paredes?

 

***

 

A jovem lembrou-se de quando estava deitada no divã. Olhava para o teto e enxugava as lágrimas.

— Eu já fiz de tudo para me entenderem! Às vezes até me sinto compreendida, mas… depois, vejo a mentira em suas feições. Eles têm medo de mim — desabafava.

— A chave da resolução desse problema está dentro de você, Maria Alice — a psicóloga falou.

— Você sempre diz isso, doutora, mas não é tão simples!

— É mais simples do que você imagina. Se enxergar dessa forma, é claro.

Hunf! Queria ver se fosse com você. Como resolveria isso, doutora!?

 

***

 

— Sim, muitas paredes — Maria Alice respondeu ao menino.

— A senhorita poderia ter chamado mais gente para te ajudar.

— Prefiro trabalhar sozinha. Só procuro ajuda quando estou em dúvida.

— Meu pai também.

— Sério? E quem ele procura?

— Pelo que me lembro, minha madrasta.

— Hahaha! Não me parece uma sábia escolha.

— Esse lenço não me ajudou muito. Tem outro? — As mãos do menino ainda estavam no mesmo estado que antes.

— Pegue — ela estendeu o pacote de lenços. — E onde está seu pai?

— Está por aí… A gente veio fazer o passeio turístico.

— Seria melhor procurá-lo. Ele pode estar preocupado com a sua ausência.

— Não. Ele não me quer por perto… Tome senhorita, seu lenço não está me ajudando mesmo.

E ao devolver o lenço, os dedos do menino tocaram a mão da jovem. Maria Alice notou que eles estavam arroxeados e gelados. Um mal-estar lhe sobreveio.

— Você está com frio?

— Não sinto frio, nem calor — respondeu o garotinho.

— Você… está gelado — ela disse, olhando fixamente para os olhos do menino.

— Fiquei assim desde que meu pai me enterrou.

Os olhos de Maria Alice arregalaram-se.

— Talvez seja por isso que seus lenços não me ajudam, senhorita. Ainda estou debaixo da terra.

A jovem tentou disfarçar o pânico.

— Faz 80 anos que isso aconteceu — o menino completou.

E, após isso, toda pele que envolvia o corpo do garotinho secou. A roupa ficou retraída, a face e as mãos murcharam até ficarem apenas seus ossos debaixo da roupa.

— AHHHH! — Maria Alice gritou. Rapidamente apanhou a mochila e correu pelo corredor da locomotiva.

Seus passos acelerados deixaram assentos e mais assentos para trás, passageiros com olhos negros e fundos. Alguns fitavam-na, outros pareciam alheios à sua presença, hipnotizados pelas paisagens da Serra da Mantiqueira.     

Foi quando um vendedor de doces atravessou o seu caminho e eles quase se trombaram.     

— Cê qué um doce de abóbra? — perguntou o homem.

— Quero um guarda. Preciso de um guarda! Viu um por aqui?

— Que qui cê tá arrumano? É mió cê sentá.

— Tem um menino no assento 13, onde eu estava. Ele foi morto — Maria Alice falou, se aproximando do vendedor. — Precisamos fazer alguma coisa!

— Cêbesta, sô! Mió cê senta. Vai arrumá probrema cuá Maria Degolada.

— Maria Degolada!? — ela se recordou de onde estava. Deu três passos para trás e observando a bandeja do vendedor de doces, avistou diversas larvas.

— Uai! Num óia assim não, moça. O que num mata, engorda — o vendedor falou ao ver a expressão de nojo no rosto da jovem     .

Ela deu-lhe as costas e correu o mais rápido que pôde. A luz que adentrava pelas janelas sumiu. Tudo ficou escuro, e o som abafado da locomotiva cortando o vento dentro dos túneis da Serra da Mantiqueira começou a fazer pressão nos      ouvidos de Maria Alice. Uma tontura persistente quase fez seu corpo despencar e, retornando com dificuldade pelo caminho percorrido, a jovem passou a avistar esqueletos e mais esqueletos — a pele dos passageiros que anteriormente a fitavam havia desaparecido; todos eram apenas caveiras. As batidas de seu coração aceleraram.

Assento 13. Maria Alice jogou-se ao chão, no vão entre os bancos, tapou os ouvidos com as mãos e começou a chorar desesperada! Precisava distrair-se. Então, pegou o seu discman e deu play. Música!

— O que é isso? — o menino de outrora lhe perguntou.

A jovem abriu a boca para soltar um grande grito, que ele abafou com as mãos.

— Eu consigo escutar o que a senhorita está ouvindo. É melhor desligar! — O garotinho avançou sobre o aparelho, apertando vários botões, que faziam a música parar e retroceder. — Desliga isso! — insistiu e, como a música estava pausada, Maria Alice o escutou.

— Não! Vou ficar escutando isso até chegar a Santa Cruz dos Murmúrios.

— Ela vai escutar!

— Ela quem? — Maria Alice perguntou.

E, nesse momento, o som de passos sobre o chão do trem calou os dois.

Os passos eram leves e acompanhados de um material cortante, que se aproximava cada vez mais.

— Não olhe nos olhos dela, senão vamos ter que te buscar, onde quer que a senhorita esteja.

Mas Maria Alice não se conteve. Assim que viu os pés debaixo dos bancos, ergueu a cabeça e encarou aquela alma.

— Maria Degolada — falou estupefata, com uma voz que lhe custou a sair.

 

***

 

— Senhora? — Um guarda tocou o ombro da jovem, que estava com a cabeça apoiada à janela. — Desculpe acordá-la, mas chegamos a Santa Cruz dos Murmúrios. A senhora perdeu todo o expresso turístico.

Maria Alice o encarou e demorou um bocado de tempo para se recompor, observando tudo à sua volta.

Aquilo não passava de um pesadelo? Maria Degolada… onde já se viu acreditar em lenda urbana… — pensou, descendo do trem com pressa e indo em direção ao consultório em que fazia terapia.

Ao chegar, a recepção estava vazia e a porta da sala da doutora encontrava-se entreaberta. Maria Alice não pensou duas vezes e entrou.

A jovem se lançou no divã e começou a despejar todos os conflitos que a afligiam:

— Estou com muito medo! Muito medo, doutora. Não sei o que fazer… Eu fiz exatamente como você me disse, do jeitinho que me aconselhou. Primeiro matei minha mãe, depois o meu irmão. Só estou com medo. E se me descobrirem? O que vou fazer? Sinto que resolvi meu problema, mas… Não quero ser presa! Consegue me entender? … Doutora?

A recepcionista entrou na sala.

— Pensei que a doutora não iria vir hoje! Nunca se atrasa… Mas fiz seu café, como sempre, sem açúcar — e estendeu a xícara na direção de Maria Alice.

— Cadê a doutora?

A recepcionista gargalhou:

— A senhorita tem um humor e tanto! Seu primeiro paciente acabou indo embora, mas logo mais o segundo estará por aqui. Posso te ajudar com algo mais, doutora?

Maria Alice pegou o café e levantou-se do divã, se aproximando da janela e avistando a locomotiva no final da rua.

— Não — respondeu, atônita.

Não demorou muito para que saísse do consultório com seu discman. A recepcionista pareceu questionar-lhe, mas ela não estava escutando nada, apenas a música. E seguiu assim, atravessando a rua inteira sem piscar e andando, como um zumbi, na direção da Estação Ferroviária de Santa Cruz dos Murmúrios.

Diante da locomotiva, ela olhava para a janela e via Maria Degolada a encarando de volta.

— A senhorita precisa comprar um bilhete se desejar subir — disse um guarda.

Mas Maria Alice o ignorou.

Virou as costas e seguiu caminhando pelo canteiro da ferrovia, saltou as grades e se posicionou no meio dos trilhos, aumentando ao máximo o volume do discman.

 

Enquanto você se esforça pra ser

Um sujeito normal e fazer tudo igual

Eu do meu lado aprendendo a ser louco,

Um maluco total, na loucura real.

Controlando a minha maluquez

Misturada com minha lucidez

Vou ficar,

Ficar com certeza

Maluco beleza.

Eu vou ficar,

Ficar com certeza

Maluco beleza

 

A locomotiva surgiu no horizonte e começou a se aproximar, envolta na fumaça. Maria Alice abriu os braços e cantou até sua voz se calar para sempre.

 

Esse caminho que eu mesmo escolhi

É tão fácil seguir, por não ter onde ir

Controlando a minha maluquez,

Misturada com minha lucidez, eu…

 

***

 

— Oi! Trouxe para a senhorita — Era o garotinho que ela havia conhecido mais cedo.

Ele entregou-lhe o discman que tinha ficado sobre os trilhos e os dois seguiram juntos, sentados lado a lado, a viagem.

 

***

 

No dia seguinte, uma manchete estampava os jornais:

 

 

Observação do Autor

Este conto faz parte da Antologia Santa Cruz dos Murmúrios, do Boteco Editorial.

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