Francisca atravessou a entrada espelhada do edifício onde trabalhava. Pelo canto do olho viu-a a olhar para si e a sorrir-lhe desdenhosamente. Desviou o olhar, ignorando-a e seguiu para o elevador. Já estava atrasada.
***
Concentrada no seu trabalho nem reparou na presença de Roberta no seu pequeno cubículo.
— Então já recebeste o convite? — perguntou Roberta enquanto esfregava uma mão na outra.
— Ai, mulher, que susto! Já te disse para não apareceres assim de repente, ainda me provocas um ataque cardíaco. — Francisca respirou fundo, endireitou-se na cadeira e com uma voz mais calma perguntou: Qual convite?
— Para o baile de máscaras, claro!
— Baile? Como é suposto recebê-lo? — Francisca franzia o sobrolho e inclinava ligeiramente a cabeça.
— Vai ao teu correio electrónico se faz favor. Vês? Aí está, já recebeste.
— Uau! Um baile de máscaras nos jardins do Parque de Serralves, que luxo! — Francisca não conseguia tirar os olhos do convite colorido.
— Exacto. Convidaram todos os departamentos, acho que se vai reunir lá toda a comunidade de Marketeers do Porto. Vai ser uma festa de arromba. — Roberta saltitava freneticamente.
— Estou a ver que sim. — Francisca sorria observando a criança na qual a sua amiga se tinha tornado, por breves segundos.
— Temos de ir às compras, miga. Sei de uma loja excelente onde podemos comprar as máscaras. Estou tão animada que nem tenho palavras. — Roberta já imaginava várias indumentárias possíveis na sua cabeça, as possibilidades eram infinitas. Sem esquecer que tinha de marcar cabeleireiro e depilação. Ai tanta coisa para fazer!
— E estás a contagiar-me — Francisca riu-se expansivamente fazendo o seu corpo ondear ao sabor da sua gargalhada.
— Estás diferente. — Roberta observava-a com atenção — Há duas semanas para cá que estás mais… presente, o teu olhar mais seguro e confiante. Costumas ser tão apagada, tímida, mas ultimamente estás mais… viva, digamos. Gosto.
— Talvez tenhas razão, não sei… — disse Francisca numa voz baixa, desviando o olhar para o chão.
— Anda gato novo na praia? — indagou Roberta enquanto piscava o olho. Nunca tinha visto Francisca com ninguém, nem a falar de algum interesse amoroso.
— Não. Tudo na mesma. Solteira e boa rapariga — Francisca esboça um sorriso que não lhe atinge completamente os olhos.
— Estou a pensar ir almoçar ao Centro Comercial Aviz, queres vir?
— Agradeço o convite, mas tenho muito trabalho para acabar e sinceramente prefiro não me cruzar de novo com a Maya — Conforme as últimas palavras são proferidas, tapa automaticamente a sua boca com a mão.
— Maya? Quem é essa? Eu conheço?
Os olhos de Francisca movimentam-se rapidamente, enquanto o dedo indicador tocava batuque no braço da cadeira.
— A Maya é… — Francisca engole em seco e prepara a garganta soltando um pequeno grunhido — alguém da minha infância, digamos que ela não gosta particularmente de mim ou eu dela. Sempre que me cruzo com ela na entrada ou nos lavabos, ela lança-me olhares e sorrisos sinistros — Francisca limpava agora as mãos na sua saia preta.
Notando o seu desconforto, Roberta não insistiu mais na conversa.
— Bem, vou indo, mas falamos mais tarde para combinarmos as compras.
***
Na noite da festa, Francisca preparou um banho de imersão com sais de lavanda e rosa e deixou-se ali estar dentro até a água arrefecer e o cheiro a rosas desvanecer. Depois de se passar por água para retirar a espuma, saiu da banheira e enrolou-se na toalha. O espelho da casa de banho estava embaciado, não deixando ver o seu reflexo, mas Francisca preferia assim.
Já no quarto, parou para apreciar o seu vestido que se encontrava pendurado no guarda-roupa. Passou os dedos pela textura rugosa e fria dos bordados dourados do corpete em formato de coração. Era um vestido de tule branco, cingido até à cintura e que abria numa saia rodada de várias camadas de tule, por onde os bordados dourados serpenteavam.
Ligou o rádio. O som triste da música A pele que há em mim de Márcia com JP Simões invadiu o quarto. Francisca balançou lentamente ao som da música, fechando os olhos e repetindo a letra:
— Dá-me o mar, o meu rio, minha calçada. Dá-me o quarto vazio da minha casa. Vou deixar-te no fio da tua fala. Sobre a pele que há em mim. Tu não sabes nada.
Sorveu uma grande quantidade de ar e lentamente expirou. Sentou-se na cama e retirou a tampa do seu creme corporal, o aroma a baunilha espalhou-se pelo ar.
Dirigiu-se depois ao seu tocador de três espelhos, os dois espelhos laterais fechavam sobre o central, não deixando ver o seu reflexo. Pegou num disco desmaquilhante e limpou a face com água micelar.
Secou o cabelo ruivo, deixando-o cair em cascatas ondulantes pelas costas. Retirou o estojo de maquilhagem da gaveta do tocador. Ainda pensou colocar um pouco de base, mas desistiu, não queria esconder as suas sardas. Suspirando fundo, abriu devagar os espelhos laterais do tocador e concentrou-se no espelho central. Escolheu um tom dourado escuro e um tom verde-claro e começou a dar pequenas pinceladas sobre as pálpebras — precisou parar para abrir e fechar as mãos várias vezes de modo conseguir dar pinceladas precisas. Quando acabou, contemplou-se no espelho central, as cores faziam sobressair a sua pele branca e os olhos verdes grandes amendoados.
Neste momento começava a tocar na rádio Com que eu quero dos Miúda — Quando alguém me diz para estar quieta. Sinto logo que devo mexer-me. E sempre que era para estar calada. Levantei-me e falei. — dizia a letra.
Pelo canto do olho parecia que o seu reflexo no espelho lateral esquerdo abanava a cabeça ao som da música, mas no central ela permanecia quieta. Lançou um olhar de viés ao espelho lateral direito, neste a sua imagem estava difusa e sombria. O coração começou a acelerar e sentia um fio de suor a escorrer-lhe pela nuca. Fechou os espelhos num ápice, produzindo um baque que fez vibrar o quarto.
Precisava de falar com a sua mãe, só ela a conseguia acalmar e fazer esquecer tudo à sua volta. Tinha o costume de falar com ela todos os dias à noite, hábito que há duas semanas havia perdido. Resolveu fazer uma videochamada para a sua mãe, depois de se vestir e colocar a sua máscara madre-pérola com apliques dourados.
— Olá mamã. Como está?
— Estou bem, meu amor. E tu? Sinto que não falamos há imenso tempo.
— Sim, tem razão. Peço desculpa, tenho andado cheia de trabalho que tenho-me esquecido. Hoje vou a um baile de máscaras do trabalho, como acha que estou?
— Estás linda querida. Olhares-te ao espelho era suficiente para veres isso.
Francisca enrolava o tule do vestido no seu dedo enquanto alternava o peso nas suas pernas.
— Pois… mas, prefiro a sua opinião. — Desde pequena que apenas se sentia bonita e bem arranjada depois de ter o aval da mãe.
— De resto, está tudo bem? O Dr. Gustavo diz que faltaste às duas últimas sessões…
— Como eu disse, tenho tido muito trabalho.
— Mas é importante querida…
— Mãe peço-lhe desculpa, mas a minha colega deve estar mesmo a chegar, vou ter que desligar. Falamos depois, está bem? Beijinhos. — Francisca interrompeu a conversa.
— Beijinhos querida e diverte-te.
Desligando a chamada, Francisca respirou fundo e relaxando os ombros sentou-se à espera que Roberta chegasse.
Quando a campainha soou ela saiu. Entrou no carro eram precisamente nove horas e o alarme do seu telemóvel começou a tocar como habitualmente, apenas para ela ignorar o seu aviso, como andava a fazer nas últimas duas semanas.
O rádio do carro tocava Morena de Tiago Bettencourt — Cabelo negro sem regra; Caindo em leve ombro nu; Feito de morno passado; E amor que nunca cegou — era tão a cara de Roberta, que Francisca não pode deixar de sorrir enquanto abanava a cabeça.
Roberta trazia um longo vestido prateado que apenas deixava ver a ponta dos saltos altos. O vestido desenhava uma semi-lua junto à clavícula e abraçava a sua forma esguia, caindo a direito a partir do meio da coxa. A sua máscara era prateada e preta em forma de borboleta. A maquilhagem em tons rosa neutros, iluminavam a sua tez castanha clara e os olhos cor de amêndoa. Os canudos negros do seu cabelo baloiçavam enquanto falava. Ao contrário de Francisca, Roberta usava uns brincos compridos de vidro e uma pulseira do mesmo material.
Ambas faziam-se acompanhar de casacos quentes compridos, afinal estavam no Carnaval e o frio no hemisfério Norte fazia-se sentir, infelizmente.
A entrada para o Parque de Serralves estava cheia de carros estacionados. Pessoas elegantemente vestidas entravam no parque, com as suas máscaras extravagantes e coloridas. Roberta recebeu um pequeno programa e começou a lê-lo para Francisca enquanto faziam caminho pela Alameda dos Liquidâmbares. O trajecto encontrava-se iluminado por pequenas lâmpadas de jardim, que faziam ressaltar o tom avermelhado das folhas caídas dos liquidâmbares, que dançavam ao sabor do vento. Os liquidâmbares, agora mais despidos da sua plumagem, choravam por entre os ramos feridos, deixando o aroma adocicado da sua seiva no ar.
— Olha, está aqui um programa com as obras de arte que estão em exposição nos jardins. Temos no final desta álea a Malha de Luz Desmanchada de Soo Sunny Park, Vestígios de Rob Mulholland no Jardim das Camélias, a Pirâmide Espelhada de Shirin Abedinirad no Arboreto, e a Espiral de Espelhos no Parterre Lateral.
— Tanto espelho. É aterrador.
Roberta riu-se — Uma mulher bonita como tu não devia ter receio de espelhos. Vais ver que vais gostar dos trabalhos.
Chegaram à Parterre Central em frente à Casa de Serralves, onde seria a recepção. Ao longo dos Jogos de Água, mascarados bebiam e conversavam animadamente. A maioria dos homens trajava fato preto, no entanto, as máscaras eram de todas as cores e feitios. As mulheres usavam maravilhosos vestidos de gala, de cores variadas com máscaras elaboradas e plumadas.
A música ressoava alto, embora calma e romântica, neste momento tocava Beirã de Rui Veloso. Os empregados, vestidos a rigor, passeavam-se pelo local com tabuleiros cheios de flutes de champanhe, outros cheios de canapés deliciosos.
Roberta sentiu o aroma dos canapés de camarão a passar e seguiu o empregado, fazendo um sinal com a mão a Francisca. Esta alcançou um dos copos de champanhe e a sua mão arrefeceu com o contacto. Deu por si a olhar para todas aquelas figuras com as suas máscaras e a sua imaginação pôs-se a vaguear. Que esconderiam elas? Seriam felizes essas pessoas por trás das máscaras? Também usariam disfarces no seu dia-a-dia?
A sua reflexão, a multidão à sua volta e a mistura da música com a conversa incessante, fê-la sentir-se incomodada, uma agonia que suplicava por ar fresco e silêncio. Procurou Roberta, mas não a viu. O ar começou-lhe a faltar. Tentou arranjar espaço por entre aquela massa de gente, tendo que sair da Parterre Central. Andava rápido como se fugisse dos próprios pensamentos. Atravessou uma estrutura metálica e deu por si no Jardim das Camélias.
Olhava o seu próprio reflexo num dos Vestígios de Rob Mulholland e tentava recuperar o fôlego, quando ouviu um riso abafado. Olhou à volta, tentando ver alguém por entre a penumbra que se fazia sentir.
Uma voz fê-la virar-se, dando de caras com uma sombra de mulher, que trazia um vestido negro e máscara preta com penas, mas os olhos não enganavam, era Maya.
— Não devias andar por aqui sozinha – disse Maya com um meio sorriso.
— O que estás aqui a fazer?
— Recebi o convite, obviamente. — respondeu com ironia.
— Porque não me deixas em paz? Que mal te fiz eu?
— Existes, tão simples quanto isso. — Enquanto encolhia os ombros e chutava uma pequena pedra.
— Não te cansas de ser tão invejosa? — perguntou Francisca com irritação.
O riso macabro de Maya ressuou pelo jardim:
— Inveja? De um pãozinho sem sal como tu? Que precisa da aprovação da mamã para tudo? Poupa-me, tu és um poço de insegurança. Apenas quero aquilo que me pertence.
O coração de Francisca voltou a bater forte dentro do seu externo, a cabeça latejava e sentia tonturas. Colocou as mãos à cabeça, puxando ligeiramente o cabelo e vociferou.
— Pára, deixa-me em paz de uma vez por todas.
— Se eu fosse a ti não pedia isso, pode ser que quem venha depois de mim não seja tão simpática quanto eu… — Maya tentou avisá-la.
— Vaiiiii — gritou Francisca cerrando os olhos.
Quando abriu os olhos estava sozinha. Sentia o bater do coração na garganta e o seu corpo a tremer. Cambaleou ao tentar sair rapidamente do jardim. Enveredou pelo caminho junto ao Arboreto, tentava encontrar Roberta lá em baixo no Parterre. Enquanto procurava, sentia-se observada. Será que Maya não tinha desistido e ainda a perseguia, pensava Francisca. Apressou o passo, indo em direcção à luz, tentava fugir daquelas trevas que a cercavam.
Ao fim do caminho do Arboreto, desceu uns degraus. Estava junto à fonte e tinha uma imagem dos Jogos de Água, descendo vereda abaixo, desde a Parterre Central até à fonte. Aqui o som da água suplantava o da música ambiente, e a água projectava o seu reflexo, deixando-a desconfortável.
No meio de todos os mascarados coloridos e bem vestidos, um destacava-se. Todo ele vestido de negro com uma máscara com um bico de corvo, todo a face encoberta, como um daqueles médicos do tempo da peste negra.
Embora tivesse os olhos tapados pela máscara, sentia o olhar do desconhecido em si. Começou a andar, procurando Roberta no meio da multidão, mas conforme andava, aquele corvo maldito fazia do outro lado dos Jogos de Água os movimentos contrários, como um mimo sombrio. Mesmo quando não o via, sentia-o no seu encalço, sentia a sua respiração na nuca e um cheiro incomodativo a cabedal.
— Francisca, onde andavas tu? Quero-te apresentar a uns amigos — Sentiu Roberta a agarrar o seu braço e a conduzi-la para perto de si.
O susto que apanhou foi de morte, de tal forma que ficou sem reacção e deixou-se encaminhar por Roberta qual fantasma. Francisca saudou todos de forma autómata e ouviu os seus nomes, mas não os reteve, nem à conversa, pois sentia-se comprimida. Queria sair dali, parecia que todos a observavam e lhe lançavam um olhar encoberto e zombeteiro.
Que sabiam eles? Quem lhes havia contado? O chão rodopiava, a falta de ar retornou, saiu a correr ouvindo a voz de Roberta a chamá-la.
Mesmo depois de se ter afastado continuava a ouvir o seu nome a ser chamado, mas não era mais a voz doce e carinhosa de Roberta nem tampouco a irritante de Maya, era mais grave e retumbante. Ecoava nos seus ouvidos fazendo tremer todo o seu ser. Enquanto fugia, ia passando pelos mascarados, tinha a sensação que estes lhe apontavam o dedo e a olhavam com troça. Ouvia passos rápidos a igualar os seus atrás de si, como uma sombra tentando engolfá-la na penumbra da noite.
Entrou nos lavabos e fechou porta. Correu até ao lavatório e debruçou-se sobre ele, tentando respirar e acalmar o seu coração que batia descompassadamente. Quando levantou a cabeça, o corvo estava ali à sua frente e gritou a plenos pulmões com o susto. Queria fugir, mas o seu corpo estava inerte. Ele também não se mexia, apenas a fitava.
— Que queres? Quem és tu?
— Tu sabes bem quem eu sou. Vá diz-me, quem sou eu?
— Não! — Num impulso desesperante, Francisca entregou-se áquela figura lançando-a contra o espelho que se despedaçou em mil pedaços no chão, tal como o seu coração; de punhos em riste e olhos cerrados bateu-lhe até perder os sentidos.
***
Ouviu vozes como se viessem do fundo de um poço, não conseguiu perceber de início o que diziam, mas pouco a pouco os seus ouvidos ajustaram-se. Pessoas falavam ao seu redor, a sua boca estava seca e sentia na pele a aspereza do tecido sobre o qual estava deitada.
— Quem a encontrou?
— Uma colega de trabalho.
— Sabem o que aconteceu ao certo?
— Não. Apenas que a encontraram desmaiada no chão dos lavabos com os punhos a sangrar, e o espelho todo partido no chão.
Novamente, começou a sentir-se sonolenta e com o corpo pesado. A escuridão voltou a tomar posse de si.
Francisca não sabia quanto tempo tinha passado quando voltou a acordar, mas estava no seu quarto, as suas mãos envoltas em gaze.
Dirigiu-se lentamente à casa de banho, assim que entrou, para seu desespero, aquele mesmo mascarado esperava por si.
— Não tenho mais forças para lutar. O baile terminou, vamos, mostra-me a tua face.
Aos poucos o disfarce foi desvanecendo, deixando ver quem estava por trás da máscara — Olhava para os seus próprios olhos verdes amendoados, no reflexo do espelho.
Sorriu para si mesma e disse em voz alta:
— Se não os podes derrotar, junta-te a eles.
FIM