Quandos vidas estão em jogo

  • Gênero: Suspense

Olhava com atenção para a parede da sala que se tinha tornado num quadro de investigação criminal. Fotografias, recortes de jornais, impressões tiradas das reportagens televisivas e notas, tudo devidamente acompanhado por um fio vermelho, o fio do meu raciocínio.

Desde bastante nova soube que queria ser detective como o meu pai. Ele era da Polícia Judiciária e cobria a área de Sintra, onde também morávamos.

Quando trazia trabalho para casa eu espiava curiosa. A minha mãe ficava horrorizada com a situação, uma menina de seis anos a ver fotos de pessoas mortas não era de todo o que ela achava ser apropriado. Mas o meu pai ficava orgulhoso pela minha coragem e principalmente pelo meu instinto perspicaz, já em tão tenra idade.

Sentia-o como um formigar pelo corpo e a minha memória visual entrava em acção, via as cenas do crime desenrolarem-se à minha frente como se estivesse a assistir uma série na televisão.

O meu pai apresentava-me as provas, lia-me os interrogatórios e testemunhos. No final, eu acertava sempre quem era o culpado. Tornou-se um jogo entre nós ao longo dos anos.

Agora, aos trinta e cinco anos sou também detective em Sintra. O meu pai já faleceu de cancro da próstata, mas eu continuo a debater as provas com ele. Tenho a certeza de que ele me ouve e me direcciona no caminho certo.

Há dez anos que faço este trabalho e o meu instinto nunca me tinha falhado. Até àquele dia.

Sei que os meus colegas têm a sua razão, efectuando uma observação analítica às provas. Nada demonstrava ter havido crime, tratava-se apenas de meros acidentes. No entanto, não conseguia parar de pensar naqueles acidentes inusitados. Algo no meu íntimo me dizia que as aparências iludiam.

O primeiro acidente aconteceu na estação de comboios de Sintra. Um homem talhado pelo comboio. Segundo várias testemunhas, na hora de ponta, um senhor andava pela plataforma quando tropeçou em algo, acabou por embater numa senhora que vinha no sentido contrário e que por sua vez foi de encontro a outro senhor. Este caiu na linha no exacto momento em que a locomotiva vinda do Rossio chegava à estação. Teve morte imediata.

Fiz parte da investigação e depois de ouvir todos os testemunhos cheguei à conclusão, assim como os meus colegas, de que se tinha tratado de um infortúnio, um terrível acidente. O caso foi arquivado.

Uma semana depois, fui chamada a outro local, desta vez ao terminal de eléctrico de Sintra, perto do Museu das Artes. No meio de turistas e veraneantes que chegavam da Praia das Maçãs, uma mulher tinha morrido asfixiada. O eléctrico tinha chegado à paragem às cinco e quarenta e cinco, as pessoas tinham saído e algumas tiravam fotos. De acordo com testemunhas, a senhora viajava sozinha, com uma pequena mala e uma toalha de praia fina ao pescoço, saiu em último lugar e ficou ali perto a falar ao telemóvel. Quando o eléctrico ia a recolher à gare, a senhora soltou um grito e foi durante três metros arrastada, antes que conseguissem avisar o motorista da situação. A toalha tinha ficado presa num dos ganchos traseiros da locomotiva.

Desta vez o meu instinto acordou e embora de acordo com as provas e testemunhos tudo indicasse que se tratara de mais um acidente, começava a desconfiar de que algo mais se passava. Sentia o formigar.

Uma semana mais tarde, um terceiro acidente em frente ao Palácio Nacional de Sintra, onde as charretes aguardam pelos turistas para fazer os passeios serra acima.

Um par de cavalos tinha-se assustado e iniciado uma corrida alucinante que acabara na morte de um casal, por atropelamento.

Argumentei com o meu chefe que algo estava errado.

Chefe, algo se passa aqui. Não acha que já são «acidentes» a mais? Três semanas seguidas.

Renata, foram feitos os levantamentos dos testemunhos, as provas foram analisadas e tudo indica que se trataram de acidentes.

Chefe, mas o próprio motorista diz que os cavalos são adultos e amestrados, trabalham ali há dez anos e nunca se assustaram com o movimento dos carros, com o barulho das festas, e agora do nada assustam-se e provocam um acidente destes. Acho que devíamos abrir o outro caso e aprofundarmos a investigação de todos estes «acidentes».

Não iremos perder tempo com algo baseado apenas no teu instinto.

Chefe, há vidas em jogo, temos de continuar a investigação.

Apesar de tudo o que eu disse, os dois últimos casos foram também arquivados.

Continuei a investigação por conta própria. Pedi ajuda a um amigo veterinário e com a autorização do dono, os cavalos foram examinados. De acordo com o veterinário, um dos cavalos tinha no seu flanco direito uma ferida pequena em diâmetro, mas profunda, como se uma chave de fendas tivesse sido cravada no animal.

Se assim era, só provava que teria havido provocação, alguém tinha incitado o cavalo na hora certa de maneira subtil e disfarçada.

Mas como apanhar o criminoso? E principalmente: como provar que havia mão criminosa?

Lembrei-me então de que na estação de comboios havia câmaras, assim como junto ao Palácio Nacional de Sintra, apenas junto ao terminal do eléctrico é que não.

Usando o meu distintivo, confisquei os vídeos dos dias em que os «acidentes» se deram.

Quando visualizava o que se tinha passado na estação de comboios, reparei na imagem onde o senhor tropeçava na plataforma. Vi e revi várias vezes aqueles minutos. Depois pedi a um colega para melhorar e aproximar a imagem. Era quase imperceptível, mas deu para ver que do nada surge uma lata de refrigerante junto aos pés do senhor.

Haveria intenção criminosa?

O mesmo foi feito com o vídeo junto ao palácio, vários ângulos foram vistos e revistos, não se conseguia visualizar o flanco direito do animal, que se encontrava coberto pelo muro à volta do palácio.

Após horas de vídeo, reparei num jovem que atravessava a rua e que se afastava da praça de charretes. Levava algo na mão no formato de uma pequena faca. A cara não me era desconhecida, onde a teria visto antes?

Voltei a analisar o meu quadro, fotos tiradas pela polícia, fotos dos jornais e de telejornais, até que a cara do jovem surgiu novamente.

O jovem tinha sido filmado pela CMTV, junto ao terminal do eléctrico, observava a situação junto à rotunda. Voltei a visualizar as imagens da estação de comboio e vi o mesmo jovem a cruzar-se com o senhor que tropeçou.

De imediato levei toda a minha investigação privada ao meu chefe, que primeiramente me ameaçou de suspensão por ter continuado a investigação sem autorização, mas que, após muita insistência minha, deu-me quarenta e oito horas para provar as minhas suspeitas.

Foi-me dada uma equipa de cinco polícias, que à paisana começaram a fazer patrulha junto dos transportes públicos e zonas movimentadas de Sintra.

Foi numa dessas rondas que avistei o suspeito e segui-o, a uma distância de segurança, até ao terminal de autocarros da Portela de Sintra. A meio do trajecto, comuniquei via rádio com os colegas que tinha visão sobre o suspeito.

Não queria acreditar no que via.

O suspeito passou por um senhor invisual e empurrou-o para a frente do autocarro que tinha partido da paragem. Teria sido mais um crime dado como acidente, não tivesse eu presenciado tudo. Corri e prendi o jovem, que me olhou com surpresa.

O senhor ficou gravemente ferido, mas sobreviveu. O jovem foi acusado de tentativa de homicídio e, quando pressionado em interrogatório sobre os outros acidentes, de modo quase orgulhoso, admitiu a sua intervenção.

O caso foi perante o tribunal. O veredicto: Culpado. Pena de vinte anos de prisão.

Senti que tinha feito o meu trabalho, até à hora de entregar os pertences do criminoso para registo, eis que o seu telemóvel vibrou e deparei com uma mensagem num grupo de WhatsApp, que dava pelo nome «Assassinos de Ocasião»:

«Sintra termina o jogo com três mortes e um ferido grave. Sessenta e cinco pontos. Trinta jogadores permanecem ainda em jogo, passamos agora para a cidade de Lisboa. Boa sorte a todos e não se deixem apanhar.»

A inquietação engolfou-me, como uma onda. O jogo estava apenas a começar.

FIM

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