O comendador Antunes viajou com sua recém-esposa para visitar os povoados agrícolas.
Era a sua primeira viagem acompanhado, e, felizmente, a companhia mostrava-se agradável. Ela mantinha-se em silêncio nos momentos adequados, e sua doce fragrância, associada ao sorriso delicado, tornava o ambiente mais leve, sendo o ponto alto da viagem.
No dia seguinte, havia dois cavalos encilhados. Ele perguntou ironicamente se ela sabia cavalgar. Como resposta, ela sugeriu uma pequena corrida. A resposta audaciosa fez com que ele sentisse seu íntimo incendiar. A jovem senhora revelava um espírito aventureiro e rapidamente assumiu posição para a corrida.
Surpreso e animado, ele aceitou o desafio. Deram a largada e, rapidamente, Ayla conseguiu vantagem, saltando sobre troncos caídos e passando por lugares fechados por galhos.
“Como ela consegue ser tão hábil?”, pensou intrigado. Ele costumava cavalgar com frequência, mas mesmo assim estava sendo deixado para trás!
Notou que o corpo dela inclinava-se em perfeita harmonia com o animal. O comendador não esperava cair numa armadilha de caça. Ayla prontamente o socorreu, pedindo desculpas repetidas vezes. Com cuidado, colocou o marido ferido sobre o cavalo e conduziu-os até o alojamento mais próximo.
— Nunca tinha visto alguém cavalgar como você — comentou ele enquanto ela analisava o braço arranhado dele.
— Sinto muito. Achei que desconfiaria da armadilha. Com certeza, foi colocada para porcos-do-mato — ela sacudiu a cabeça. — Seu cavalo não sofreu nada grave. Um senhor gentil está cuidando dele.
Quando Ayla levantou a cabeça, seus olhos se cruzaram com o olhar analítico do comendador. Ela enrubesceu imediatamente.
— Senhor Comendador, eu… eu preciso contar algo…
— Acredito que haverá outro momento oportuno, senhora — respondeu ele, olhando na direção do senhor que voltava com algumas medicações para atendê-lo.
Seria necessário conhecer melhor a personalidade do Comendador antes de revelar toda a verdade. O tempo diria quando seria o momento certo. Ayla sempre se perguntava quanto tempo ainda teria.
Após a breve recuperação do comendador, eles visitaram os alojamentos. Ayla estava perturbada com as condições em que as pessoas viviam: sujeira, pobreza, desnutrição, e doentes trabalhando para enriquecer o sobrenome do comendador. Mal podiam sobreviver. A expectativa de vida resumia-se, unicamente, à esperança de sobreviver ao amanhecer. Seus olhos marejaram, e uma lágrima escorreu. Correu para longe. Sua memória a bombardeava com flashes, e ela sentia que não merecia estar ali.
— Está se sentindo mal, senhora? Posso chamar alguém para ajudá-la? — Um jovem criado se aproximava, tentando reconhecer o rosto que estava escondido entre os cabelos longos.
— Estou bem. Foi apenas um enjoo leve. Coisas de mulher.
A voz dela soou tão familiar que o rapaz teve um clarão, lembrando-se do dia em que fugiam na madrugada fria e escura.
— Senhora Ayla? Oh, meu Deus! É a senhora?
Confusa, ela recuou alguns passos.
— Provavelmente, não se lembra de mim. Eu tinha apenas dez anos quando ajudou minha mãe a fugir.
Ela colocou a mão sobre a boca, tentando impedir que um grito de espanto alertasse outras pessoas.
— Parece que está ótimo.
— Sim, graças à sua ajuda. Este senhor é bem melhor que o outro. Queria muito ter tido a oportunidade de agradecer antes. Mas Deus reservou-me este momento. Eu usei aquele agasalho até quando minha mãe pôde costurar outro. Depois, passei para que outra criança o usasse.
Tentou engolir o nó que se fez em sua garganta.
Costurava cada peça durante o período de castigo. Intencionalmente, deixava a estampa no forro e usava tecidos manchados e remendados por fora, para aquecer as almas esquecidas.
— Fico feliz que você esteja bem e em condições melhores. Por favor, poderia não comentar com ninguém sobre isso? Poucos sabem dessa parte do meu passado.
— Claro, senhora. Sou grato por tudo que fez por mim. Não contarei a ninguém.
— Obrigada. Muito obrigada!
Enquanto conversavam, homens do comendador os avistaram à distância e se apressaram em encontrá-los.
— Vejo que a encontrou, rapaz.
— Sim, senhor. Ela disse que estava enjoada, por isso me contive de ir avisá-lo imediatamente.
— Fez bem. Pode se retirar. A levaremos embora.
O jovem fez um gesto de respeito e se retirou.
Ayla tremia. Suas mãos geladas indicavam que suas emoções estavam descontroladas. Imediatamente, sua mente a transportou a noite em que os ajudava a fugir. Naquela madrugada, os equipou com um pouco de suprimento e encobriu a fuga. Pedindo a Deus que não fossem pegos no caminho. Sacudiu a cabeça. Era preciso recompor-se.
— Estou bem. Não devo ser motivo de preocupação.
— Não deveria mentir, senhora. Sua face parece ter visto um fantasma. Pedirei que a levem para descansar. Terminarei as visitas sozinho.
Ela decidiu não insistir e ficou na hospedagem.
Estava debruçada no divã, tentando recompor-se do passado que voltara a assombrá-la. Ela não conseguia acreditar que havia encontrado alguém de seu passado tão longe dali. Ele estava vivo, e nunca a deixaria recomeçar. Despertou com as batidas do Comendador Antunes à porta. Ele se sentou próximo a ela.
— Sentindo-se melhor?
— Sim, senhor. Obrigada.
— Pedi que lhe trouxessem um chá.
— Agradeço a atenção, senhor. Estou me sentindo bem melhor.
— Sinto muito caso a tenha colocado em uma posição desconfortável.Não imaginei que nunca tivesse visitado as classes inferiores.
— Não lhe incomoda que vivam dessa maneira? — Ela aproveitou o breve silêncio para fazer perguntas intrigantes.
— Como assim?
— Eles adoecem devido à sujeira. Não há lugar privativo para suas necessidades. Mesmo assim, continuam se esforçando ao máximo para prosperar enquanto não têm o básico para viver?
— De que lado está? — Perguntou ele, surpreso com a indagação.
— Do lado da vida! Eles têm o direito de viver em melhores condições.
— Não conhece nada dessas coisas.
— Sei mais do que imagina — sussurrou ela. — Dê-lhes dignidade: um alojamento maior para as famílias, água potável, um forno para assarem seus pães.
Ele arfou um riso irônico. Quando poderia esperar ouvir algo assim?
— Tente durante uma safra. Se isso os tornar preguiçosos, desfaça. Não deve ser difícil para o senhor.
O pedido parecia apelativo, mas ela não poderia perder essa oportunidade. Quando teria outra chance de estar diante de alguma autoridade e pedir algo estando em igual posição?
— Persuasiva. Talvez eu cogite essa ideia — a expressão dele mudou. — Mas não se anime, é apenas uma ideia.
O semblante dela se descontraía. Ele deu a entender que consideraria seu pedido, o que lhe tirou um peso dos ombros.
Seria necessário mais tempo para explicar como tudo aconteceu: desde que foi restituída como filha legítima de sua família até se tornar esposa do comendador.
PARTE 2 DISPONÍVEL.