Edgar Allan Poe

O Escaravelho de Ouro – parte final

  • Gênero: Domínio Público | Público Infantil

O Escaravelho de Ouro – parte final

Não duvido de que você me achará um sonhador. Mas eu já estabelecera uma espécie de relação. Ajuntara dois elos de uma grande cadeia. Havia um bote jazendo sobre a costa marítima e não longe do bote, havia um pergaminho — não um papel — um crânio pintado nele. Você naturalmente perguntará: onde está a relação? Replico que o crânio, ou caveira, é o muito conhecido emblema dos piratas. A bandeira da caveira é içada em todas as suas empresas.

Já disse que aquele pedaço era de pergaminho e não de papel. O pergaminho é durável, quase imperecível. Raramente se confiam ao pergaminho coisas de pequena importância, visto como, para os simples fins ordinários do desenho ou da escrita, ele não se presta tão bem como o papel.

Essa reflexão sugeria algum significado, algum propósito na caveira.

Não deixei de observar, também a forma do pergaminho. Embora um de seus cantos tivesse sido destruído por algum acidente, podia-se ver que a forma primitiva era quadrangular. Era justamente um pedaço, de fato, tal como poderia ter sido escolhido para uma nota, para o registro de alguma que devia ser prolongadamente lembrada e cuidadosamente preservada.

— Mas — interrompi —, você disse que o crânio não estava no pergaminho quando fez o desenho do escaravelho. Como, então traça alguma relação entre o bote e o crânio, desde que este último de acordo com o que você mesmo admitiu, deve ter sido desenhado (só Deus sabe como e por quem) em algum período subseqüente ao de seu esboço do escaravelho?

— Ah, aí é que todo o mistério se resolve, embora, nesse ponto eu tivesse relativamente pouca dificuldade em resolver o segredo. Meus passos eram certos e eu só podia atingir um resultado. Raciocinei, por exemplo, assim: Quando desenhei o escaravelho, não aparecia crânio algum no pergaminho. Ao terminar o desenho, passei-o a você e observei-o acuradamente, até que você o devolveu. Você portanto, não desenhou o crânio e não se achava presente mais ninguém para fazê-lo. Logo, não fora feito por meios humano não obstante, fora feito.

Nesse ponto de minhas reflexões, esforcei-me por lembrar e lembrei, com inteira exatidão, todos os incidentes que correram por volta do período em apreço.

O tempo estava frio (oh! Raro e feliz acaso!) e o fogo ardia na lareira. Eu me achava aquecido pelo exercício e sentei-me perto da mesa. Você, porém, puxara uma cadeira para perto da chaminé. Logo que coloquei o pergaminho em suas mãos, e que você estava a ponto de examiná-lo, Lobo, o meu terra-nova, entrou e pulou sobre seus ombros. Com a esquerda você lhe fez festas e com a direita, que segurava o pergaminho, caiu descuidadamente entre os seus joelhos, bem perto do fogo. Em um momento pensei que as chamas o atingissem e estava quase a avisá-lo quando, antes que tivesse podido falar, você o retirou e entregou-se a examiná-lo.

Quando considerei todos esses pormenores, não duvidei um só momento de que o calor fora o agente que trouxera à luz, no pergaminho, o crânio que eu vira desenhado nele.

Você bem sabe que existem preparados químicos, e sempre existiram desde tempos imemoriais, por meio dos quais é possível escrever sobre papel ou velino, de modo que os caracteres só se tornem visíveis quando submetidos à ação do fogo. O óxido impuro de cobalto, dissolvido em água régia e diluído em quatro vezes o seu peso de água, é às vezes empregado; resulta uma tinta verde. O régulo de cobalto, dissolvido em espírito de nitro, dá uma tinta vermelha.

Tais cores desaparecem em intervalos maiores ou menores, depois de efetuada a escrita, com o frio, reaparecem de novo, após a aplicação de calor.

Examinei então a caveira com cuidado. A borda exterior, a borda do desenho mais perto da ponta do velino, era bem mais distinta do que o resto. Claro estava que a ação do calórico fora imperfeita, ou desigual. Acendi fogo imediatamente e submeti todas as partes do pergaminho a um calor ardente. A princípio, o único efeito foi acentuar as linhas fracas do crânio; mas, perseverando na experiência ficou visível, num canto da faixa, diagonalmente, em oposição ao lugar em que se delineara a caveira, a figura do que, a princípio, supus ser uma cabra. Um exame mais acurado, contudo, demonstrou -me que se tratava de um cabrito.

— Ah! Ah! — disse eu. — Sem dúvida não tenho o direito de rir de você. Um milhão e meio em dinheiro é coisa muito séria para brincadeiras. Mas você não vai querer estabelecer um terceiro elo em sua cadeia. Você não vai achar uma relação especial entre seus piratas e uma cabra. Os piratas, como você sabe, não têm nada com as cabras; elas pertencem aos interesses dos fazendeiros.

— Mas eu acabo de dizer que a figura não era a de uma cabra…

— Bem, que seja de um cabrito… é mais ou menos a mesma coisa.

— Mais ou menos, mas não inteiramente — disse Legrand. — Você deve ter ouvido falar num tal Capitão Kidd. Pela minha parte, considerei logo a figura do animal como espécie de assinatura figurada ou hieroglífica. Digo assinatura porque sua posição no velino sugeriu essa idéia. A caveira no canto diagonalmente oposto tinha do mesmo modo, o aspecto de um sinete, ou selo. Mas fiquei tristemente perturbado com a ausência de mais qualquer coisa, de um corpo para meu imaginado documento, do texto de meu contexto.

— Presumo que você esperava encontrar uma carta entre o sinete e a assinatura. Algo dessa espécie.

— O fato é que me sentia irresistível impressionado com um pressentimento de alguma vasta e boa fortuna pendente. Mal posso dizer porque talvez, afinal de contas, fosse antes um desejo que uma crença real. Mas sabe você que as tolas palavras de Júpiter acerca de ser o escaravelho feito de ouro maciço tiveram notável efeito sobre minha imaginação? E, depois, a de acasos e coincidências… eram todos tão extraordinários! Observe! como, por simples acaso, esses acontecimentos ocorreram no único dia do ano que foi, ou podia ser, suficientemente frio para que acendêssemos fogo, e sem esse fogo, sem a intervenção do cão no momento preciso em que ele apareceu, eu nunca saberia da existência dessa caveira e, assim, nunca seria o possuidor do tesouro.

— Mas, continue… estou impaciente.

—Bem, você naturalmente já ouviu as muitas estórias que correm, esses mil boatos vagos que circulam acerca de dinheiro enterrado em algum ponto da costa atlântica por Kidd e seus associados. Tais boatos devem ter tido alguma base na realidade. E o fato de que eles tenham existido tanto e tão continuamente só podia ter resultado, pareceu-me, da circunstância de que o tesouro enterrado ainda permanecia sepulto. Tivesse Kidd escondido sua pilhagem por algum tempo, retirando-a depois, tais boatos raramente poderiam ter-nos alcançado na sua forma presente e invariável.

— Observe as estórias que se contam são, todas, sobre procuradores de dinheiro e não acerca de achadores de dinheiro. Se o pirata tivesse recuperado seu dinheiro, a questão estaria encerrada. Parece-me que aí algum acidente — digamos a perda de uma nota indicando o local — o privou dos meios de recuperar o tesouro e que esse acidente se tornou conhecido de seus comparsas, que de outro modo nunca poderiam ter ouvido falar, em absoluto, que o tesouro tivesse sido escondido, e que, empregando-se em tentativas inúteis, porque sem guia para reavê-lo, deram origem, primeiramente, e depois divulgação universal, aos relatos que agora são tão comuns.

Você já ouviu falar que algum tesouro importante tenha sido desenterrado longo da costa?

— Nunca.

— Mas é bem sabido que a fortuna acumulada por Kidd era imensa.Tomei como certo, portanto, que a terra ainda a conservava escondida. E você mal se surpreenderá se lhe disser que senti uma esperança, quase chegando à certeza, de que o pergaminho estranhamente encontrado encerrasse o registro perdido do lugar do depósito.

— Mas como você continuou?

— Levei de novo o velino ao fogo, depois de aumentar o calor mas nada apareceu; julguei então possível que a cobertura de sujo podia ter alguma relação com o fracasso; assim, limpei cuidadosamente o pergaminho, derramando água quente sobre ele, e, tendo feito isso, coloquei-o numa caçarola de cobre com o crânio para baixo, e pus a caçarola sobre um fogão com carvão em brasa. Em poucos minutos a caçarola ficou inteiramente aquecida e removi a folha que, com indizível alegria, encontrei salpicada, em diversos com o que me pareceu serem figuras arrumadas em linhas.

Coloquei-a de novo na caçarola e deixei que lá ficasse outro minuto. Depois de tirá-la, tudo estava tal como você agora vê.

— E aí Legrand, aquecendo de novo o pergaminho, entregou-o a meu exame. Entre a caveira e a cabra estavam toscamente traçados, em tinta vermelha, os seguintes sinais:

.53% % + 305))6*; 4826)4% >4%); 806*; 48+8&60))85; 1%(;:%*8+83(88)5*+; 46(;

88*96*?; 8)*%(; 485); 5*+2:*%(; 4956 *2(5*—4)8&8*; 4069285); )6+8)4%%; 1;(%9;

48081; 8:8%1; 481;48+85:4)485+528806*81(%9; 48; (88; 4(%?34; 48)4%;

161;:188;%?;

— Mas — disse eu, entregando-lhe a folha —, estou no escuro como antes. Esperassem-me todas as jóias de Golconda em troca da solução desse enigma e tenho plena certeza de que seria incapaz de ganhá-las.

— E contudo — falou Legrand — a solução de modo algum é tão difícil como você poderia ser levado a imaginar após o primeiro exame apressado dos caracteres. Esses caracteres, como qualquer pessoa pode prontamente verificar, formam uma cifra, isto é, encerram um significado; mas segundo o que se conhece de Kidd, eu não podia supô-lo capaz de compor qualquer espécie de cifra muito complicada. Achei, imediatamente, que esta era duma espécie simples, tal, entretanto, que para a inteligência rude do marinheiro devesse parecer absolutamente insolúvel, sem a chave.

E você realmente a decifrou? Com toda a facilidade. Já decifrei outras, dez mil vezes mais complicadas. Certas circunstâncias e certas tendências do espírito levaram-me a interessar-me por semelhantes enigmas e pode-se bem duvidar de que a engenhosidade humana consiga compor um enigma dessa espécie, que a engenhosidade humana não possa decifrar, graças a uma aplicação adequada. De fato, uma vez que tenha eu arranjado caracteres unidos e legíveis, mal ligo importância à simples dificuldade de descobrir-lhe a significação.

— No caso presente — e na verdade em todos os casos de escrita secreta — a primeira questão diz respeito à língua da cifra, pois os princípios de solução, particularmente quando se trata das cifras mais simples, dependem do gênio de cada idioma e podem por isso variar. Em geral não há outra alternativa para quem tenta a decifração, senão experimentar (dirigido pelas probabilidades) cada língua conhecida até que a verdadeira seja encontrada. Mas nesta cifra que temos aqui diante de nós, toda a dificuldade foi removida, graças à assinatura. O trocadilho com a palavra “Kidd” só é perceptível na língua inglesa. Sem esta consideração, teria eu começado minhas tentativas com o espanhol e o francês, como línguas em que um segredo desta espécie deveria ter sido naturalmente escrito por um pirata dos mares espanhóis.

Mas no caso presente, presumi que a cifra estivesse em inglês.

Você há de notar que não existem divisões entre as palavra. Se as houvesse, a tarefa teria sido relativamente fácil. Em tal caso teria eu começado por fazer uma comparação e análise das palavras mais curtas e, se tivesse encontrado, como é sempre provável uma palavra duma só letra a (um) ou I (eu), por exemplo, haveria considerado a solução como garantida. Mas, não havendo divisões meu primeiro passo foi averiguar quais as letras dominantes, como as menos freqüentes.

Contando todas, construí a seguinte tábua:

   O          algarismo    8 ocorre 33 vezes

Osinal        ; ocorre 26 vezes 
Oalgarismo          4 ocorre 1 9vezes
Osinal        % ocorre 16    vezes 
Osinal        ) ocorre 16      vezes 
Osinal * ocorre 13            vezes 
Oalgarismo          5 ocorre 12vezes
Oalgarismo          6 ocorre 11vezes
Osinal        (     ocorre 10 vezes 
Osinal        + ocorre 8      vezes 
Oalgarismo          1 ocorre 8vezes
Oalgarismo            0 ocorre 6vezes
Oalgarismo            9 ocorre 5vezes
Oalgarismo 2 ocorre 5 vezes 
Osinal : ocorre 4 vezes 
Oalgarismo 3 ocorre 4 vezes 
Osinal          ? ocorre 3 vezes 
Osinal         & ocorre 2 vezes 
Osinal         — ocorre 1 vezes 
Osinal . ocorre 1 vezes 

— Ora, em inglês a letra que maisse encontra é o e.

As demais ocorrem na seguinte ordem: a o i d h n r s t u y cf g l m w b k p q x z. O e é tão singularmente predominante que raras são as frases, de certo tamanho, em que não seja ele a letra principal.Temos, pois, aqui, logo no começo, uma base para algo mais do que uma simples conjetura. É evidente o uso geral que se pode fazer dessa tábua, mas para esta cifra particular só mui reduzidamente nos utilizaremos de seu concurso. Como o algarismo predominante é o 8, começaremos por atribuir-lhe o valor de e, do alfabeto natural. Para verificar essa suposição, observemos se o 8 aí aparece muitas vezes aos pares, pois o e se duplica, com grande freqüência, em inglês: como, por exemplo, nas palavras meet, fleet, speed, seen, been, agree, etc.

No caso presente, vemo-lo duplicada não menos de cinco vezes, embora o criptograma seja curto.

Admitamos, pois, que o 8 seja O e. Ora, de todas as palavras da língua, the é a mais usual. Vejamos, portanto, se não há repetições e três caracteres na mesma ordem de colocação, sendo o 8 o último dos três. Se descobrirmos repetições de tais letras arranjadas desta forma, elas representarão, mui provavelmente, a palavra THE. Examinando-se, encontramos não menos de sete dessas combinações; sendo os caracteres; 48. Podemos, portanto, supor que ; representa t, 4 representa h e 8 representa e, estando este último bem confirmado.

De modo que um grande passo já foi dado. Tendo determinado uma única palavra, estamos capacitados a determinar um ponto vastamente importante, isto é, muitos começos e fins de outras palavras. Vejamos, por exemplo, o penúltimo que a combinação ;48 ocorre quase no fim da cifra. Sabemos que o sinal ; que vem logo depois é o começo de uma palavra dos seis caracteres que seguem este the conhecemos não menos de cinco.

Substituamos, pois, estes caracteres pelas letras que já sabemos que eles representam, deixando um espaço para o que não conhecemos:t eeth.

Aqui já estamos habilitados a descartar-nos do th, como não formando parte da palavra que começa pelo primeiro t, pois que temos experimentando sucessivamente todas as letras do alfabeto para preencher a lacuna, que nenhuma palavra pode ser formada em que apareça esse th. Estamos, assim, limitados at ee,e percorrendo todo o alfabeto, se necessário, como antes, chegamos à palavra tree (árvore) como a única possivelmente certa. Ganhamos assim outra letra, o r, representada por (, e mais duas palavras justapostas, the tree (a árvore).Um pouco além destas palavras, a custa distância, vemos de novo a combinação; 48, e dela nos utilizamos como terminação da que imediatamente a precede. E assim temos este arranjo:the tree ;4(% ?34 the,ou, substituindo pelas letras reais os sinais conhecidos, lê—se assim:the tree thr% ?3h the.

Ora, se em vez dos caracteres desconhecidos, deixarmos espaços em branco ou pontos que os substituam, leremos isto:the tree thr.The,a palavra through se torna imediatamente evidente. Mas esta coberta dá—nos três novas letras: o, u e g, representadas por % e 3.Procurando agora, cuidadosamente, na cifra, combinações de caracteres conhecidos, descobrimos, não muito longe do princípio, disposição:83(88, ou seja, egree. Isto é, claramente, a conclusão da palavra degree (grau) e dá-nos outra letra, o d, representada por +.

Quatro letras além da palavra degree notamos a combinação46; 88.

Traduzindo os caracteres conhecidos e representando os desconhecidos por pontos, como antes, vemos o seguinte:th rtee,combinação que sugere imediatamente a palavra trirteen (treze de novo nos fornece dois novos caracteres: i e n, representados respectivamente, por 6 e *.Voltando agora ao princípio do criptograma, observamos a combinação53%%+.

Traduzindo-a como antes, obtemos good.

Isso nos certifica de que a primeira letra é A e as primeiras palavras são: A good. É tempo,então, de organizar nossa chave com o já descoberto, em forma de uma tábua, para evitar confusões. Tê-la-emos assim:

5representaa
+representad
8representae
3representag
4representah
6representa    i 
*representan
%representao
(representar
;representat
?representau

— Temos, portanto, nada menos de onze das mais importantes letras representadas e será desnecessário continuar com os detalhes desta solução. Já lhe disse o bastante para convencê-lo de que as cifras desta natureza são facilmente solúveis e para dar-lhe alguma idéia da análise racional que serve para desenvolvê-las. Mas fique certo de que o espécime presente pertence às mais simples espécies de criptogramas.

Agora só resta dar-lhe a tradução completa dos caracteres do pergaminho, depois de decifrados. Aqui está ela:

“A goad glass in the bishap’s hastel in the devil’s seat forty one degrees and thirteen minutes northeast and by north main branch seventh limb east side shoot from the left eye of the death’s-head a bee line from the tree through the shot fifty feet out.”.

— Mas — disse eu — o enigma parece ainda em tão ma situação como antes. Como é possível extrair um significado dessa trapalhada toda de “cadeira do diabo”, “caveira” e “hotel do bispo” ?

(Um bom vidro no hotel do bispo na cadeira do diabo quarenta e um graus e treze minutos nordeste quadrante norte tronco principal sétimo galho lado leste atirai do olho esquerdo da caveira uma linha de abelha da arvore através o tiro cinqüenta pés distante.N. T.)

— Mas — disse eu — o enigma parece ainda em tão ma situação como antes. Como é possível extrair um significado dessa trapalhada toda de “cadeira do diabo”, “caveira” e “hotel do bispo”?

— Confesso — replicou Legrand — que a questão ainda apresenta um aspecto sério, quando encarada de modo superficial. Minha primeira tentativa foi dividir a sentença nas divisões naturais, pretendidas pelo autor da cifra.

— Pontuá-la, quer dizer?

— Mais ou menos isso.

— Mas como era possível fazê-lo?

— Refleti que o autor fizera questão de amontoar as palavras sem separá-las, para aumentar a dificuldade da tradução. Ora, um homem não demasiado esperto, ao objetivar tal resultado, quase certamente iria além do devido. Quando, no decorrer de sua escrita, a uma parada do assunto, que naturalmente requereria uma pausa ou mesmo um ponto, ele seria mais do que capaz de amontoar as letras nesse lugar, mais do que nas junções anteriores. Se você observar o manuscrito aqui presente, facilmente observará cinco casos de ajuntamento incomum.

Partindo dessa sugestão, fiz a divisão seguinte:

A goad glass in the bishap’s hastel in the devil’s seat — forty one degrees and thirteen minutes —

northeast and by north — main branch seventh limb east side — shoot from the left eye of the death’s—head a bee line from the tree through the shot fifty feet out. (Um bom vidro no hotel do bispo na cadeira do diabo — quarenta e um graus e treze minutos nordeste quadrante norte — tronco principal sétimo galho lado leste — atirai do olho esquerdo da caveira — uma linha de abelha da árvore através o tiro cinqüenta pés distante).

— Mesmo esta divisão — falei — ainda me deixa no escuro.

— Também me deixou no escuro — replicou Legrand — por poucos dias, durante os quais fiz diligentes pesquisas nas vizinhanças de Sullivan, procurando algum edifício que tivesse o nome de ” hotel do bispo”, pois, naturalmente, não me inquietei com a palavra arcaica hostel. Não obtendo qualquer informação a respeito, estava a ponto de estender meu campo de pesquisa e proceder de modo mais sistematizado, quando, certa manhã, tive a bem súbita, de que esse “hotel do bispo” podia referir-se a antiga família Bessop, que, desde tempos remotíssimos, possuía mansão antiga a cerca de quatro milhas a nordeste da ilha.

Em conseqüência, fui até a fazenda e renovei minhas pesquisas entre os mais velhos negros do lugar. Afinal, uma das mulheres mais idosas disse que ouvira falar de um lugar tal como Bessop’s Castle (Castelo de Bessop) e achou que me podia levar ao lugar, mas que não se tratava de um castelo nem de uma taverna, mas de um rochedo elevado.

Ofereci-lhe boa paga pelo trabalho e, depois de alguma hesitação, consentiu em acompanhar-me ao local.

Encontrando-o sem grande dificuldade, mandei-a de volta e passei a examinar o lugar. O “castelo” consistia num conjunto irregular de penhascos e rochedos, sendo um destes últimos muito digno de nota, por sua altura, bem como por sua aparência isolada e artificial. Subi a seu cume e fiquei sem saber o que devia fazer em seguida.

— Enquanto me ocupava em tal reflexão, caíram meus olhos sobre uma saliência estreita, na face ocidental do rochedo, uma jarda talvez por baixo do cimo em que me achava. Essa saliência projetava-se cerca de dezoito polegadas e não tinha mais de um pé de largura; um nicho no penhasco dava-lhe tosca semelhança como uma das cadeiras de encosto côncavo usadas por nossos antepassados.

— Não duvidei de que ali se achava a “cadeira do diabo” que aludia o documento e pareceu-me então apreender todo o segredo do enigma.

O “bom vidro”, sabia eu, apenas podia referir-se a um binóculo, pois a palavra glass (vidro) é raramente empregada em outro sentido pelos marinheiros.

Logo vi, então, que se devia usar um binóculo, de um ponto de visão definido, não admitindo variação. Não hesitei em acreditar que as frases “quarenta e um graus e treze minutos” e “nordeste quadrante norte” deveriam ser direções para colocação do binóculo. Grandemente excitado por essas descobertas apressei-me em voltar à casa, apanhei um binóculo e regressei ao rochedo.

— Coloquei-me na saliência e verifiquei que era impossível ficar sentado, a não ser uma posição especial. Esse fato confirmou minha idéia preconcebida. Passei a usar o binóculo. Naturalmente, “quarenta e um graus e treze minutos” só podiam aludir à elevação acima do horizonte visual, pois a direção horizontal estava claramente indicada pelas palavras “nordeste quadrante norte.

Estabeleci imediatamente esta última direção, por meio de uma bússola de bolso; depois, apontando o binóculo a um ângulo de cerca de quarenta e um graus de elevação, como podia calcular por experiência, movi-o cautelosamente para cima e para baixo, até minha atenção foi detida por uma fenda circular, ou abertura, na folhagem de uma grande árvore, que, à distância, dominava suas companheiras. No centro dessa abertura percebi um ponto branco mas a princípio não pude distinguir de que se tratava.

Ajustei o foco do binóculo, olhei de novo e verifiquei então que era crânio humano.

Depois desta descoberta, eu estava confiante em considerar o enigma resolvido, pois a frase “tronco principal, sétimo galho, lado leste” só se podia referir à posição do crânio na árvore, enquanto que “atirai do olho esquerdo da caveira” também apenas admitia uma interpretação em relação à busca do tesouro enterrado.

Percebi que a intenção era de lançar uma bala através do olho esquerdo do crânio e que uma ‘linha de abelha”, ou, em outras palavras uma linha reta, tirada do ponto mais próximo da árvore através “do tiro”, ou o lugar onde a bala caísse, e daí estendida a uma distância de cinqüenta pés, indicaria um ponto definido. E por baixo desse ponto considerei como pelo menos possível que estivesse oculto um depósito de valor.

— Tudo isso — disse — é excessivamente claro e, embora engenhoso, simples e explícito. Que fez você depois de deixar o ” hotel do bispo”?

—Ora , tendo cuidadosamente tomado nota da aparência da arvore, voltei para casa. Logo, porém, que deixei a “cadeira do bispo” a abertura circular desapareceu. Não pude vê-la mais depois, embora me virasse para trás.

O que pareceu a principal perícia, em todo esse negócio, foi o fato (pois repetidas experiências me convenceram de que era um fato) de que a abertura circular em questão não é visível de qualquer ponto de visão que se possa alcançar, a não ser o que permite a estreita saliência na face do rochedo. Nessa expedição ao “hotel do bispo”, fora eu auxiliado por Júpiter, sem dúvida, observara, nas semanas anteriores, minha atitudes de abstração, tomando especial cuidado em não me deixar só. Mas no dia seguinte, levantando-me muito cedo, escapuli dele e fui às colinas, à procura da árvore.

Depois de muito pesquisar, encontrei-a.

— Quando voltei para casa, à noite, meu criado estava resolvido a dar-me uma surra. Do resto das aventuras creio que você sabe como eu.

— Suponho — disse — que você errou o lugar, na primeira tentativa de cavar, por causa da estupidez de Júpiter, deixando o escaravelho cair pelo olho direito, em vez de pelo olho esquerdo do crânio

— Perfeitamente. Esse engano produziu uma diferença de cerca polegadas e meia no “tiro”, isto é, na posição da cavilha mais próxima da árvore; e se o tesouro estivesse por baixo do “tiro” o  erro teria sido de pouca importância; mas o “tiro”, bem como o ponto mais próximo da árvore eram simplesmente dois pontos para o estabelecimento de uma linha de direção.

Naturalmente o erro, embora trivial no começo, aumentava à medida que continuava com a linha e, ao completarmos os cinqüenta pés, ficamos inteiramente fora da direção.

Não fossem minhas impressões solidificadas de que o tesouro estava ali realmente enterrado, em alguma parte, poderíamos ter perdido em vão todo o nosso trabalho.

—Mas sua grandiloqüência, sua conduta ao balançar o escaravelho… estavam enormemente extravagantes! Eu ficara certo de você enlouquecera. E por que você insistiu em deixar cair o escaravelho, em vez de uma bala, pelo crânio?

Ora, para ser franco, eu me sentia algo aborrecido com suas evidentes suspeitas, relativamente à minha sanidade mental e resolvi castigá-los calmamente ao meu próprio jeito, com um pouquinho de calculada mistificação. Por esse motivo balancei o escaravelho, e por essa razão fiz com que fosse atirado da árvore observação sua sobre o grande peso dele sugeriu-me essa idéia.

—Sim, percebo! E agora só há um ponto que me embaraça. Que significam os esqueletos encontrados no buraco?

—Essa é uma pergunta a que não sou mais capaz de responder do que você. Parece, contudo, haver apenas um meio plausivel de explicar o caso… e, entretanto, é terrível acreditar em atrocidades tal como a implicada em minha hipótese. E claro que Kidd, (se na verdade Kidd escondeu esse tesouro, coisa de que não duvido)claro que ele deve ter sido auxiliado nesse trabalho. Concluído, porém, o serviço, pode ter ele considerado prudente fazer desaparecer todos os que participavam de seu segredo. Talvez um par de golpes com uma picareta, fosse suficiente, enquanto seus ajudantes se ocupavam em cavar; talvez fossem necessários doze… Quem sabe?

FIM

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Observação do Autor

"O Escaravelho de Ouro" é um conto de aventura e mistério escrito por Edgar Allan Poe, publicado pela primeira vez em 1843. A história gira em torno de William Legrand, um homem que encontra um escaravelho dourado de aparência peculiar. Ele acredita que o escaravelho é a chave para encontrar um tesouro enterrado e, junto com seu servo Júpiter e seu amigo anônimo, narrador da história, embarca em uma busca emocionante.

Legrand decifra um criptograma que revela a localização do tesouro pirata escondido, e a aventura leva o trio por uma série de desafios e descobertas intrigantes. O conto explora temas de criptografia, obsessão e amizade, mostrando a genialidade de Poe na criação de uma atmosfera de suspense e intriga.

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