Às margens do Rio Preto

  • Gênero: Suspense | Público Jovem adulto

Deus me criou um covarde!
Arrastei minha sola calejada enquanto concluía este pensamento. O vento quente passava
pelo meu corpo, me deixando empoeirado da cabeça aos pés. Eu estava percorrendo aquele
caminho pela quarta vez. Minhas pernas, de modo automático, me guiavam ao destino que
passei a odiar. Optei por uma pequena alteração: não iria atravessar o atalho da fazenda do Sr.
Manoel. Não sei dizer. Queria acreditar que a mudança na rota me daria tempo. Para quê?
Para pensar numa desculpa, lamentar ou me despedir. Nem sei te dizer o que queria
exatamente.
A cada vez que olhava para a cesta em mãos, cruzava com o olhar pedinte que me levava à
ruína. A cada quilômetro ela pesava mais meio quilo. Nem tanto quanto a minha consciência.
O calor escaldante descia por minha testa enquanto meu coração ardia feito brasa.
Descumprir minha palavra nunca teve um bom resultado. Houve um dia em que meu pai me
entregou uma espingarda, ordenando que acertasse no meio da cabeça do coitado do animal.
Eu era meninote mas ele pouco se importava com isso. Minhas mãos suadas não firmavam a
arma na mira. O peso dela fazia seu cano pender para baixo. A ordem dada aos berros ainda
ecoam no meu cérebro em pane. Foi a primeira vez que fui covarde. Minhas costas latejam
com esta recordação. Os antigos tem uma maneira diferente de nos tornar corajosos. Foi
quando descobri que a coragem doía.
Nunca tive a intenção de ser desobediente. O certo é respeitar e honrar os pais, porém tinha
ocasiões que ser obediente fazia meu coração sangrar.
O caminho até o vale não pareceu longo. Lamentei que apesar de tanto espaço em que
poderia soltá-los para correr e brincar, ao invés disso, retornavam a minha procura.
Libertá-los tinha um custo alto. Sempre que retornava, minha pele ganhava mais uma marca.
Cicatriz, uma a uma, tatuam minha covardia.
Pela última vez me vi no reflexo da meia dúzia de olhos brilhantes. Deixei que cheirassem
meus dedos e esfregassem a cabeça em minhas mãos. Alguns deles nem conseguiam manter
os olhinhos abertos. Por fim, me despedi:
” Queria que ficassem. Desta vez não posso correr o risco de ser surrado. A lavoura está
começando, mamãe conta com a minha ajuda. Se meu pai sonhar que apareceram mais de vocês, é bem provável que não me recupere tão rápido. E, quando ele promete algo, Ah!
Certeza de que cumprirá.”
Sentei no chão com a cesta apoiada nas pernas. Sentir o pelo macio nos meus dedos enquanto
carinhava a cabecinha deles me dava uma sensação de paz. Enquanto seus grunhidos me
esmagavam.
“Perdoem ele. Não consegue entender bem animais domésticos. O negócio é criação que are
a terra.”
Estava tarde, eu precisava voltar antes do almoço. Ajoelhei na margem do rio e, ajeitei a
cesta.
“Não tenham medo. Trancei bem justo para que pudessem descer o rio sem afundar. Soube
que na fazenda, poucos metros daqui, tem uma família que gostam muito de animais
domésticos. Encontrem eles. Quem sabe um dia, mamãe me deixe visitá-los.”
Frouxei meus dedos. A cesta boiava pela margem. Logo o rio se encarregou do destino.
Fiquei observando se distanciarem, sumirem na curva. Ainda ouvia os latidos chorosos. A
água se encarregava de dar-lhes um novo lar.

Observação do Autor

Este conto reproduz um fato real.