Berenice Domingues

Prímula

  • Gênero: Romance | Público Jovem Adulto

Matild ofegava dentro do charco onde havia caído. O seu vestido de princesa feito de camadas de delicado tecido estava rasgado e encharcado de lama. Havia corrido a madrugada inteira escondendo-se dos perseguidores, os homens do seu próprio pai. Precisava se afastar o máximo possível do castelo, do seu destino miserável.

Um casamento de pacto era o esperado pela maioria das donzelas de todos os reinos, mal desabrochavam. Matild ousava ter sonhos. Na sua pouca idade tinha sonhos de amor, estava apaixonada, daquelas paixões que não cabem no coração, entornam-se. Sempre ouviu dizer que paixões só existem nas cantigas entoadas por trovadores. Que as relações são feitas de afetos que se fortalecem ao decorrer dos anos, que se aprende a amar, a servir. Conhecia moças que foram arrastadas para esse abismo, lembrava dos seus tediosos sorrisos. Ela escolheu outro tipo de perdição.

Rasgou a parte do vestido estragado para facilitar a subida da colina através do mato alto. Dali, a meio caminho do topo, já podia ver as terras do seu pai, o senhor daquele reino. O rio Danúbio brilhava na luz do fraco luar que vez em quando surgia das nuvens. Os pingos da chuva fina nas suas águas pareciam lágrimas de prata. Imaginou a dor da sua família com a sua repentina fuga, contudo, as suas lágrimas não eram de tristeza, mas de desejo. Todo o seu senso era paixão e ela correu o mais rápido que pôde para encontrar o seu amor.

Dizem que o amor de perdição conta-se nos dedos. Não havia dedos em infindáveis mãos para contar a paixão de Matild e Erdene, como também não havia justificativas possíveis para convencer seu pai do seu destino. O rei nunca saberia, mas ela escolhera o inimigo.

Acima do Danúbio, no seu rastro fugitivo, ela tremia não só de frio. Matild era pequena, delicada como uma flor, também destemida como a sua linhagem real e decidida, como nenhuma mulher da sua família ousou ser. Mas ali, naquela noite incerta, sentiu medo. Os gritos dos cavaleiros do rei e o fogo implacável das suas tochas, piscando no meio do mato, mostravam que não haveria compaixão. Seu pai não aceitaria a sua escolha, muito menos a sua fuga.

Os pontos prateados nas águas do rio não eram mais gemas raras, as luzes no mato não eram mais vaga-lumes, essas eram ilusões que pareciam muito distantes agora, ela não era mais a princesa do reino e nem queria. Chegou na sua caverna escavada e disfarçada no alto da colina, sempre fora o esconderijo perfeito, ali passara a maior parte do seu tempo. Abrigou-se da chuva fina e esperou, precisava despistar os cavaleiros.

Foi dali, em uma tarde do último outono, que viu Erdene pela primeira vez. Ela ainda perdia-se nos doces pensamentos comuns às moças da sua idade, olhando o pequeno punhado de terra que crescia aos poucos e expandia-se. O castelo, cercado de vegetação verde e florida, banhado pelo belo rio, a fazia devanear com príncipes e lendas. Naquela tarde tudo mudou.

Erdene banhava o seu cavalo nas águas do pequeno riacho ao lado da caverna onde estava. Logo percebeu que não era um homem do reino; cabelos e barba escuros e longos, mais baixo e de ombros largos, roupas de peles e incomuns arcos. Já tinha ouvido falar deles, da habilidade, ganância e crueldade do seu povo. O seu reino e todos os outros em volta já preparavam-se para recebê-los de armas em punho.

Ainda que com uma privilegiada e sonhadora vida, Matild já entendia as monstruosidades humanas e sabia que haviam monstros em todos os povos, em qualquer lugar, qualquer reino. Todavia, não viu crueldade nesse homem. Na verdade, parecia-lhe incrível o doce olhar de Erdene.

Nada foi tranquilo e ameno como havia aprendido sobre o amor. A paixão rasgou-lhe o peito. Vê-lo, passou a ser a parte mais importante do seu dia, como se a sua vida disso dependesse. Contava as horas para o momento de subir a colina pelo lado das sombras, para não ser vista nem por ele e nem por ninguém. Do seu esconderijo, admirava-o dia após dia, enquanto ele vigiava, comia, treinava, sempre solitário. Seu coração batia emocionado, porém trêmulo, ao ver a forma como ele praticava e manejava o seu arco e flecha enquanto cavalgava, sabia muito bem o objetivo daquilo. Erdene era um dos impiedosos.

Sentia-se ainda os ventos gelados do inverno, quando encontrou as flores na caverna pela primeira vez. Olhou em volta, sem sinal de ter havido alguém ali. O suave aroma das lindas e pequeninas flores amarelas encheu o pequeno cubículo de pedra. Não as conhecia, não eram da vegetação da sua região e nem das redondezas, achou curioso uma flor tão fresca no inverno. A descoberta mostrou que não era apenas ela que agia furtivamente, seu amado a notara. Cheirou as flores como que a sorver todo o seu perfume, seu peito irrompeu de paixão.

Tornou-se costume encontrar as flores todos os dias até que, em uma tarde fresca de início de primavera, recebeu-as das mãos de Erdene. Ele colocou uma das flores nos cabelos de Matild, acariciando enrolou nos dedos os cachos dourados e aproximou o seu rosto do dela. Ficaram assim, testas encostadas, sentindo a respiração um do outro por uma eternidade. Ela suspirou levemente segurando as lágrimas. Ele a amava.

Os dias que se seguiram foram os mais venturosos para os apaixonados. Cavalgaram por rotas desconhecidas que apenas Erdene trilhava. Matild o levou para outras grutas que apenas ela conhecia. Ambos mantinham segredo da paixão que viviam, sabiam das consequências trágicas. Pareciam crianças aprendendo e ensinando as suas façanhas, trocando palavras desconhecidas dos seus idiomas tão diferentes. A verdade é que bastavam-lhe a linguagem do amor.

Erdene não voltaria para a sua tribo de guerreiros. Matild não se submeteria a nenhum acerto sobre o seu destino, abandonaria o seu reino. Encontrariam um paraíso onde pudessem viver a mais doce paixão, jamais vista nos dois mundos. Não importava o que acontecesse, estariam juntos. Ansiavam que aqueles momentos durassem mil anos.

Os mil anos passaram rápido como uma brisa de verão e os conflitos começaram quando Matild foi prometida ao príncipe de um reino que tinha alianças conciliatórias com seu pai. Os tempos estavam difíceis. Rumores de conquistadores insanos chegavam a todo momento, os reinos precisavam se unir para enfrentar o inimigo. Seu pai nunca saberia, mas ela era o sacrifício e o inimigo, o seu amado.

Naquela tarde, quando cavalgavam, Matild abraçou o corpo de Erdene como se fosse a última vez. O guerreiro estava tenso e, mesmo sem entender as palavras, compreendeu exatamente o que acontecia. Cavalgava com fúria. Da sua touca de peles saíam os longos e abundantes cabelos, ela absorveu o cheiro que tanto amava, seco e moscado. Um aroma surpreendente, como o da estranha e delicada flor que ele sempre lhe trazia. Agarrou ainda mais a sua cintura, suas roupas tinham camadas de lã espessa que formavam uma couraça. Aquele portentoso guerreiro tornara-se o seu refúgio. A valente princesa tornara-se a sua vida.

Os planos de fugir foram antecipados. Erdene já havia abandonado a sua tribo, vivia escondido dos homens do rei e dos homens do seu líder. Em qualquer situação, o seu oponente seria implacável. Os amantes combinaram partir na manhã seguinte. Mas Matild não contava com a coação do seu pai tão premente naquela noite. A única chance seria abrigar-se na colina ainda naquela madrugada e esperar por Erdene lá, até ao amanhecer.

Agora abrigada, temia ter levado os seus perseguidores até ali. A colina que levava até a sua caverna era um terreno muito acidentado, com grande declive e de vegetação alta. Era compreensível que não fizesse parte das escoltas dos cavaleiros do seu pai, eles acreditavam que não havia perigo vindo dali. Contudo, nessa noite fria e chuvosa, não conseguiu se esconder apropriadamente ao subir a encosta. A chuva, a lama, o vestido, atrapalhavam a sua fuga. Ironicamente, poderia ser ela quem os levaria até Erdene. Sabia desde o início da sua fuga que se encaminhava para a ruína. Sabia disso no momento em que negou ao seu pai o mísero direito dele usar a sua vida, o seu destino. Temia que o seu amor fosse a maldição de Erdene.

Despertou assustada com Erdene entrando na caverna nas primeiras luzes da aurora. Ele trazia túnicas rústicas de lã, uma bebida quente e as flores douradas. Matild tremia de frio e ele entendeu as lágrimas no seu rosto. Aqueceu-a, beijou-lhe a face apaixonadamente e os lábios tão adorados. Ficaram um bom tempo abraçados, percebendo os ruídos do lado de fora. Uma chuva muito fina caía em meio aos primeiros raios de sol e era de uma beleza singular.

Ele saiu com cuidado da caverna, checou a área em volta, foi até o seu cavalo. Matild não esperou, saiu e ao passar pela saída da caverna, sentiu as flechas que já estavam lançadas zunirem entre os dois. E, antes mesmo que os três cavaleiros ajustassem novamente as miras dos seus arcos, Erdene, com movimentos mais rápidos do que os olhos podiam acompanhar, virou-se em seu cavalo em movimento, já com o arco preparado. Cavalgando, acertou os três quase que simultaneamente. A velocidade da sua flecha trespassou um a um. As armaduras não os salvaram.

Com a certeza de que logo chegariam muitos outros, Erdene passou pela entrada da caverna onde Matild estava parada e esticou-se para puxá-la para a montaria em movimento. As flores ficaram no chão. Partiu em disparada.

Logo percebeu que o abraço de Matild amoleceu, ela estava sem forças. Temendo o pior, Erdene parou o cavalo. Ela estava banhada em sangue. Desesperado, procurou o ferimento. A flecha não penetrou, mas fez uma lesão no seu frágil pescoço. Os cavaleiros não esperavam que ela estivesse com ele, achavam ter encontrado um guerreiro inimigo e atacaram, não a viram sair da caverna. Os próprios homens do rei atingiram a princesa mortalmente e não viveram para contar. Nos seus braços, ela estava pálida e as lágrimas escorriam. Tentou estancar o sangue e percebeu que de nada adiantaria.

Desejou com todas as suas forças que tivesse sido atingido no lugar da sua princesa, teria oferecido a sua vida voluntariamente. Sentiu-se um desgraçado, mas a coragem enraizada não o deixava ruir. Os doces olhos de Erdene foram o último alento da triste Matild. Ele a beijou, com desesperada paixão, misturando as suas lágrimas às dela e aqueceu-lhe o corpo inerte. Cavalgou com o corpo da princesa durante as horas mais infelizes da sua vida até avistar o campo de prímulas. O chão era um enorme jardim dourado, tomado das flores pequeninas. Fez-lhe uma coroa com as delicadas flores amarelas e deitou abraçado à sua amada no chão florido enquanto anoitecia. Erdene chorava. Matild repousava serena.

Na alta noite, após sepultar a sua princesa no jardim, sepultando também todo o seu amor, Erdene viu o rastro brilhante que rasgou o céu escuro, a silenciosa estrela indicando o caminho a seguir. O triste e solitário guerreiro desapareceu rumo aos urais.

No reino, nunca saberiam ao certo o que aconteceu. As flechas inimigas, os cavaleiros mortos, as buscas, apenas induziriam à suposições. Outros espiões inimigos ocupariam o lugar de Erdene e logo chegaria o momento do embate. A princesa desaparecida seria entoada pelos trovadores. Ninguém perceberia, mas todos os anos no inverno nasceriam na entrada da caverna, delicadas flores amarelas, cujo perfume suave e exótico tomaria o ar da colina. As prímulas foram as únicas testemunhas da paixão que levou à perdição a princesa dourada do Danúbio e o guerreiro das estepes.


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Prímula: flor frágil e pequena de origem asiática, de várias colorações e que floresce no outono e inverno. Simboliza um forte vínculo entre duas pessoas.

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Observação do Autor

"Prímula” faz parte da Antologia Romances Medievais ao lado de outros autores e autoras com seus contos inéditos cheios de romance. paixão e tragédias, bem ao estilo medieval. Pode ser adquirido na Amazon e na Livraria da Cartola.

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