Rosângela Martins

Baralho – cerveja – futebol e boca fechada

  • Gênero: Comédia | Público Adulto

— Deixa que eu começo embaralhando. — Waldemar, como anfitrião, tomou a frente.

— É hoje! Já tô sentindo a sorte. — Rubão esfregou as mãos e encarou a dupla adversária. Logo, um sorriso malicioso quis se formar, mas foram os olhos brilhantes como os de um lobo ao localizar a sua presa que revelaram suas intenções.

Após um track inconfundível e prazeroso de se ouvir, Mário veio da cozinha segurando uma gelada e juntou-se aos três amigos.

— Jairo, você sabe jogar mesmo, né? — Waldemar dirigiu-se ao seu novo parceiro daquele sábado.

— Pô, Waldemar. Ralei pra encontrar um cabra à altura do Robinho que ficou doente, e tu vem com essa conversa. — O ressentimento do amigo só durou até o primeiro gole na sua lata. — Lá na obra todo mundo conhece o Jairo. Pergunta aí pro Mário.

— É verdade, Waldemar. Na hora do almoço o pessoal joga tudo: trinta e um, sueca, pôquer, dominó, o que for… E o Jairo faz a limpa. Em uma hora de almoço ele ganha mais do que na diária mexendo concreto e assentando tijolo. — Mário riu com todos os dentes.

— E depois, vai virar o cimento cheio de disposição, não é Jairo? — Rubão largou a mão pesada nas costas do amigo e gargalhou, achando graça da própria piada.

Jairo suportou o golpe com uma leve contração e sorriu com o bigode.

— Bom, mas só que aqui a gente joga buraco, né? — Waldemar franziu a testa e coçou a cabeça. Por um momento imaginou que seus próprios amigos talvez pudessem estar querendo passar-lhe a perna.

— Cara, lá vem tu de novo com essa conversa. Já disse que o Jairo é bom. — Rubão virou a cerveja goela adentro. — Vamos começar ou não?

O bigode de Jairo se abriu.

— Você é mineiro, Jairo?

O rapaz, bem mais novo do que os companheiros, assentiu com a cabeça, enquanto abria a sua lata. Waldemar não o conhecia, até então. — Já gostei de você. Esses dois aqui falam demais, né? E jogo não é falado.

— Waldemar, a patroa já saiu? — Rubão quis saber.

— Tinha que sair, né? Quem manda aqui? Ela vai dormir no apartamento da mãe e só volta amanhã. Hoje o apê é todo nosso! — E batucou na mesa, apesar de saber que no dia seguinte a mulher o obrigaria a limpar toda a bagunça deixada, incluindo a lavagem do banheiro e a arrumação da cozinha. — Na próxima semana é na sua casa, tá sabendo, né, Rubão? — Pensar que os amigos também passavam pelo mesmo martírio era confortante.

comigo! A cerva já tá até comprada. — Então levantou um brinde para comemorar. — À nossa liberdade! Mesmo que seja só uma vez por semana.

Ergueram as latas que se chocaram no ar, mas apenas o suficiente para provocar um tilintar cuidadoso. Afinal, não podiam arriscar derramar o precioso líquido dourado.

— Mais tarde tem o jogo do Mengão. É às nove, marca aí. — Rubão apontou para o relógio na parede que ainda mostrava cinco da tarde.

A camisa do time que vestia já denunciava o homem parrudo como um fanático torcedor flamenguista. Waldemar e Mário eram torcedores mais comuns. O primeiro estava com a bandeira rubro negra amarrada ao pescoço, que descia pelas costas como uma capa, e com duas marcas de tinta — vermelha e preta — nas bochechas. Na parede, um enorme pôster com os jogadores do Flamengo recebia um beijo seu toda vez que passava para ir ao banheiro. Quanto a Mário, usava apenas um boné — que um dia já foi branco — com o escudo do time, autografado pelo Zico. No pé direito, uma chuteira que jurava ter pertencido a Nunes, ex craque flamenguista, adquirida em um leilão virtual, considerada por Mário a sua chuteira da sorte. Apenas um pé.

Jairo, em sua bermuda jeans e camiseta branca, deixava no ar a dúvida se ele torcia mesmo pelo Flamengo.

De repente, Waldemar não se aguentou e teve que perguntar.

— Caramba, Waldemar! — Rubão saiu em defesa do amigo. — Tu hoje tirou o dia pra duvidar da minha palavra, irmão! Eu já não te falei! É claro que ele, assim como nós, ama o Mengão de paixão. Mostra aí, Jairo.

Com a boca cheia de salgadinhos, Jairo puxou da carteira um cromo com a imagem do distintivo do Flamengo.

O jogo prosseguiu.

Waldemar abaixou para pegar mais cerveja do cooler vermelho e preto, posicionado de forma estratégica ao seu lado, quando ouviu um grito.

— Bati! — Rubão arriou todas as cartas de uma vez só.

Waldemar se ergueu às pressas, respirou fundo e lançou um olhar questionador para Jairo. Apesar de dar de ombros, pareceu ter entendido a fisionomia intimidadora do parceiro, pois na rodada seguinte foi ele quem bateu.

— Flamengo e Internacional! É hoje! Toma, meu Mengão, pra você! — Rubão deu um gole, beijou a camisa e gritou: — Bati!

Dessa vez o rosto de Waldemar não avermelhou. Ele sabia que o jogo dele e do seu parceiro era maior do que o dos adversários. Era só olhar para a mesa. Pelas suas contas ele dava como certo que fariam mais pontos nessa rodada.

— Dois mil e trezentos, anota aí — Rubão encerrou a sua contagem, batendo com as cartas do baralho na mesa.

Waldemar, que estava anotando os pontos, jogou a caneta pro lado.

— Pera lá! Como é que pode a gente, que tinha muito mais cartas, fazer mil e quinhentos e vocês dois mil e trezentos? Mário, confere aí, que o Roubão parece que esqueceu como se conta.

Rubão fez que não entendeu a piada. Ao menos não se importou. Pegou o monte de cartas e entregou ao seu parceiro para recontar.

Após repassar todas as cartas, Mário deu o veredito.

— Tava errado mesmo.

— Eu não disse?

— Deu dois mil, duzentos e noventa e cinco.

O jogo prosseguiu e a dupla Rubão e Mário estava ganhando todas, até então.

Faltando meia hora para começar a partida de futebol, a música do pé sujo em frente ao prédio começou.

A mesa de jogo ficava próxima à janela, porque era mais claro e arejado. Porém, o apartamento de Waldemar, que ficava no segundo andar, captava toda a movimentação do bar.

— Testando, um, dois, três.

— Essa não! — Waldemar levou a mão à cabeça. — Hoje é o dia das atrações de fora!

— Ah, não! Na hora do jogo, a gente fecha a janela. E se o som deles tiver muito alto, a gente chama a polícia. — Rubão queria encontrar de qualquer jeito uma solução para poder ver e ouvir o seu time jogar.

— Para iniciar essa noite de seresta e muita nostalgia, trazemos a nossa querida Cláudia Barroso de Realengo!

— Cara, esse bar parece um bordel das antigas. É uma velharia! Todo final de semana é isso. — Waldemar falou contrariado, enquanto dava as cartas.

Mário se levantou e foi conferir, disposto a fechar logo a janela.

— É… tá cheio de mesas e cadeiras na calçada. Parece mais um museu do que um show! — Mário levou a mão à barriga de tanto rir, acompanhado por Rubão.

Jairo baixou o olhar para as cartas em suas mãos, franziu as sobrancelhas e estreitou o bigode. Waldemar, que também estava rindo, imaginou que a seriedade do companheiro poderia ser um bom sinal. Significava que ele estava concentrado e próximo de bater.

 — E logo mais teremos a Dalva de Itaboraí! — anunciou o microfone do bar.

Rubão também conhecia a rotina daquele cospe grosso, por estar acostumado às jogatinas periódicas no apartamento do amigo.

— Cara, é cheio de p*tas velhas aí. Há anos que é assim.

— A minha avó não perde um sábado sequer. — Jairo finalmente falou. Antes tivesse ficado calado.

Os outros três se entreolharam e engoliram seco. Afinal, família era sagrada.

— Mário, não precisa fechar a janela não, que vai ficar muito quente. — Waldemar, meio desorientado, recomendou ao amigo, que interrompeu o movimento no mesmo instante e voltou a escancarar as janelas.

— Mário, é tu que joga agora. Vamos terminar essa partida, que está quase na hora do jogo. — Rubão se apressou para mudar logo de assunto.

— E não vamos mais jogar? Eu prefiro ficar jogando buraco a assistir à partida do Flamengo. — Jairo surpreendeu.

Um pigarreou, o outro coçou a cabeça, mas foi Rubão, com o suor escorrendo pelas têmporas, quem decidiu.

— É… eu… a gente pode ver o replay… amanhã — falou com dificuldade, achando que aquele sacrifício seria uma das formas de redenção pelo que disseram sobre a avó do rapaz.

— Que ótimo! — O bigode de Jairo se abriu e todos ficaram aliviados.

O jogo de baralho virou a noite. Porém, Jairo conseguiu reverter a situação e ele e Waldemar ganharam todas as partidas seguintes. Mesmo assim, não o convidaram mais para o carteado. Esperaram Robinho se restabelecer da pneumonia para voltar a ocupar o seu lugar. Apesar de ser vascaíno, ao menos Robinho gostava de futebol e não tinha avós vivas.

FIM

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Observação do Autor

Quando um quase desconhecido assume o lugar de um parceiro no carteado, é melhor ter cuidado com o que se fala.

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