- Gênero: Comédia | Público Adulto
Baralho, cerveja, futebol e boca fechada
— Deixa que eu começo embaralhando. — Waldemar, como anfitrião, tomou a frente.
— É hoje! Já tô sentindo a sorte. — Rubão esfregou as mãos e encarou a dupla adversária. Logo, um sorriso malicioso quis se formar, mas foram os olhos brilhantes como os de um lobo ao localizar a sua presa que revelaram suas intenções.
Após um track inconfundível e prazeroso de se ouvir, Mário veio da cozinha segurando uma gelada e juntou-se aos três amigos.
— Jairo, você sabe jogar mesmo, né? — Waldemar dirigiu-se ao seu novo parceiro daquele sábado.
— Pô, Waldemar. Ralei pra encontrar um cabra à altura do Robinho que ficou doente, e tu vem com essa conversa. — O ressentimento do amigo só durou até o primeiro gole na sua lata. — Lá na obra todo mundo conhece o Jairo. Pergunta aí pro Mário.
— É verdade, Waldemar. Na hora do almoço o pessoal joga tudo: trinta e um, sueca, pôquer, dominó, o que for… E o Jairo faz a limpa. Em uma hora de almoço ele ganha mais do que na diária mexendo concreto e assentando tijolo. — Mário riu com todos os dentes.
— E depois, vai virar o cimento cheio de disposição, não é Jairo? — Rubão largou a mão pesada nas costas do amigo e gargalhou, achando graça da própria piada.
Jairo suportou o golpe com uma leve contração e sorriu com o bigode.
— Bom, mas só que aqui a gente joga buraco, né? — Waldemar franziu a testa e coçou a cabeça. Por um momento imaginou que seus próprios amigos talvez pudessem estar querendo passar-lhe a perna.
— Cara, lá vem tu de novo com essa conversa. Já disse que o Jairo é bom. — Rubão virou a cerveja goela adentro. — Vamos começar ou não?
O bigode de Jairo se abriu.
— Você é mineiro, Jairo?
O rapaz, bem mais novo do que os companheiros, assentiu com a cabeça, enquanto abria a sua lata. Waldemar não o conhecia, até então. — Já gostei de você. Esses dois aqui falam demais, né? E jogo não é falado.
— Waldemar, a patroa já saiu? — Rubão quis saber.
— Tinha que sair, né? Quem manda aqui? Ela vai dormir no apartamento da mãe e só volta amanhã. Hoje o apê é todo nosso! — E batucou na mesa, apesar de saber que no dia seguinte a mulher o obrigaria a limpar toda a bagunça deixada, incluindo a lavagem do banheiro e a arrumação da cozinha. — Na próxima semana é na sua casa, tá sabendo, né, Rubão? — Pensar que os amigos também passavam pelo mesmo martírio era confortante.
— Xá comigo! A cerva já tá até comprada. — Então levantou um brinde para comemorar. — À nossa liberdade! Mesmo que seja só uma vez por semana.
Ergueram as latas que se chocaram no ar, mas apenas o suficiente para provocar um tilintar cuidadoso. Afinal, não podiam arriscar derramar o precioso líquido dourado.
— Mais tarde tem o jogo do Mengão. É às nove, marca aí. — Rubão apontou para o relógio na parede que ainda mostrava cinco da tarde.
A camisa do time que vestia já denunciava o homem parrudo como um fanático torcedor flamenguista. Waldemar e Mário eram torcedores mais comuns. O primeiro estava com a bandeira rubro negra amarrada ao pescoço, que descia pelas costas como uma capa, e com duas marcas de tinta — vermelha e preta — nas bochechas. Na parede, um enorme pôster com os jogadores do Flamengo recebia um beijo seu toda vez que passava para ir ao banheiro. Quanto a Mário, usava apenas um boné — que um dia já foi branco — com o escudo do time, autografado pelo Zico. No pé direito, uma chuteira que jurava ter pertencido a Nunes, ex craque flamenguista, adquirida em um leilão virtual, considerada por Mário a sua chuteira da sorte. Apenas um pé.
Jairo, em sua bermuda jeans e camiseta branca, deixava no ar a dúvida se ele torcia mesmo pelo Flamengo.
De repente, Waldemar não se aguentou e teve que perguntar.
— Caramba, Waldemar! — Rubão saiu em defesa do amigo. — Tu hoje tirou o dia pra duvidar da minha palavra, irmão! Eu já não te falei! É claro que ele, assim como nós, ama o Mengão de paixão. Mostra aí, Jairo.
Com a boca cheia de salgadinhos, Jairo puxou da carteira um cromo com a imagem do distintivo do Flamengo.
O jogo prosseguiu.
Waldemar abaixou para pegar mais cerveja do cooler vermelho e preto, posicionado de forma estratégica ao seu lado, quando ouviu um grito.
— Bati! — Rubão arriou todas as cartas de uma vez só.
Waldemar se ergueu às pressas, respirou fundo e lançou um olhar questionador para Jairo. Apesar de dar de ombros, pareceu ter entendido a fisionomia intimidadora do parceiro, pois na rodada seguinte foi ele quem bateu.
— Flamengo e Internacional! É hoje! Toma, meu Mengão, pra você! — Rubão deu um gole, beijou a camisa e gritou: — Bati!
Dessa vez o rosto de Waldemar não avermelhou. Ele sabia que o jogo dele e do seu parceiro era maior do que o dos adversários. Era só olhar para a mesa. Pelas suas contas ele dava como certo que fariam mais pontos nessa rodada.
— Dois mil e trezentos, anota aí — Rubão encerrou a sua contagem, batendo com as cartas do baralho na mesa.
Waldemar, que estava anotando os pontos, jogou a caneta pro lado.
— Pera lá! Como é que pode a gente, que tinha muito mais cartas, fazer mil e quinhentos e vocês dois mil e trezentos? Mário, confere aí, que o Roubão parece que esqueceu como se conta.
Rubão fez que não entendeu a piada. Ao menos não se importou. Pegou o monte de cartas e entregou ao seu parceiro para recontar.
Após repassar todas as cartas, Mário deu o veredito.
— Tava errado mesmo.
— Eu não disse?
— Deu dois mil, duzentos e noventa e cinco.
O jogo prosseguiu e a dupla Rubão e Mário estava ganhando todas, até então.
Faltando meia hora para começar a partida de futebol, a música do pé sujo em frente ao prédio começou.
A mesa de jogo ficava próxima à janela, porque era mais claro e arejado. Porém, o apartamento de Waldemar, que ficava no segundo andar, captava toda a movimentação do bar.
— Testando, um, dois, três.
— Essa não! — Waldemar levou a mão à cabeça. — Hoje é o dia das atrações de fora!
— Ah, não! Na hora do jogo, a gente fecha a janela. E se o som deles tiver muito alto, a gente chama a polícia. — Rubão queria encontrar de qualquer jeito uma solução para poder ver e ouvir o seu time jogar.
— Para iniciar essa noite de seresta e muita nostalgia, trazemos a nossa querida Cláudia Barroso de Realengo!
— Cara, esse bar parece um bordel das antigas. É uma velharia! Todo final de semana é isso. — Waldemar falou contrariado, enquanto dava as cartas.
Mário se levantou e foi conferir, disposto a fechar logo a janela.
— É… tá cheio de mesas e cadeiras na calçada. Parece mais um museu do que um show! — Mário levou a mão à barriga de tanto rir, acompanhado por Rubão.
Jairo baixou o olhar para as cartas em suas mãos, franziu as sobrancelhas e estreitou o bigode. Waldemar, que também estava rindo, imaginou que a seriedade do companheiro poderia ser um bom sinal. Significava que ele estava concentrado e próximo de bater.
— E logo mais teremos a Dalva de Itaboraí! — anunciou o microfone do bar.
Rubão também conhecia a rotina daquele cospe grosso, por estar acostumado às jogatinas periódicas no apartamento do amigo.
— Cara, é cheio de p*tas velhas aí. Há anos que é assim.
— A minha avó não perde um sábado sequer. — Jairo finalmente falou. Antes tivesse ficado calado.
Os outros três se entreolharam e engoliram seco. Afinal, família era sagrada.
— Mário, não precisa fechar a janela não, que vai ficar muito quente. — Waldemar, meio desorientado, recomendou ao amigo, que interrompeu o movimento no mesmo instante e voltou a escancarar as janelas.
— Mário, é tu que joga agora. Vamos terminar essa partida, que está quase na hora do jogo. — Rubão se apressou para mudar logo de assunto.
— E não vamos mais jogar? Eu prefiro ficar jogando buraco a assistir à partida do Flamengo. — Jairo surpreendeu.
Um pigarreou, o outro coçou a cabeça, mas foi Rubão, com o suor escorrendo pelas têmporas, quem decidiu.
— É… eu… a gente pode ver o replay… amanhã — falou com dificuldade, achando que aquele sacrifício seria uma das formas de redenção pelo que disseram sobre a avó do rapaz.
— Que ótimo! — O bigode de Jairo se abriu e todos ficaram aliviados.
O jogo de baralho virou a noite. Porém, Jairo conseguiu reverter a situação e ele e Waldemar ganharam todas as partidas seguintes. Mesmo assim, não o convidaram mais para o carteado. Esperaram Robinho se restabelecer da pneumonia para voltar a ocupar o seu lugar. Apesar de ser vascaíno, ao menos Robinho gostava de futebol e não tinha avós vivas.
FIM
Leia outros contos da autora:
Observação do Autor
Quando um quase desconhecido assume o lugar de um parceiro no carteado, é melhor ter cuidado com o que se fala.