João e Maria: análise e reflexões contemporâneas

Quem nunca ouviu falar na história das duas crianças largadas na floresta? Presente em nossas vidas há anos, essa história é contada de pai para filho; lido por crianças, jovens, adolescentes e adultos, passada de geração em geração sem deixar de ser contemporânea. Afinal, qual o segredo de tanto sucesso e o que podemos aprender com esse mágico conto de fadas?

Confira a seguir uma resenha de João & Maria, de Neil Gaiman e Lorenzo Mattotti (Editora Intrínseca), com uma análise simbólica e reflexões contemporâneas.

Resenha: João & Maria

Filhos de um lenhador, João e Maria são dois irmãos que moravam em uma cabana na floresta com seu pai e sua mãe. Possuíam uma vida feliz e farta, até que a guerra chegou e transformou todo esse cenário.

Com poucos recursos e a alimentação escassa, a mãe das crianças convence o pai que a melhor forma de sobreviverem é abandonar os filhos na floresta. De início, o pai é relutante, mas concorda e assim faz.

— Somos quatro — disse a mãe. — Quatro bocas para alimentar. Se continuarmos assim, vamos todos morrer. Sem as bocas a mais, eu e você teremos uma chance.

— Não podemos fazer isso — respondeu o lenhador, aos sussurros. — É monstruoso matar as crianças, jamais concordarei com isso.

— Não vamos matá-los, vamos perdê-los — retrucou a esposa do lenhador. (GAIMAN, 1960, p.14)

Na floresta

Fingindo levar as crianças para acompanhar o seu trabalho na floresta, o pai pede para que os irmãos fiquem juntos e o aguarde, abandonando-os. Porém, João e Maria conseguem retornar a casa graças ao garoto, que na noite anterior havia acordado com a dor aguda da fome e ouviu o plano dos pais. Eles levam consigo pedrinhas brancas nos bolsos, que usou para marcar o caminho de volta para casa enquanto adentravam na floresta.

Os pais ficaram surpresos com o retorno dos filhos. O lenhador os abraçou e, contente em vê-los, chorou emocionado. Deu uma cereja a cada um — as últimas armazenadas no pote — , e comemorou o retorno dos dois. Entretanto, com o passar das semanas e a fome apertando ainda mais, o pai levou-os novamente à floresta. Dessa vez, muito mais longe de casa.

Mas João não estava preparado como da última vez. Levou apenas um pedaço de pão, que recebeu naquela manhã em seu desjejum. À medida que eles entravam na floresta, o garoto deixava milhas pelo caminho, com o mesmo objetivo de antes, formar uma trilha de volta para casa.

Quando anoiteceu, as crianças estavam com frio e fome; comeram a fatia pequena do pão que Maria havia levado e decidiram voltar para casa, pelo caminho traçado pelo irmão. Todavia, os animais da floresta haviam devorado todas as migalhas.

Apavorados, eles continuaram caminhando floresta adentro, perdendo-se ainda mais. Exaustos e famintos, sentiram um aroma incrível vindo por entre as árvores; sendo atraídos instantaneamente até uma maravilhosa casa feita de doces. Janela, porta, telhado; tudo era formado por biscoitos, guloseimas e chocolates! Sem acreditar no que viam, começaram a comer pedaços daquela fabulosa casa, mas o barulho que fizeram chamou atenção da velha senhora que ali morava. Então ela saiu e os viu, convidando-os a entrar.

O banquete

Como uma boa anfitriã, serviu-lhe um banquete que foi rapidamente devorado e, logo, eles caíram num sono profundo. A velha, que de boazinha não tinha nada, aproveitou o momento para prendê-los. João ficou em uma gaiola e Maria, amarrada ao pé da mesa.

Ao despertarem perceberam que o sonho havia acabado! Maria foi incumbida de cozinhar e limpar a casa e João de comer. Tudo do melhor era servido ao menino e para menina, apenas sobras e poucas coisas eram dadas.

Todos os dias, a velha pedia para o garoto lhe mostrar o dedo, para ela checar se ele já estava gordo o suficiente para ser assado. Percebendo isso, o menino sempre mostrava a ponta de um osso e como a velha não enxergava bem, pensava que ele estava magro. Até que um dia, cansada de ver que ele não engordava, decidiu assá-lo: gordo ou magro, iria comê-lo.

A velha pediu para Maria esquentar a fornalha e a menina entrou aos prantos, obedecendo-a. Chorou muito e, assim que lhe pediu para verificar a temperatura do forno, a menina fingiu que não sabia como fazer isso — fazendo com que a velha demonstrasse a ela. Nessa oportunidade, Maria jogou a mulher má na fornalha em brasas e correu para salvar seu irmão.

Assim que o libertou da jaula, os dois partiram da casa de doces e levaram os tesouros que aquela senhora possuía escondido; todos de pessoas que ela havia aprisionado e devorado. Enfrentaram novamente a floresta e retornaram para seu lar, encontrando o pai que não havia tido um só dia de felicidade desde que os abandonou.

A madrasta havia morrido, mas agora, com os tesouros trazidos pelos filhos, a família nunca mais passou necessidade alguma e eles viveram felizes para sempre.

Como já dizia o célebre escritor Carlos Drummond de Andrade “o tempo é o elemento de transformação” — e isso se aplica a tudo! Da evolução humana às narrativas; não poderia diferir. Afinal, a humanidade é movida por histórias e esse fato é comprovado desde os primórdios por desenhos encontrados nas cavernas, que relatam histórias para registrar feitos e/ou acontecimentos.

Assim, também aconteceu com os contos que conhecemos hoje. A princípio, transmitidos de forma oral, sobrevivendo ao longo do tempo, pela tradição de contar histórias — com mais ou menos detalhes — ; após, transformando-se pelas influências culturais e sociais de cada época.

Coletados pelos irmãos Grimm e com o título original de Hänsel und Gretel, historiadores acreditam que João e Maria teve sua origem no período medieval, por volta do ano 1315. Época da Grande Fome, a primeira de uma série de crises sociais, atingiu a Europa e deixou milhares de mortos por toda a região. Por isso, abandonar os filhos e até se alimentar de carne humana — como acontece em João e Maria — , tornou-se uma prática relativamente comum entre as pessoas.

— Eu lhe direi o que fazer, marido — respondeu a esposa. — Deixaremos nossas crianças na floresta amanhã cedo. Faremos uma fogueira e daremos um pedaço de pão a cada um. Então, iremos ao trabalho e os deixaremos lá, sozinhos. Eles jamais encontrarão o caminho de casa.
(João e Maria. Contos de fadas em suas versões originais. Editora Wish. p. 203)

— Hoje, quando o forno estiver quente o bastante, vamos assar seu irmão — explicou a velha.
(João & Maria. Neil Gaiman e Lorenzo Mattotti. Editora Intrínseca. p. 42)

E se você está pensando que isso é coisa do passado, infelizmente lamento informar que está errado… Talvez, você não conheça famílias que abandonam crianças no meio da floresta, mas ainda hoje, muitas são abandonadas pelos pais.

A temática

A temática deste conto de fadas ainda permeia nossa sociedade, mostrando que não estamos tão distantes da história encantada e assombrada. O abandono, a fome, a angústia e o medo estão entre nós. Basta ver os noticiários e deparar-se com os índices de abandono infantil e a escassez de recursos promovida pela desigualdade social.

Interpretando com um olhar mais contemporâneo, o medo da floresta e o medo de ser devorado dos irmãos pode ser relacionado a nossa vida, Neste sentido, traduzindo as grandes cidades e os centros na figura da floresta e nós, como João e Maria. Expostos, vivemos em um cenário sombrio de violência e incertezas, perdidos nessa imensa selva de pedras — principalmente no atual momento em que vivemos, com uma pandemia mundial que já fez milhões de vítimas. Além disso, sendo muitas vezes, devorados por uma rotina onde a saúde física e mental é desprivilegiada e somos obrigados a dar 100% de nós para sobreviver.

Todavia, o conto de fadas nos traz esperança. A derrota dos monstros — dentro de casa e na floresta — e o retorno ao lar (objetivo conquistado) é prova disso! Desta forma, como em João e Maria, tesouros e um final feliz podem estar nos aguardando, é só questão de tempo, perseverança e luta. Afinal, se eles tivessem desistido no meio da jornada, a história poderia ter acabado na floresta ou na casa de doces.

Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais. Ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva. O herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. 
(CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. p.36)

Adaptações da obra e aspectos simbólicos

Mesmo curta, a história de João e Maria traz pontos interessantes para estudo e reflexão. Repleta de simbolismo, nos possibilita realizar uma interpretação intersemiótica, feita a seguir em conjunto com algumas adaptações/transformações que o conto sofreu ao longo dos anos:

Mãe versus Madrasta

Em algumas versões do conto de fadas encontramos a figura da mãe sendo o personagem que tenta persuadir o pai a abandonar os filhos, em outras, a figura da madrasta. O fato de uma mãe abandonar os filhos é impactante demais, por esse motivo, a partir de 1.857 muitas versões da obra substituem a figura da mãe pela madrasta; fazendo uso do estereótipo de madrasta como mulher má.

Ora, sabemos que as coisas não são bem assim, mas esse clichê permeia a sociedade e é frequentemente reforçado pelos veículos de mídias. Exemplo disso, inclusive, é como a própria Disney retrata o papel de madrasta em Cinderela — assumindo um arquétipo de vilã que assemelha-se a uma bruxa.

Velhas senhoras versus Bruxas malvadas

É comum as histórias incorporarem velhas senhoras como bruxas malvadas. Essa comparação e relação pode ser feita tanto pela escrita, como pela ilustração — que em livros infantis são usadas com a função de apenas ilustrar a história (Illustrated book). Ou de complementá-las (Picture book) e até de contá-las, sem que nenhuma palavra seja inserida (Wordless picture book). Desta forma, é interessante notar que mesmo quando isso não é expresso em palavras, pode ser por imagens, com elementos característicos do inconsciente coletivo acerca de uma bruxa. A figura de uma velha com nariz grande, visão falha, andar arqueado, roupas escuras, dedos finos, um visual sombrio, está bem presente.

Mãe — Madrasta — Bruxa

Será que no conto João e Maria essas figuras estão correlacionadas? Você já parou para refletir nisso!? Em algumas versões da histórias, o personagem da velha é comparado e/ou inserido como bruxa. Isso não ocorre em todas as versões. Contudo, mesmo nas que não apontam isso, existe uma explicação atrelada a correlação com o mal que esses personagens imprimem, que uma vez extinto, exterminam os personagens que o representam, como podemos observar na obra.

A Floresta e a Casa de Doces

Simbolicamente, a floresta representa o inconsciente. Antes da experiência na floresta, João e Maria eram apenas crianças. À medida que eles passam a estar na floresta, os perigos daquele cenário alteram o modo como eles veem o mundo externo — eles começam a crescer. Dentro da psique representa a morte simbólica, uma disruptura da inocência para fase adulta.

Além disso, dentro dessa aventura, os irmãos deparam-se com a Casa de Doces, que os atrai. Nesse ponto, encontramos a representação do perigo e, simbolicamente, do desejo, atrelado de forma religiosa pelos cristão ao cenário do inferno — representando muito bem o que João e Maria viveram dentro daquela casa. Entretanto, foi uma experiência fundamental para que a transformação dos personagens acontecesse.

A casinha de biscoito de gengibre é uma mensagem que ninguém esquece: é um quadro incrivelmente atraente e tentador. Mas que risco terrível corremos se cedermos à tentação! A criança reconhece que, como João e Maria, desejaria devorar a casinha de biscoitos, não importam os perigos. A casa representa a voracidade oral, e como é atrativo ceder a ela. O conto de fadas é a cartilha onde a criança aprende a ler sua mente na linguagem das imagens, a única linguagem que permite a compreensão antes de conseguirmos a maturidade intelectual. A criança precisa ser exposta a essa linguagem, e deve aprender a prestar atenção a ela, se deseja chegar a dominar sua alma. 
(BETTELHEIM, 1980, p. 197)

A prova da coragem

Então, dependendo da versão do conto, há uma travessia de um rio que as crianças devem fazer quando estão a caminho de casa, após a experiência vivida na Casa de Doces. Além de toda a coragem que podemos notar nos eventos que antecedem esse trecho, ao chegar nesse momento de cruzar o rio, João e Maria se encontram com uma pata. Os irmãos percebem que para fazer a travessia é fundamental que subam nela e Maria insiste para que João vá primeiro. Assim acontece: primeiro ele atravessa e depois ela. Essa travessia representa o amadurecimento e a coragem dos irmãos.

Aqueles que, a princípio, andavam de mãos dadas e com medo na floresta, andam agora sozinhos e sem medo. O processo de amadurecimento e crescimento humano é individual, cada um tem sua própria passagem, e aqui, eles provam separados essa evolução.

Enfim, João e Maria voltam transformados para a casa e com tesouros (recompensa), o que permite que a família nunca mais passe necessidade alguma (solução de conflito).

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