Correntes de Papel – Capítulo I

  • Gênero: Romance | Público Jovem adulto

Capítulo I – Amor

Por volta da década de 1870, Vila do Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, Brasil.

Seria impressão minha ou naquela manhã os passarinhos estavam mais cantadores? Sozinha, sentada à poltrona da sala, apurei os ouvidos e agilizei minhas mãos. Meu pequeno balaio de costura as mantinha ocupadas, enquanto a mente passeava pelas lembranças das noites anteriores com Francisco em minha cama.

Pensar no sorriso do meu amado, denunciando a sua plena satisfação, encharcava a minha alma de fantasias e ilusões; penetrava no meu íntimo para me provar que a felicidade existia. Mas o avançar da madrugada trazia o retorno da lucidez e prenunciava a saudade, avisando a hora de ele fugir. Com a agilidade de uma onça, ele pulava a janela e, auxiliado pela escuridão, alcançava o canavial, evitando que o feitor desse falta dele no início da lida. Desde então, passei a dar outro significado ao nascer do sol: os primeiros raios matutinos suaves entrando mansamente pelo quarto, sem pedir licença, reaqueciam a minha cama, até refletir na minha mente a tez firme e escura do meu amado, ainda sentida sobre mim. E foi assim o meu despertar, após cada uma das últimas 14 noites que estive com Francisco.

O início do nosso romance, apesar da maturidade dos meus 22 anos, trouxe-me o frescor das tenras idades, embora acompanhado de preocupações. Por isso, a felicidade rotulada no meu rosto deveria ser prudente e se manter escondida, calada.

— Tá rindo de quê, nhazinha? — perguntou mãe Doninha, ao passar pela sala. Vasculhando minhas costuras, agradou-se do bordado de uma flor, apesar de pressentir que o motivo do meu sorriso não poderia estar escondido em um balaio tão pequeno.

Mãe Doninha me conhecia bem. Desde sempre em nossa cozinha, às voltas com suas panelas de ferro. Os olhos grandes, os lábios carnudos, a voz grave, o corpo farto e os poucos sorrisos lhe conferiam força e autoridade sobre todos na fazenda, apesar da sua condição de escrava. Até sobre meu pai. Com a morte precoce da minha mãe logo que eu nasci, mãe Doninha passou a ser a minha ama de leite por meses.

— Ama de leite também é mãe? — perguntei certa vez.

— É sim, nhazinha. Mãe de coração. Por isso todo mundo me chama de mãe Doninha.

— E o seu nome de verdade é Doninha?

— Não. Meu nome é Clarinda.

— E por que não te chamam de mãe Clarinda?

— Porque a sua mãe era dona Mercedes. A dona da casa. E ninguém podia tomar o lugar dela. Nem na casa e nem no coração. Não podia ter outra dona igual a ela. Mas podia ter uma dona menor. Podia ter uma doninha: a mãe Doninha, com um coração tão grande pra caber ocês tudinho. — E findava suas explicações com um abraço aconchegante.

Suas filhas, Benê e Miana, beiravam a minha idade. Por isso, leite materno e carinho não me faltaram. Pouco antes, o pai das meninas — escravo trabalhador no engenho — havia morrido de doença do peito[1]. Então nossos laços se estreitaram, com a anuência do coronel. Passamos a dormir todas juntas num dos quartos de cima, na casa grande, enquanto eu ainda era bebê e exigia cuidados. Passado tempo, todas elas foram para o quartinho ao lado da cozinha. Crescemos juntas e nos tornamos muito próximas. Eu as tinha como irmãs. Minhas irmãs de leite. Nossa maior satisfação era brincar. E a segunda maior era comer os doces que mãe Doninha fazia. Alguns deles, aprendidos com minha mãe. Outros, ela mesma inventava. Com cacau, canela, coco, leite, milho, açúcar escuro, frutas, ervas, mandioca e temperos… era impressionante como ela conseguia fazer as combinações perfeitas, até mesmo usando os mais improváveis ingredientes, que resultavam sempre em iguarias e quitutes saborosos. O aroma vinha de longe, sobrepondo-se ao cheiro constante da cana, atraindo a criançada para a cozinha.

Ah! Se eu pudesse contar à mãe Doninha o que eu sentia. Se pudesse, gritaria o meu amor por Francisco por toda a casa, por toda a fazenda, por todo o mundo.

— Mãe Doninha, deixa de invenção! E eu lá estou sorrindo?

O ruído de cavalos e carroças do lado de fora arrancou-me do meu estado de graça. Era o anúncio do retorno de meu pai e de sua pequena comitiva. Em outros tempos, eu sairia correndo ao seu encontro, mas, até aquele momento, a sua ausência de duas semanas fora providencial e até desejada. Sob a sua vigilância, seria impossível continuar com meus encontros noturnos com Francisco. Afinal, o seu quarto era ao lado do meu, com porta de passagem e espiador na parede.

Coloquei um largo sorriso e fui ao encontro de meu pai. Ele já vinha subindo os numerosos degraus, apoiando-se na conversa de um estranho com roupas sujas e amassadas, e barba por fazer.

— Doutor Luís Estêvão, esta é a minha graciosa filha, Maria Catarina, sobre a qual lhe falei — disse ao seu acompanhante, colocando as botas empoeiradas sobre o último degrau.

Sem desviar seus olhos verdes de mim, o homem tomou meus dedos com delicadeza e inclinou a cabeça.

— Senhorita Maria Catarina, confesso-me encantado. Perdoe-me pelo meu estado, haja vista alguns imprevistos que ocorreram pela estrada. — E compartilhou um sorriso cúmplice com o meu pai.

— Doutor Luís Estêvão é muito modesto. Imagine, filha, que ele se atracou com um homem armado que tentou nos assaltar pelo caminho e ainda botou o larápio para correr! Graças a ele, estamos bem, sãos e salvos.

— Foi apenas instinto de proteção, nada de mais. Felizmente chegamos em paz e posso estar aqui desfrutando da honra em conhecer tão doce jovem.

Não fosse pelo galanteio, o atrito do bigode e da barba por fazer daquele homem sobre os meus dedos teria me provocado repulsa. Em consideração, respondi com um mero “encantada”.

— O doutor Luís Estêvão Ferreira Moura é advogado e meu convidado para ficar conosco por alguns dias. — E voltando-se para Benê, Juvenal e Martim, já aguardando por suas ordens, enfileirados no alpendre à entrada da casa, prosseguiu. — Levem as malas do doutor para os aposentos de hóspedes e lhe preparem um banho com sais e água morna. E para mim também. Estamos exaustos da viagem.

— Eu vou avisar mãe Doninha para apressar o jantar, vocês também devem estar famintos. Com vossa licença.

Fui para a cozinha com o coração preocupado. Eu acabara de decifrar o brilho no olhar do meu pai.

[1] Antigamente a tuberculose era chamada doença do peito.

 

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Observação do Autor

Capítulo I do romance Correntes de Papel.