Agatha Christie

A aventura do Estrela do Ocidente – Parte II

  • Gênero: Suspense | Público Jovem adulto

Parte II – A aventura do Estrela do Ocidente

— Já sabe? Mas como?

Sorri.

— Por um processo perfeitamente lógico. Se a Sra. Marvel também recebeu cartas ameaçadoras…

— A Sra. Marvel? Ela esteve aqui?

— Acabou de sair. Como eu estava dizendo, se ela recebeu uma série de cartas ameaçadoras, como possuidora de um dos diamantes gêmeos, o mesmo não podia, necessariamente, deixar de acontecer com a senhora, a proprietária da outra pedra. Está vendo como é simples? Estou certo, não é mesmo? Também recebeu os estranhos e misteriosos avisos?

Ela hesitou por um momento, como se estivesse em dúvida se deveria ou não confiar em mim. Depois, abaixou a cabeça e assentiu, com um sorriso.

— Recebi …

— E foram também entregues pessoalmente… por um chinês?

— Não. Recebi os avisos pelo correio. Mas quer dizer que a Sra. Marvel teve a mesma experiência?

Relatei o encontro daquela manhã. Lady Yardly escutou atentamente e depois comentou:

— Tudo se ajusta. As mensagens que recebi são exatamente iguais. É verdade que chegaram pelo correio, mas estavam impregnadas de um perfume estranho… que faz pensar em bastão de incenso, e imediatamente sugeriu-me o Oriente. O que significa tudo isso?

Sacudi a cabeça.

— É o que precisamos descobrir. Por acaso trouxe as cartas? Talvez possamos descobrir alguma coisa pelos carimbos postais.

— Infelizmente, eu as destruí. Na ocasião, pareceu-me que tudo aquilo não passava de uma brincadeira de mau gosto. Será que é mesmo possível que uma quadrilha de chineses esteja tentando recuperar os diamantes? Mas isso parece incrível!

Repassamos todos os fatos novamente, mas não consegui dar um passo adiante na solução do mistério. Lady Yardly finalmente se levantou.

— Não posso mais esperar por M. Poirot. Pode contar-lhe tudo, não é mesmo? Muito obrigado, Sr… Ela hesitou, com a mão estendida.

— Capitão Hastings.

— Mas é claro! Que esquecimento de minha parte! É amigo dos Cavendishes, não é mesmo? Foi Mary Cavendish quem me encaminhou a M. Poirot.

Quando meu amigo voltou, tive o maior prazer em relatar-lhe o que acontecera durante sua ausência. Ele interrogou-me um tanto bruscamente a respeito dos detalhes da conversa. Percebi que não estava lá muito satisfeito por não ter estado presente. Mas imaginei que fosse apenas um acesso de ciúme. Poirot sistematicamente subestima minha capacidade, e calculei que estivesse se sentindo triste por não ter encontrado qualquer falha. Fiquei secretamente satisfeito comigo mesmo, embora procurasse disfarçar, com receio de irritá-lo. Apesar de suas peculiaridades, eu era profundamente afeiçoado a meu exótico amigo.

Bien! — disse Poirot finalmente, com uma curiosa expressão.

— A trama vai se ampliando. Por gentileza, pegue aquele livro sobre o pariato, na última prateleira.

Ele folheou-o rapidamente.

— Ah, aqui está! “Yardly… décimo visconde, participou da Guerra dos Bôeres, na África do Sul”… Tout ça n’a pas d’importance… “casou-se em 1907 com Maude Stopperton, quarta filha do terceiro barão de Cotteril” … hum, hum, hum… “teve duas filhas, nascidas em 1908 e 1910 … clubes … residências” … Voilà, isso tudo nos diz muita coisa. Mas amanhã de manhã iremos conversar com esse milorde!

— Como assim?

— Mandei um telegrama.

— Pensei que tivesse se retirado do caso.

— Não estou trabalhando para a Sra. Marvel, já que ela se recusa a aceitar meu conselho. O que eu fizer daqui por diante será para minha própria satisfação… a satisfação de Hercule Poirot! Decididamente, não posso ficar fora dessa história.

— E calmamente passa um telegrama para Lorde Yardly, pedindo-lhe que venha correndo até aqui, só para atender à sua própria conveniência! Tenho certeza de que ele não vai ficar nada satisfeito.

Au contraire! Se eu salvar o diamante da família, ele ficará profundamente grato.

— Acha realmente que há alguma possibilidade de os diamantes serem roubados? — indaguei, ansiosamente.

— Isso é quase certo — respondeu Poirot, placidamente. — Tudo indica tal possibilidade.

— Mas como …

Poirot deteve minhas perguntas ansiosas com um gesto de mão.

— Agora não, por gentileza. Não vamos criar qualquer confusão. E veja como colocou o livro na estante! Os livros mais altos estão na prateleira de cima, aqueles que são um pouco menores estão na de baixo, e assim por diante. Precisamos ter ordem, método! É o que sempre lhe digo, Hastings…

— Tem toda a razão — murmurei apressadamente, indo pôr o livro em seu devido lugar.

*

Lorde Yardly era um homem jovial, que falava alto e tinha o rosto um tanto vermelho.

Possuía uma ingenuidade extremamente simpática, que compensava qualquer falta de inteligência.

— É uma história extraordinária, M. Poirot. Não consigo entender absolutamente nada. Parece que minha esposa andou recebendo algumas cartas esquisitas, e a Sra. Marvel também. O que significa tudo isso? Poirot estendeu-lhe o exemplar do Society Gossip.

— Em primeiro lugar, milorde, gostaria que me dissesse se esses fatos são substancialmente corretos.

Lorde Yardly pegou o jornal e leu o artigo, contraindo o rosto de raiva.

— Mas que história absurda! Nunca houve nada disso em relação ao diamante. E, se não me engano, ele veio originalmente da Índia. Nunca ouvi falar desse negócio de deus chinês.

— Mesmo assim, a pedra é conhecida como Estrela do Oriente?

— E se for? — indagou ele, furioso.

Poirot sorriu, mas não deu nenhuma resposta direta.

— O que desejo pedir, milorde, é que o coloque em minhas mãos. Se o fizer, sem nenhuma reserva, tenho muita esperança de evitar a catástrofe.

— Quer dizer que, em sua opinião, pode haver alguma coisa por trás dessas histórias absurdas?

— Vai fazer o que estou lhe pedindo?

— Claro que vou! Mas…

Bien! Nesse caso, permita que eu lhe faça algumas perguntas. O caso da cessão de Yardly Chase para a filmagem já foi acertado com o Sr. Rolf?

— Ele lhe falou a respeito disso? Não, ainda não há nada acertado. — Lorde Yardly hesitou por um momento, e o vermelho de seu rosto acentuou-se ainda mais. — Mas seria ótimo para mim, se tudo ficasse acertado. Tenho sido um idiota em muitas coisas, M. Poirot. Neste momento, estou afundado em dívidas até o pescoço. Mas quero me recuperar. Gosto das meninas, e tenho que endireitar minha vida, voltar a viver na mansão da família. Gregory Rolf está me oferecendo um bom dinheiro… o suficiente para liquidar todas as minhas dívidas. Mas não estou querendo lhe ceder Yardly Chase, pois detesto pensar em toda aquela gente andando por lá, mexendo em tudo. Infelizmente, talvez não me reste alternativa, a menos que…

Ele parou de falar subitamente. Poirot fitava-o, atento, e perguntou:

— Quer dizer que tem outra perspectiva? Permite que eu dê um palpite? Está pensando em vender o Estrela do Oriente, não é mesmo?

Lorde Yardly assentiu.

— É isso mesmo. Pertence à família há gerações, mas não é inalienável. Contudo, não é nada fácil arrumar um comprador. Hoffberg, o homem da Hatton Garden, está procurando um cliente. Mas se não o encontrar muito em breve, será um desastre para mim.

— Só mais uma pergunta, permettez… Qual alternativa Lady Yardly prefere?

— Ela se opõe com unhas e dentes à venda da joia. O senhor sabe como são as mulheres. Ela defende ardorosamente a cessão de Yardly Chase para as filmagens.

— Entendo… — Poirot ficou calado um momento, imerso em seus pensamentos, depois se levantou abruptamente. — Vai voltar para Yardly Chase imediatamente? Bien! Não diga nada a ninguém … a ninguém mesmo. E fique esperando nossa chegada esta tarde, pouco depois das cinco horas.

— Está certo. Mas não entendo …

Ça n’a pas d’importance — falou Poirot, em tom cortês.— Sabe que vou proteger seu diamante, n’est-ce pas?

— Sei, sim. Mas …

— Então faça o que estou dizendo.

Foi um nobre desconcertado e deprimido que deixou a sala.

*

Já passava das cinco e meia da tarde quando chegamos a Yardly Chase. Seguimos o distinto mordomo até o salão antigo, revestido de madeira, com lenha ardendo na lareira. Deparamos com uma cena admirável: Lady Yardly e as duas filhas, a cabeça morena da mãe inclinada sobre as outras, louras. Lorde Yardly estava de pé, ao lado, contemplando-as com um sorriso.

— M. Poirot e o capitão Hastings — anunciou o mordomo.

Lady Yardly levantou a cabeça, com um sobressalto. O marido adiantou-se, indeciso, suplicando com os olhos alguma instrução a Poirot. Meu pequeno amigo mostrou-se à altura da situação:

— Mil desculpas pelo incômodo! Vim até aqui porque ainda estou investigando o caso que me foi levado pela Sra. Marvel. Ela virá para cá na sexta-feira, não é mesmo? Eu gostaria de dar uma volta pela propriedade, a fim de verificar a segurança. E desejava também perguntar-lhe, Lady Yardly, se por acaso recorda alguma coisa dos carimbos postais das cartas que recebeu.

Lady Yardly sacudiu a cabeça, com uma expressão desolada.

— Lamento, mas não me lembro de nada. Sei que foi uma estupidez de minha parte. Mas é que jamais me passou pela cabeça que devesse levar os avisos a sério.

— Vão passar a noite aqui? — perguntou Lorde Yardly.

— Não precisa se incomodar, milorde. Deixamos a bagagem na estalagem.

— Não será incômodo algum — declarou Lorde Yardly, percebendo a deixa. — Mandarei buscar a bagagem. Não, não recuse nossa hospedagem. Asseguro-lhe que não será incômodo algum.

Poirot deixou-se persuadir. Foi sentar-se perto de Lady Yardly e começou a fazer amizade com as meninas. Não demorou muito para que também estivesse participando das brincadeiras. Assim que as meninas se retiraram, relutantemente, levadas por uma babá de ar severo, Poirot fez uma pequena mesura para a mãe e declarou:

Vous êtes bonne mère.

Lady Yardly ajeitou os cabelos desmanchados.

— Adoro as duas — murmurou ela, com a voz um pouco embargada.

— Elas também a adoram … e com toda a razão!

Poirot fez uma nova reverência.

Nesse momento, soou o gongo avisando que estava na hora de nos prepararmos para o jantar. Todos nos levantamos, a fim de subir para os respectivos aposentos. O mordomo apareceu, trazendo um telegrama numa salva de prata. Entregou-o a Lorde Yardly, que nos pediu desculpas e abriu-o. Ficou visivelmente tenso ao lê-lo. Soltando uma exclamação, entregou-o à esposa. Depois, olhou para meu amigo e disse:

— Espere um momento, M. Poirot. Acho que deve tomar conhecimento do telegrama. É de Hoffberg. Ele encontrou um cliente para o diamante… um americano, que voltará amanhã para os Estados Unidos. Esta noite mesmo, um perito virá até aqui avaliar a pedra. Ah, se tudo ficar resolvido …

Lady Yardly tinha virado a cabeça. Ainda estava segurando o telegrama e disse, em voz baixa:

— Gostaria que não vendesse, George. Está com a família há tanto tempo… — Ficou esperando alguma resposta. Mas como não houve nenhuma, sua expressão tornou-se subitamente dura. Ela deu de ombros e acrescentou: — Vou me vestir agora. E creio que deverei exibir a “mercadoria”.

— Virou-se para Poirot com a cara amarrada e comentou:

— É um dos colares mais horrendos que já se fizeram. George sempre prometeu que iria mandar pôr o diamante num novo engaste, mas nunca chegou a fazê-lo.

E, com isso, a senhora retirou-se.

Meia hora depois, estávamos todos reunidos no salão, esperando Lady Yardly.

Já se haviam passado alguns minutos da hora do jantar. Subitamente, ouvimos um farfalhar suave, e Lady Yardly apareceu na porta, uma figura esplêndida, num espetacular vestido branco. Tinha um filete de fogo em torno do pescoço. Ficou parada na porta, mal tocando no colar com uma das mãos. E disse de modo jovial, aparentemente dissipando o mau humor:

— Contemplem o sacrifício! Esperem até que eu apague a luz para que possam admirar devidamente o mais horrendo colar que já existiu na Inglaterra! Os interruptores ficavam do lado de fora da porta. Quando ela estendeu a mão na direção deles, o incrível aconteceu. De repente, inesperadamente, todas as luzes se apagaram, a porta bateu, e do outro lado veio um grito prolongado e lancinante de mulher.

— Santo Deus! — gritou Lorde Yardly. — Foi Maude quem gritou! O que terá acontecido?

Corremos para a porta, esbarrando uns nos outros na escuridão.

Levamos alguns minutos para conseguir encontrá-la. E uma cena terrível nos esperava do outro lado. Lady Yardly estava caída no chão de mármore, sem sentidos, com um vergão vermelho no pescoço muito branco, indicando o lugar de onde o colar fora arrancado. Todos nos inclinamos sobre ela, sem saber se estava viva ou morta. E nesse momento seus olhos se entreabriram, e a ouvimos sussurrar, angustiada:

— O chinês … o chinês … a porta lateral …

Lorde Yardly levantou-se, soltando uma imprecação. Acompanhei-o, com o coração batendo em descompasso. O chinês outra vez!

A porta lateral era pequena, quase no ângulo da parede, a não mais de doze metros do local da tragédia. Soltei um grito ao chegarmos ali. É que no limiar estava caído o colar refulgente, que o ladrão evidentemente deixara cair, no pânico da fuga. Abaixei-me para pegá-lo. E soltei outro grito, que foi ecoado por Lorde Yardly. Bem no meio do colar, havia um espaço vazio. O Estrela do Oriente desaparecera!

— Isso esclarece tudo — murmurei.

— Não eram ladrões comuns. Só queriam o diamante.

— Mas como conseguiram entrar?

— Pela porta.

— Mas está sempre trancada!

Sacudi a cabeça.

— Não está trancada agora. Pode verificar.

E abri a porta enquanto falava. Ao fazê-lo, algo flutuou até o chão. Inclinei-me para pegá-lo. Era um pedaço de seda, e o bordado era inconfundível. Fora arrancado de uma túnica chinesa.

— Na pressa, a túnica ficou presa na porta — expliquei.

— Vamos atrás dele. Não pode estar muito longe.

Mas procuramos em vão. Na escuridão da noite, o ladrão conseguira escapar com a maior facilidade. Voltamos para casa relutantemente, e Lorde Yardly despachou um dos seus empregados para chamar a polícia.

Lady Yardly, eficientemente ajudada por Poirot, que é tão bom quanto uma mulher nessas coisas, já se havia recuperado o suficiente para poder contar a história.

— Eu já ia apagar a luz quando um homem pulou em cima de mim, por trás. Arrancou-me o colar do pescoço com tanta força que acabei caindo. E, ao cair, vi-o desaparecer pela porta lateral. Foi então que percebi, pelo rabicho e pela túnica, que era um chinês.

Ela parou de falar, estremecendo. O mordomo apareceu nesse momento e disse em voz baixa a Lorde Yardly:

— Chegou um cavalheiro que veio da parte do Sr. Hoffberg, milorde. Disse que o senhor está à espera dele.

— Santo Deus! — exclamou Lorde Yardly, visivelmente desolado. — Acho que não tenho outro jeito senão recebê-lo. Não, aqui não, Mullings. Leve-o para a biblioteca.

Puxei Poirot para um lado.

— Escute aqui, companheiro, não acha melhor voltarmos para Londres?

(continua)

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Observação do Autor

"A Aventura do Estrela do Ocidente" é o conto que abre a coletânea "Poirot Investiga" de Agatha Christie. A história é narrada pelo Capitão Hastings e começa quando Hercule Poirot é procurado por Mary Marvell, uma famosa atriz de cinema norte-americana, que está visitando a Inglaterra com seu marido, Gregory Rolf.

Mary Marvell possui uma joia valiosa, o diamante Estrela do Ocidente, que recebeu ameaças de ser roubada. Poirot e Hastings se envolvem na investigação e descobrem que há outra joia idêntica pertencente a uma nobre senhora, que também está em risco. A trama envolve uma série de reviravoltas e mistérios, com Poirot usando suas habilidades dedutivas para desmascarar os culpados e proteger as joias.

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