ATÉ A MEIA-NOITE
Rosângela Martins
A mãe fechou o livro de histórias e beijou a testa de cada um. Eles dormiam rápido. Lentamente, sem fazer barulho, ela apagou a luz e fechou a porta atrás de si. Sob as cobertas, os três contaram mentalmente até quarenta e depois pularam da cama.
— Edgar, deixa eu ir com você? Eu já sei … — A caçula chorosa puxava a ponta da camisa do pijama do irmão mais velho.
— Já falei que não… — Ele logo arrancou o pijama e o embolou junto a dois travesseiros, embaixo do seu cobertor. Deu-se por satisfeito, achando que aquilo se parecia com ele dormindo, caso a mãe voltasse. — Agora não enche! — E colocou a sua camisa de estrela e o boné da sorte.
— Silêncio! — O irmão do meio gesticulou com as mãos. A essas alturas, ele já estava sentado no chão com o notebook ligado. — Pronto. Já sincronizei as coordenadas. Edgar, pegou o celular?
— Tá aqui. — Bateu no bolso de trás da bermuda que havia acabado de vestir.
— Nena, o giz! — Fábio lembrou a irmã, sem tirar os olhos da tela.
Com esforço, a menina de seis anos estava terminando de enrolar o tapete. Parou e correu até à cômoda, de onde tirou um toco de giz de dentro de uma caixinha. Tentando manter a mão firme, desenhou naquela parte do piso empoeirada, algo parecido com uma porta.
— Edgar, você está pronto? Está com o seu giz?
— Claro, né. — Bateu no outro bolso da bermuda. — Manda vê! — E afastou a aba do boné para o lado.
Os três seguraram a respiração.
— Agora!
Ao sinal de Fábio, as marcações de giz feitas pela irmã começaram a brilhar. Edgar, então, saltou para dentro, atravessando o piso e desapareceu.
Os dois irmãos que permaneceram no quarto se entreolharam. Já haviam feito aquilo várias vezes, mas sempre que precisavam agir era a mesma coisa: aquele friozinho na barriga. Eram nove da noite e só precisariam esperar até um pouco antes da meia-noite, quando Edgar retornaria.
Fábio pegou o computador e foi se sentar em sua cama.
— Venha, Nena — disse, batendo com a mão no colchão, ao seu lado. — Você só tem seis anos e não pode ir com Edgar porque só vai atrapalhar. Nós já conversamos sobre isso.
— Mas se é pra fechar os livros, isso eu também sei fazer — falou, com uma mão esfregando o olho, enquanto subia na cama.
— Está vendo esse painel aqui? — A tela exibia uma infinidade de números e várias luzes piscando. — Edgar tem que ir a cada um desses lugares onde tem um pontinho luminoso. São muitos, não são? — Ela concordou com a cabeça. — Somente ele é capaz de entrar em todos esses quartos e fechar cada livro que foi deixado aberto. E ele deve fazer tudo isso antes de dar meia-noite.
Nena já sabia o que os meninos precisavam fazer e, por isso, orgulhava-se e queria ser como eles. Fábio, apesar de ter apenas oito anos, era um gênio. Escondido por trás de seus óculos de lentes grossas, sabia de qualquer coisa que envolvesse números e tecnologia. Já Edgar, com dez anos, era o mais ágil em tudo. Na escola, apesar de ele se segurar para não despertar atenção para o seu talento fora do comum, não conseguia conter a vaidade. Dentro da normalidade, ele era um craque em todos os esportes. Por isso, os irmãos de Nena eram seus heróis.
— E eu faço o quê?
— Você é a guardiã do giz mágico.
A menina afastou o cabelo liso que caía sobre o rosto e olhou com satisfação para o estojo dourado em sua mãozinha. Quando não estavam em seus bolsos, todos os pedaços do giz mágico ficavam guardados naquela caixinha.
— Agora, você já pode dormir. Quando Edgar voltar, se precisar, eu te acordo, tá bom?
Nena foi para a cama dela. Fábio precisava ficar atento aos sinais pelo computador. Edgar estava recebendo as informações pelo celular e usaria o seu giz mágico para retornar, mas se alguma coisa desse errado, ele precisaria entrar em ação.
*
Quando Edgar e Nena saíram da aula e foram até o pátio de entrada da escola, Fábio já estava lá sentado, olhando o celular, por entre os óculos.
— Más notícias! — disse quando os irmãos se aproximaram.
— A mamãe não vem buscar a gente? — perguntou a caçula.
— Antes fosse isso.
— Então diga lá, né.
— As férias escolares foram antecipadas.
— Oba! — Nena deu pulos e bateu palmas.
— Nena, não vê que isso dificulta o nosso trabalho? — disse Fábio contrariado com o imprevisto.
— Eu também não estou entendendo. — Edgar franziu a testa e coçou a cabeça.
— Durante as férias, geralmente as crianças vão dormir mais tarde. Isso significa que teremos menos tempo para fechar todos os livros antes de dar meia-noite.
— E por que não pode ser depois?
— Tá vendo que você não sabe de nada! — Edgar apressou-se para responder à irmã, com a sua costumeira falta de paciência com ela.
— Nena, vou te explicar de novo, preste atenção. — Fábio sentou-se mais próximo a ela. — A passagem entre o mundo real e o mundo das fábulas vai permanecer aberta até a próxima lua cheia, que será daqui a quinze dias. Desde quando aquele cometa caiu no mês passado, as coisas ficaram estranhas. — O menino franziu a testa. — Até agora, pelas minhas pesquisas, detectei que o portal se abre todos os dias entre meia-noite e cinco horas da manhã. Só que os seres do mundo encantado e as pessoas do nosso mundo não podem saber disso, pois se alguém descobrir pode querer passar para o outro lado. E aí é que tudo vai ficar esquisito de verdade.
— E a porta de passagem é pelos livros. Livros de historinhas que os pais descuidados ou as crianças desleixadas, como você — arrancou um gemido da irmã ao puxar o seu cabelo — deixam abertos de noite, né? — completou Edgar, encostando-se ao lado deles.
— Por isso que nós, quer dizer, Edgar, teve que entrar naquele livro de matemática para pegar o giz mágico. É graças a ele que conseguimos ir para onde quisermos. E agora Edgar tem que ir em cada casa sinalizada no meu detector e fechar todos esses livros, antes de dar meia-noite. Entendeu agora?
— Então eu posso ajudar também. Sei fazer muitas coisas. — Nena abriu um sorriso.
— Você não tem talento nenhum, e, com essa sua lerdeza, só iria atrapalhar. Por isso já ajuda muito se cuidar do giz mágico direito — respondeu o mais velho, revirando os olhos.
A mãe buzinou. Edgar correu em disparada para o carro. Fábio foi caminhando abraçado à irmãzinha que havia começado a chorar.
*
A mãe fechou o livro de histórias e beijou a testa de cada um. Eles dormiam rápido. Lentamente, sem fazer barulho, ela apagou a luz e fechou a porta atrás de si. Sob as cobertas, dois deles contaram mentalmente até quarenta e depois pularam da cama.
— Edgar, Edgar. — Nena sacudia o irmão para acordá-lo. — Eu aprendi…
— Tô indo, tô indo… Tem que dar um desconto, né. — Ainda sonolento, o garoto cumpria o ritual de forma lenta: deu um fora na irmã, fez o montinho de tecido embaixo do cobertor e colocou sua camisa de estrela.
— Silêncio! — O irmão do meio gesticulou com as mãos. A essas alturas, ele já estava sentado no chão com o notebook ligado. — Pronto. Já peguei as coordenadas. Edgar, pegou o celular?
— Hã? — falou meio desorientado.
— Edgar, você tem que aguentar. Hoje é o último dia. Sei que você vem se desdobrando e está se superando, de verdade! — Fábio ajeitou os óculos, levantou-se e bateu nas costas do irmão. — Não vá fraquejar agora. Precisamos de você.
O menino sacudiu a cabeça e botou o celular no bolso da bermuda.
— Nena, o giz! — disse Fábio satisfeito com a atitude do mais velho.
Sem esforço, a menina de seis anos já havia enrolado o tapete. Tirou o toco de giz do bolso e, com a mão firme, desenhou a porta mágica no piso.
— Edgar, você está pronto? Está com o seu giz?
— Claro, né. — Bateu no outro bolso da bermuda. — Manda vê!
— Agora!
Ao sinal de Fábio, as marcações de giz feitas pela irmã começaram a brilhar. Edgar, então, saltou para dentro, atravessando o piso.
— Edgar, você esqueceu seu boné da sorte!
E, segurando o boné vermelho do irmão, Nena tropeçou para dentro da passagem mágica e desapareceu diante dos olhos atônitos de Fábio.
*
O quarto estava escuro.
— Não saia daqui, entendeu?
Nena só fez balançar a cabeça.
Em segundos, Edgar voltou para junto dela e fez o desenho de uma porta no chão, pela qual seguiriam para outra casa.
Os quartos quase sempre estavam escuros.
Edgar olhou a tela do celular.
— Aqui são três livros. Dois estão em cima da cama e o terceiro você tem que procurar. Daqui a pouco eu venho te buscar, que ainda faltam quarenta livros e eu só tenho dez minutos. Dá pra fazer isso, né?
Nena só fez balançar a cabeça. Há tempo aguardava ansiosa por aquela oportunidade.
Edgar riscou o chão e logo sumiu ao passar por ele.
A menina saiu caminhando devagar. Seu olhar, já acostumado com a escuridão, conseguia enxergar os dois livros sobre a cama.
Ela aproximou-se como quem passa por um campo minado. Uma menina dormia, abraçada a um urso de pelúcia. Nena pegou o primeiro livro e o fechou de imediato, para não errar. Era o da Chapeuzinho Vermelho. O outro livro estava em cima do ursinho: Os Três Porquinhos. Nena conhecia todas aquelas histórias. Mas onde estaria o terceiro livro? Ela olhou com cuidado para todos os lados, mas não o encontrou. Resolveu voltar para o canto do quarto e esperar pelo irmão. Nisso, tropeçou em um par de pantufas e caiu. Trêmula, fechou os olhos com força e segurou a respiração.
A menina em cima da cama despertou. Sentou-se, acendeu o abajur da mesinha de cabeceira, tomou um copo de água e olhou em volta, sem perceber nada estranho. No minuto seguinte, o quarto voltou à escuridão. A garotinha se remexeu embaixo das cobertas, virou-se de lado e voltou a dormir.
Nena tomou coragem e abriu os olhos. De onde estava, teve a sorte de ver um livro aberto embaixo da cama. Ela arrastou-se até lá e o fechou. Também conhecia aquela história. Naquele mesmo instante, o irmão apareceu no quarto. Faltava um minuto para a meia-noite.
Edgar não pensou duas vezes. Procurou pela irmã e, ao avistá-la, imediatamente a puxou e jogou-se com ela pela passagem mágica desenhada no chão.
*
— Ufa! Consegui!
— Vocês estão bem? — Fábio correu para levantar a irmã do chão — O que é isso? Você trouxe um livro?
Num solavanco, Edgar arrancou o livro das mãos da irmã e o arremessou longe e nem percebeu que ele caiu aberto.
— Você sabe que não deve pegar as coisas dos outros, né! — falou o mais velho em tom baixo, mas não menos agressivo.
— Mas…, mas…, mas…
— Ah, onde eu estava com a cabeça que deixei você fechar aqueles livros. Você não sabe fazer nada…
— Eu não… não…
Enquanto os dois irmãos discutiam, os olhos de Fábio quase saltaram sobre as lentes dos óculos. Já passava da meia-noite e ainda havia um livro aberto, justamente aquele no quarto deles. Pior do que isso: mesmo estando emborcado, dava para ver um fio de fumaça saindo do interior de suas páginas.
— Edgar!
Ao chamado do irmão, os dois garotos se entreolharam percebendo a gravidade da situação. Porém, alheia ao que se passava, Nena correu justamente na direção do livro.
— Não! — Com a sua agilidade, Edgar conseguiu se antecipar à irmã e segurou o livro em suas mãos.
— Feche o livro, Edgar!
— Não consigo!
A fumaça continuava e o livro passou a pular e a chacoalhar sobre as mãos do menino, que, sem o conseguir segurar, acabou jogando-o sobre a cama.
No mesmo minuto, a cabeça de um dragão azul ergueu-se do meio das páginas. Com dentes afiados e com um aspecto nada amistoso, ele vociferava. E da sua boca começou a soprar, na direção das crianças, uma língua de fogo que chamuscava tudo pela frente. Assustadas, correram todas para o mesmo lado, encolhendo-se no canto de uma parede próxima à janela. Nena soltou um grito sufocado.
— Shhhhh! Quer acordar a mamãe?
— Então diga para ele ficar quieto — respondeu Edgar, com a voz falhando, apontando para o dragão.
— E agora, o que a gente faz?
Abraçado à irmã — ela choramingava baixinho: eu quero a minha mãe —, Fábio se mantinha alerta, já com um plano arquitetado.
— Edgar, você viu o nome desse livro?
— Não, não…
— É “O dragão azul”. — ouviu-se a voz abafada e trêmula de Nena, com o rostinho pressionado ao peito do irmão.
— Tome conta dela.
Fábio abaixou-se e, colado ao chão para se esquivar do excessivo calor saído daquelas chamas que riscavam o ar, puxou seu notebook com as pontas dos dedos. Ofegante, começou a digitar.
— Será que você consegue mandar esse bicho de volta?
— É o que vamos tentar fazer. Pronto. Agora só depende de você, Edgar. Já ajustei as coordenadas. É só desenhar a porta com o giz mágico e empurrar o livro com aquela cabeça de dragão pra dentro. Ainda está com o seu giz?
Ele bateu no bolso da bermuda.
Enquanto Fábio e Nena assistiam aos movimentos do irmão de forma acelerada, para o próprio Edgar, aquela cena parecia se passar em câmera lenta. Ele seguia rente à parede, desviando-se dos fios de fogo que passavam perto dele e deixavam um rastro de fumaça. Após levar a mão fechada próximo ao rosto para aparar uma tossida, subiu na cama para tentar chegar ao outro lado do quarto e posicionar-se por trás do dragão, que não parava de se agitar. Sua agilidade foi crucial para ele conseguir jogar-se no chão, à frente da cama onde o livro estava, e desenhar a porta sem grandes dificuldades. Depois, voltou por trás, ainda sem ter sido percebido pela fera.
Prestes a segurar o livro, o sacolejar da cabeça do dragão possibilitou-lhe colocar para fora metade do seu longo rabo coberto de grossas escamas que, com um movimento inesperado, lançou o menino contra a parede. Por pouco, Edgar não caiu na porta desenhada no chão. Gemendo, ele conseguiu arrastar-se para debaixo de outra cama. Com expressão de dor, apontou para a perna, sinalizando que estava machucada.
— Edgar, Edgar, eu vou…
— Calma, Nena. Vai dar tudo certo, eu te prometo. — Fábio amparava mais uma vez a irmã e já ia elaborando outro plano de ação, quando ficou boquiaberto ao ver o que acontecia com ela à sua frente.
Diante do ocorrido com o irmão mais velho, a menina cobriu o rosto com as mãos. Sua figura frágil e delicada dentro daquele pijama de flanela com várias figurinhas de bonecas foi perdendo as cores, de forma lenta e gradativa, até ficar transparente… e desaparecer.
O menino ainda a pôde sentir, aninhada junto ao seu corpo. Suas mãos constataram que os cabelos lisos, repartidos em maria-chiquinha, ainda estavam lá.
— Nena, por que não me contou?
— Eu… eu…
Enquanto isso, o dragão azul, que se esforçava em tentativas para sair de dentro do livro, cuspiu um lance de fogo ainda maior, a ponto de chamuscar a manga do pijama de Fábio. Após o menino sacudir o braço, Nena não estava mais lá.
Ele tateou pelos espaços ao seu redor, chamou por ela, mas não a sentiu outra vez. Foi só quando viu o livro com o dragão deslizando lentamente para a beira da cama é que percebeu onde a irmãzinha estava.
No minuto seguinte, o livro caiu para dentro da passagem mágica, e a última coisa que viram foi o rabo do dragão desaparecendo em meio aos pontos luminosos do chão, que logo se apagaram.
— Que bagunça é essa? O que vocês estão fazendo? E esse cheiro de fumaça? — questionou aquela voz bastante conhecida, que havia acabado de entrar.
Nena saiu debaixo de uma das camas e foi correndo abraçar a mãe.
— A gente tava brincando.
Com a filha nos braços, o tom de repreensão deu lugar à preocupação.
— De que vocês estavam brincando? Cadê o Edgar?
— Mãe, tô aqui. Acho que quebrei a perna.
Márcia colocou a filha no chão e focou sua atenção no outro filho, que quase não saía do lugar.
— Oh, meu Deus! Vamos para o hospital agora. Mas vocês três vão ter que explicar essa história bem direitinho, estão ouvindo?
*
— Vou pegar uma cadeira de rodas e já volto.
A mãe saiu, e finalmente os três puderam ficar sozinhos.
— Será que a mamãe engoliu a história de que estávamos apenas brincando? — comentou Edgar.
— Você vai deixar? — disse Fábio, apontando para a irmã que fazia desenhos de flores e de corações com suas canetinhas, no gesso da perna fraturada do irmão.
— É o mínimo que eu posso fazer depois de ela ter conseguido empurrar aquele dragão de volta — respondeu, dando de ombros.
— Tem razão. Ao menos agora podemos voltar a ser crianças normais por mais um ano.
— Mais um ano? Mas a passagem já está fechada, né?
Fábio mordeu o lábio, procurando a melhor maneira de contar para o irmão.
— Você já imaginou o que poderia ter acontecido caso aquele dragão tivesse aparecido no quarto de alguma outra criança? E se tivesse sido algum outro monstro ou …
— Deixa de enrolação. O que você está querendo dizer?
— Que a passagem se abrirá outra vez, nessa mesma época, no próximo ano.
— Essa não! — Edgar levou a mão à cabeça.
— Mas pense no lado bom. Ganhamos um reforço para a nossa equipe e agora podemos nos considerar super-heróis. — E sorriu apontando o que Nena havia acabado de desenhar no gesso da perna do irmão: três bonequinhos com capas e de mãos dadas, dentro de um enorme coração.
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