Caio Hamasaki

O Maluco da Bolsa

  • Gênero: Romance | Público Jovem adulto

Carol ganhou a rua São Bento, subindo pelas escadas rolantes do metrô. Pedro a aguardava para almoçarem no Girondino, com vista para o Mosteiro. Após a deliciosa refeição, caminharam animados em frente à Bolsa, onde um curioso maltrapilho discursava para quem quisesse ouvir. Ela segurou o braço de Pedro:

— Espera um minuto… Deixa eu ouvir o que esse louco está dizendo…

— Carol, não temos tempo. Já deu o horário do almoço.

Ela fez um gesto para ele se calar, e ficou, a poucos metros do homem, atenta ao seu discurso:

— … e vocês devem se perguntar: “Onde foi parar todo o nosso dinheiro?” Ah, como vocês são tolos!

Carol riu do sujeito, mas deteve-se por mais um instante. Ela queria ouvir a resposta.  

— Vocês se acham espertos… Estudam, fazem faculdade, pós-graduação, MBAs… E não aprendem nada!”

Como a resposta demorava, ela perguntou:

— Ei, amigo! Me diz, então, onde foi parar todo o nosso dinheiro?

O homem parou o gesto circular com os braços que fazia, virou-se para o lado e encarou a bela morena que o indagava. Era raro alguém ouvi-lo. Questioná-lo, então, parecia uma perda de tempo. Mas, ele não sentiu sarcasmo naquela pergunta. Era uma voz doce, quase ingênua, daquelas que uma criança dirige a sua avó. E ele baixou o volume de sua voz:

— Eu lhe conto. Mas, precisa me prometer uma coisa…

Pedro agarrou o braço de Carol e fez menção de tirá-la daquele enrosco. Ela, curiosa, desvencilhou-se do amigo e aproximou-se do sujeito:

—  Prometer o quê?

— Não contar que fui eu que lhe falei isto!

—  Fechado! Então fala logo, moço… Onde foi parar o nosso dinheiro?

— Você já ouviu falar do empoçamento?

Carol lembrou da aula da noite anterior. Seu mestre orientador havia lhe explicado alguns detalhes da crise financeira. Mas, como diabos aquele maluco maltrapilho poderia estar por dentro de um assunto tão avançado? Ela arriscou:

— Claro, aquilo que aconteceu na economia…

— Ah, você é esperta, sabe do que estou falando!

— Ainda não sei se estamos falando da mesma coisa…

O homem virou-se para os lados, como se estivesse a verificar se algum espião estaria a ouvi-los, enquanto Carol esboçava um riso contido pelo gestual teatral do sujeito. Ele sussurrou:

— Claro que sim. Você se referia ao empoçamento da liquidez, e eu, indo além, falava do empoçamento da riqueza!

— Uau, você me surpreendeu… Me desculpe, eu tenho que ir… — E Pedro puxou-a de novo, agora mais veementemente:

— Você está ficando louca, Carol? Ouvindo as baboseiras desse doido varrido?

Carol disse “tchau” pro doido, que lhe retribuiu com um dedo nos lábios, como que se estivesse pedindo-lhe silêncio.

O árduo TCC roubava preciosas noites de sono de Carol. O tema escolhido havia se mostrado amplo demais, e, não raro, pegava-se arrependida por não ter reduzido o espectro da pesquisa. Mas, naquela noite, ela estava diferente. Aquele papo rápido com o “maluco da bolsa” havia lhe aguçado a curiosidade. Assuntou-se do tal empoçamento e dormiu ansiosa.

No dia seguinte, Carol nem almoçou com Pedro, seu melhor amigo. Fez um lanche rápido e foi para a rua XV de Novembro. Lá estava o maluco. Ela aproximou-se pelo lado, pois queria ouvir seu discurso sem que ele a percebesse:

— … E, então, o aumento da produtividade, causado pelo avanço tecnológico, gerou uma quantidade enorme de desempregados…

As pessoas continuavam a passar, sem sequer levantar a cabeça para o doido. Carol aproximou-se mais. Ele continuou:

— … E essa produtividade aumentou os lucros! Sim, os lucros! Não os meus, não os seus! Os lucros deles! — e apontava para a Bolsa.

Carol encontrara a deixa para entrar na conversa:

— Oi, moço… Mas, se eu tiver algumas ações das empresas “deles”, eu também vou lucrar, certo?

— Ah, a mocinha esperta… Está certa, eles deixam algumas migalhas para os pombos…

Ela ficou desconfortável. Talvez não fosse pelas “migalhas”, mas odiava pombos.

— Você fala como se entendesse de tudo… O que está fazendo aqui?

— Cansei disso tudo, moça… Preciso avisar a vocês dos perigos que estão correndo…

— Cansou disso? Você trabalhava aqui?

Ele fez novamente um gesto para ela fazer silêncio, e confidenciou:

— Fui escravo daqui por muito tempo… Agora estou livre…

Carol era muito perceptiva. Ao aproximar-se, não sentiu o odor forte dos que vivem na rua. Sentiu, ao contrário, uma colônia suave que emanava das roupas surradas — mas limpas — do maluco da bolsa. Ele continuou:

— Cheguei ao limite. A gente não deve se apegar ao dinheiro.

—  Qual o seu nome?

— Por que quer saber? Vai me colocar no seu estudo? — Carol calou-se. Ele era mais perceptivo do que ela. — Me chame de Gu. Imagine se é de Gustavo, de Augusto… Fica a seu critério.

— Ok, Gu… Como sabe que estou te estudando?

— Você deve estar preparando sua monografia. Fechamento de semestre é sempre assim. Os meninos vêm visitar a Bolsa, todos preocupados com a conclusão do curso.

— Cara, como adivinhou…

— Observação, filha… Basta estar atento e pensar. Tem gente que olha tudo e não enxerga nada.

— Verdade. Então, já que sabe que estou estudando, me conta sua história…

Ele virou-se para os lados, novamente com trejeitos persecutórios, e perguntou:

— A versão longa ou a versão curta?

Ela riu. Não tinha muito tempo:

— A curta, por favor…

— Estudei muito. Economia, Psicologia, Tecnologia, Sociologia, Finanças… Trabalhei como um cão fiel e subserviente ao meu patrão, fazendo tudo para aumentar os lucros da empresa e dos investidores. Até que veio a crise.

— Lembro vagamente. Eu era criança…

— Ainda é. Deveria aproveitar mais sua juventude, viajar e conhecer o mundo em vez de ficar aqui, preocupando-se com o dinheiro dos outros!

Carol balançou a cabeça:

— Bem que eu gostaria, Gu… Mas, e depois? O que aconteceu?

— Eu fiquei louco naquela época. Aliás, eu identifiquei que havia enlouquecido a partir daquela crise, e assim permaneci até hoje: doido varrido!

— Você perdeu o emprego? Veio morar na rua?

— Claro, perdi o emprego, mas não por causa da crise. Perdi para a tecnologia. Fui substituído por algoritmos e máquinas que faziam o meu trabalho com menor custo, 24 horas por dia, sem férias… Apesar de pegarem alguns vírus, raramente ficavam doentes ou paravam de servir aos patrões…

— Você poderia ter migrado pra área de tecnologia…

— Eles queriam moleques do Vale do Silício, mais adaptáveis aos novos tempos. Daí, identifiquei mudanças em mim, típicas de quem está sofrendo algum transtorno…

— Entendi. E onde você mora?

— Não posso revelar, mocinha.

— Então você não fica na rua?

Ele olhou pra cima, tirou um relógio de bolso, para o espanto de Carol, e comentou:

— Está na hora do meu intervalo. Talvez chova mais tarde.

— Você tem casa? Não quer falar sobre isso?

Ele acenou brevemente para Carol e deixou-a falando sozinha. Seguiu para o metrô.

Carol ficou pensativa durante a tarde toda. Afinal, o caminho que ela traçava para sua carreira era exatamente o mesmo que o doido da bolsa havia percorrido. E, se o resultado era aquele, havia razões para se preocupar. Encontrou-se com Pedro na saída:

— Será que vale a pena? A gente investe tanto na formação, dá um duro danado, e, no fim, acaba descartado pelo mercado…

— Ah, Carol, não encana… Agora você vai dar ouvidos pra um louco de rua?

O tempo passou.

Eles se encontraram.

— Pedro, sinto muito…

— Eu vou me virar. Não se preocupe…

— Você devia ter me ouvido.

— Eu sei, Carol. Nem todo mundo consegue mudar a vida facilmente.

— Facilmente?

—  Desculpe, eu não quis dizer que o seu caminho foi fácil. Na verdade, eu que não tive coragem de perceber que a loucura não estava em abandonar tudo e seguir um novo caminho, e sim em continuar naquilo que você me avisou que não ia dar certo…

Ela colocou as mãos sobre as do amigo, que repousavam com os dedos entrelaçados sobre a mesa do botequim:

— Eu fui avisada… Lembra-se dele?

— O maluco da Bolsa? Claro… Como esquecê-lo?

— Eu voltei algumas vezes, entrevistei-o. Depois, revi toda a minha tese, pra desespero do meu orientador… Ele queria me reprovar, mas eu insisti. Só quando viu o trabalho final, deu-se conta de que, ele também, estava obsoleto…

— E eu estava feliz, nessa época, com meu estágio promissor… Confesso que sentia que estava à sua frente, amiga…

— Pelo seu ponto de vista, você estava mesmo… Mas, preste atenção. Nunca é tarde pra recomeçar…

— O que quer dizer?

O tempo passou.

Eles se encontraram.

— … E, dessa forma, as riquezas são acumuladas nas mãos de poucos!

— Senhor Gu, posso interromper?

Ele voltou-se para um jovem bem-apessoado que estacionara ao seu lado:

— Quem é você?

— Me chamo Pedro. Sou amigo da Carol… Lembra-se dela?

— Não… Deveria me lembrar?

— Acredito que sim. Uma estudante morena, que o entrevistou anos atrás…

— Bonita?

— Sim, muito bonita…

— Ela lhe contou minha história?

— Não, ela disse ter lhe prometido que não contaria…

Gu apertou os lábios, balançando a cabeça positivamente:

— Boa menina, boa menina…

Pedro percebeu que o louco da Bolsa carregava dois livros nas mãos, como os pregadores costumavam usar bíblias naquele trecho do calçadão. Um daqueles livros lhe pareceu familiar:

— Você comprou o livro dela?

— Não, ela me deu.

Pedro estava incrédulo. O grande sucesso da amiga havia começado com a conversa que ela tivera com o maluco. E, após o livro, as palestras, o estrelato, ela era a maior guru do país. Ele sabia do caráter irrepreensível de Carol, da chance de recomeçar a carreira que ela havia lhe dado, mas a possibilidade de que ela pudesse ter usado as ideias de Gu, deixava-o em conflito:

— Ela lhe deu o livro… Em agradecimento?

— Agradecimento? Por que ela faria isso?

— Não sei, talvez você tenha dado a ela alguma grande ideia…

Gu pegou o livro de Carol e o mostrou a Pedro:

— Não sei, também, filho. Veja, eu nunca abri o livro.

Pedro ficou mais confuso ainda. Era difícil acreditar que o maluco ganhara o livro de Carol e nem se dignara a lê-lo:

— Por que você não o leu?

— Assim posso sentir, todos os dias, que minha esperança está viva. Se eu abri-lo, poderei ter decepções sobre aquela estudante esperta. Quer seja no teor das ideias que discutimos, e nem  sempre  concordamos,  quer  seja  na  possibilidade  de  que  ela  apenas  usou  minhas hipóteses… Mantendo-o fechado, imagino a cada manhã o que ela possa ter concluído, o que ela possa ter se enganado e, por isso, eu lhe daria severas gargalhadas, enfim, eu me imagino mantendo contato com ela…

— Você não fica curioso?

— Demais, meu caro. Às vezes, manter-se curioso é mais prazeroso do que saciar a curiosidade.

O tempo passou.

Eles se encontraram.

— Olá. Lembra-se de mim?

Ele virou-se para Carol, já reconhecendo sua entrevistadora:

— Olá, querida. Veio me entrevistar?

Ela sentou-se na calçada, ao seu lado:

—  Vejo que está no seu intervalo. E, que ainda não abriu o meu livro…

— Seu amigo lhe contou?

— Há alguns anos ele me disse que o viu aqui. Nada mais.

— Ele me parece confiável. Disse que você também não lhe contou sobre nossos segredos.

— Sim, nunca comentei com ninguém. Você me fez prometer.

Gentilmente, ela tomou-lhe os livros das mãos:

— Título:  A Verdadeira Riqueza.  De  Carolina.  Para Gu.  Capítulo primeiro:  Como se acumulam as riquezas em duas hipóteses…

— Você tem tempo pra isso?

— Tenho todo o tempo do mundo. O que seus olhos não veem, seus ouvidos hão de fazê-lo sentir.

Pela primeira vez, ela lhe tirou os óculos escuros e eles se abraçaram.


Observação do Autor

Este conto traz a leveza da amizade em contraste à aspereza da realidade do mercado.

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