Aline A Siqueira

O dia em que aprendi a amar

  • Gênero: Romance | Público Juvenil

Quando eu chegava em casa estressado pelos gritos dos Nycticebus, meus pais riam de mim. Zombavam: como um macaquinho tão fofo, parecido com um urso de pelúcia, poderia estressar alguém… Mal sabiam eles que o tal macaquinho de aparência indefesa é venenoso e pode matar um homem com uma simples mordida. Essa situação me levava a ver como seres humanos são cegamente enganados pelas aparências, transformando-se em meras presas. Indagava-me sobre onde foram parar nossos instintos de segurança, desarmados tão facilmente por um par de olhos amistosos que parecem expressar medo e ternura. Será que viver em uma sociedade que se autodenomina racional afetou tanto assim nossos instintos primitivos ao longo de todos esses séculos? Nessas horas, em outros tempos, via claramente o que a vida em sociedade tinha feito às pessoas, assim como aos meus pais — expostos a todo tipo de perigo sem discernimento real, vivendo em mundinhos que os engoliam e se tornando tão irracionais como os próprios animais de que eu cuidava. Isso era o que eu pensava quando estava totalmente cego pela minha razão, cheio de arrogância e superioridade.

Não me importava com ninguém, a não ser comigo. Não conseguia entender a necessidade de as pessoas quererem estar rodeadas por outras pessoas; na verdade, até compreendia, mas não julgava valer a pena devido à onda de emoções que isso proporciona: brigas incessantes pela defesa de ideais, os modos baixos e covardes usados para se conquistarem coisas ou pessoas, mentiras, sentimentos vazios e mais brigas… Fazer parte disso não era algo que me agradava. O convívio me repugnava! Por isso, eu fugia… Ia para um lugar em que nada disso poderia me alcançar. Um lugar onde o silêncio impera e que acalma minhas tempestades: o mar.

Ansiava loucamente pela chegada do sábado e, quando ele nascia, pleno e arrebatador, pulava da cama e não fazia nem questão de um café da manhã em família. O que eu desejava mesmo era me encontrar logo com as ondas, içar as velas do meu veleiro e velejar até alcançar o alto-mar, onde apenas os tons de azul predominam — na água e no céu —, e o horizonte apaga qualquer vestígio da civilização. Sempre, quando chegava nesse ponto, eu parava. Era o único momento em que parava durante a semana, ficando a sós com os meus pensamentos. Ouvia apenas o som das águas e da minha própria respiração, sentia o balançar das ondas, a brisa fresca do oceano… Podia tocar o mar e às vezes até ver alguns peixes a nadar ao redor do meu veleiro. Que paz! Todo o burburinho dentro de mim se calava perante aquela calmaria. A sensação era perfeita, e, quanto maior o tempo que eu permanecia ali, mais feliz eu me sentia. Achei que essa felicidade seria crescente e infinita, mas, com o passar do tempo, comecei a sentir falta de algo que não sabia o que era. Voltar para casa nunca me agradava, mas descobri que a calmaria havia ganhado um novo nome: solidão.

Acreditava que se ocupasse meu tempo em alto-mar, talvez ela fosse embora. Cheguei a aprender a pescar. Contudo, isso me deixava ansioso, porque eu tinha que ficar muito atento ao momento certo de puxar a vara, causando-me muita tensão. Também comecei a desenvolver o péssimo hábito de me cobrar a nunca voltar para casa sem um peixe grande… Vi, então, que essa não era uma boa solução para o meu problema, já que perturbava minha paz e ainda não tirava minha solidão. Inquieto, aos poucos, não tinha mais vontade de estar ali. O problema nunca foi o mar ou sua formosa vista, era excepcionalmente eu. Queria compartilhar meus pensamentos com alguém, alguém que me entendesse de verdade e fosse inteligente! E, se possível, não estivesse fisicamente ao meu lado. Foi aí que, certo dia, enquanto trabalhava e já estava exausto de ler relatórios, acessei um chat na internet e encontrei alguém como eu: uma espécie rara. Seu nome era Ana, também cientista! Ela era apaixonada por Mirmecologia — o estudo das formigas —, trabalhava com Botânica, mas sonhava em se dedicar apenas às formigas e se tornar um grande nome da Mirmecologia no Brasil. Compartilhamos histórias e casos e aos poucos nos tornamos bons amigos. Ela discordava sobre minha vida antissocial, entretanto, nos demais pontos, erámos idênticos, e falar com ela era como falar comigo, algo fora do comum — é, naquela época, eu ainda me sentia o último biscoito do pacote.

Foi aí que velejar ganhou um novo significado. Saía mais cedo do que de costume, mas passei a ter um novo destino além do alto-mar: a casa da Ana. Velejava do Espírito Santo até a baía de Guanabara e passava o restante do final dia aprendendo sobre as formigas. Ana tinha uma colônia de Formica incerta em cativeiro, onde se podiam observar os ninhos subterrâneos escavados e toda a locomoção das pequeninas naquele solo arenoso. Além de sua suprema dedicação ao estudo comportamental das Formicas incertas, assim como eu com os Nycticebus, ela era de igual forma incompreendida pelos pais. Porém não se importava com isso, já que encontrava conforto em sua colônia de formigas e, de alguma forma, a colônia parecia lhe retribuir sentimentalmente… Aquilo se assemelhava até a um sentimento recíproco de amor. Algo que sempre duvidei existir! Sempre me questionei acerca dos sentimentos humanos, vendo-os mais como uma mera produção de hormônios passageiros do que como algo sublime. E Ana sabia dessa minha incredulidade, por isso, resolveu me provar o contrário — que sentimentos existem — e me apresentou a Duda. Achei patética a ideia! E, depois de achar isso, lá estava eu: chamando Duda de minha rainha, de meu amor. Enviando mensagens durante a semana para Ana, apenas para saber como a Duda estava. Querendo vê-la a todo instante e ansiando ainda mais pela chegada dos finais de semana.

No laboratório, disseram que eu parecia mais feliz. Em casa, bem-humorado. As pessoas queriam se aproximar de mim, mas eu ainda continuava a fugir. Meu contato com o mundo se resumia ao menor possível com as pessoas com quem eu trabalhava e a minha família e, em um nível diferenciado, agora, com a Duda e a Ana. Por perceber como eu havia mudado, Ana me pediu para que eu cuidasse de sua colônia de formigas enquanto ela e os pais viajavam. A viagem duraria quase um mês e era importante que alguém que já conhecesse as pequenas estivesse presente para cuidar delas e registrar também o seu comportamento durante aquele período. Eu achei ótimo! Disse a ela para viajar tranquilamente e que eu estaria lá, pelo menos, duas vezes na semana. Esse, também, era um bom pretexto para eu ir ao Rio de Janeiro ver a Duda.

Inicialmente, quando falei isso, não me dei conta de como aquilo seria complicado. O deslocamento é um pouco demorado, além disso, se o clima não estiver bom, é impossível se arriscar no mar. Outro ponto é que, justamente para piorar ainda mais a situação, chegaram alguns Nycticebus bem feridos no laboratório. Com tudo isso acontecendo, precisei deixar o almoço de lado e virar algumas noites no trabalho. Exausto, eu sentia meu corpo gritar por descanso, mas precisava vencer a exaustão para concluir os relatórios e ainda velejar bem cedo no próximo dia, para cuidar das formigas e ver a minha amada Duda.

Louco de saudades e sem dormir, joguei uma água gelada no rosto e na próxima hora já estava içando as velas do barco. O céu estava totalmente limpo, azul, perfeito! Se o vento ajudasse, iria atrasar só por três horas no serviço. Todavia, não ajudou. Como mal tive tempo de observar as formigas, resolvi levá-las comigo. Parecia loucura, era loucura! Só que eu não estava raciocinando muito bem naquele momento. A Duda parecia animada com as Formicas incertas e, ao mesmo tempo, assustada. Ela havia viajado apenas uma vez de avião, quando veio dos Estados Unidos para cá, mas de barco era a primeira vez. O balançar das águas parecia incomodá-la, então, para que se sentisse mais segura, eu a amarrei bem forte junto ao aquário da colônia e, após colocar o barco na corrente correta, permaneci ao seu lado. Mostrei para ela o grande oceano que nos cercava, explicava sobre os ventos, o clima… Mas ela não parecia dar muita atenção ao que eu falava, e, de fato, não era a praia dela.

Por alguns minutos, fiquei apenas observando-a, enamorado pelos seus doces olhos marrons. Pensando que jamais senti antes essa necessidade de estar junto a algo ou alguém e no quanto ela me conhecia, melhor do que ninguém… Mesmo ela sendo tão dependente de mim e frágil, eu a amava e via nela também uma grande força. Incrível como naqueles três últimos meses minha vida mudou tanto com a chegada dela e da Ana. Eu vivia pela razão, e os sentimentos, para mim, eram banais; entretanto, com a Duda, tudo isso mudou. Ela é nobre e não consegue viver sozinha e, mesmo sendo assim tão diferente de mim, vejo nela inteligência, força e uma companhia que só me faz bem.

O sol estava brilhando no céu. O calor tomou o oceano e a brisa fresca se tornou quente. A pele da Duda estava brilhante, mas, logo mais, nós chegaríamos ao nosso destino e o calor cessaria. Naquele meio tempo, tomei um pouco de água e comecei a ler alguns relatórios do laboratório. Eu estava ansioso por chegar logo, mas, ao mesmo tempo, estar ali naquele mar era tão bom… Principalmente com a melhor companhia que eu já tive. E foi desviando o olhar entre linhas de relatórios e a Duda que eu acabei pegando no sono.

Quando abri os olhos, lentamente fui recobrando minha consciência, deparando-me com uma imensa Cumulus nimbus! Eu estava cercado por todos os lados e via, a alguns metros, raios caindo no mar. Tudo ficou escuro e, em menos de dois minutos, a chuva começou a cair, fortemente, sem piedade. As velas balançavam de um lado para o outro e as ondas me tiraram da direção correta. Eu senti medo, e o mar se mostrou superior, com rajadas de vento que quebraram o mastro do veleiro, arremessando também as velas para longe e acertando minha cabeça em cheio. Caí no mar! As águas me ensinavam ali, naquele momento, que nenhum conhecimento pode salvar alguém em uma situação de risco. Eu sabia nadar, mas a correnteza era forte, fazendo-me rodopiar e me engolindo sempre que eu lutava para emergir. Então, quando finalmente retirei a cabeça para fora d’água, debatendo-me, avistei meu veleiro virado e Duda, minha Duda… Onde estava ela? Em desespero, nadei até o barco, mas todo o esforço foi vão… Mal cheguei perto e enxerguei, através das luzes da tempestade, o aquário da colônia submerso nas águas. Como eu pude fazer isso! Ana me mataria… Em choque e sem pensar, fui acertado novamente na cabeça e tudo se foi.

Solitário, acordei. A face sob a areia, as roupas molhadas e rasgadas, sem calçado, com sangue escorrendo entre as têmporas e dores por todo o corpo… Eu estava vivo e me sentia morto. O gosto salgado da areia com a água do mar começou a se misturar às minhas lágrimas. Eu tinha perdido tudo e acredito que todos. Ainda deitado, avistei ao longe alguns pescadores correndo em minha direção… Naquele momento, era tudo o que eu mais queria: estar rodeado de pessoas. Ao se aproximarem, eles me colocaram sentado na areia da praia, perguntavam se havia mais alguém ou do que eu me lembrava. Então, me recordei do mar, da paz que ele me trouxe, da oportunidade que me proporcionou, do que me ensinou, da solidão que me fez sentir e de tudo que ele de mim tirou. E coloquei-me a gritar por meu amor, por minha rainha, por aquela que ensinou a amar. Oh, mar! Por ela… A minha Polyergus lucidus, uma formiga a quem carinhosamente um dia chamei de Duda.

Observação do Autor

⚖️ Este conto é de autoria de Aline A Siqueira. Publicado na antologia "Pélagos: contos do mar" — organizada pelo Carreira Literária; e na antologia "As Faces do Amor" — organizada pela Sociedade de Autores Literários (SAL). Sua cópia sem a permissão do autor configura uma forma de roubo (plágio). Crime, conforme Art. 184 do Código Penal.

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