- Gênero: Fantasia | Público Juvenil
O êxtase de Joana
O excesso de suor nos cabelos ondulados escorria pelo rosto, como minúsculas formigas, indo parar no pescoço. De vez em quando ela passava a mão para impedir de seguirem o caminho das costas. Os pés começavam a doer. Joana estava cansada, mas não exausta; com sede e com fome…, mas dava para suportar. Uma das vozes da multidão ainda ecoava em sua cabeça. Latejava junto com a ferida no joelho ralado — fruto de um dos muitos empurrões sofridos naquele dia. Braços fortes saídos de algum lugar a tinham ajudado a se levantar.
— Aqui é assim: caiu? Levanta pra cair de novo!
Apesar de tantas adversidades, a jovem Joana de dezoito anos se sentia realizada. Finalmente seus pais tinham dado permissão para brincar o Carnaval, depois de infinitas súplicas. Para eles, ela era nova demais, ingênua demais; não estava pronta.
— É excesso de zelo de vocês — ela contestava.
Passado todo o drama, o tão esperado dia havia chegado e a sua primeira vez não poderia ser melhor. Ela estava numa das ladeiras de Olinda.
Os sons da orquestra marcavam os passos e compassos da descontração do frevo. Joana respondia com desengonçados movimentos previamente ensaiados no dia anterior com os primos. Ela absorvia o êxtase daquele momento por todos os poros, valendo-se de cada sentido para deixar aquele mundo mágico eternizado em sua memória.
Joana brincava cercada de super-heróis, bailarinas, piratas, índios, palhaços, papangus, animais e outros fantasiados que não conhecia. Todos mascarados. Ela também. Usava uma máscara pequena, repleta de paetês e purpurinas coloridas, que cobria apenas o entorno dos olhos, mas nem por isso chamava menos atenção do que as dos outros. Julgava, então, que o uso de máscaras deveria ser pré-requisito para brincar naquele bloco, dentro do cordão de isolamento.
A alegria rolava solta com as pessoas cantando e gargalhando…
Ao longe, podia avistar parte dos bonecos gigantes que desciam sacolejando os braços e acompanhando outros blocos. Por alguns instantes as músicas das orquestras se misturavam. Elas vinham da rua principal e demoravam para desaparecer ladeira abaixo. Foi num desses momentos de distração que Joana notou um homem jovem encostado na parede de uma casa próxima, destoando de todo aquele ambiente festivo, alheio à tanta euforia. Era apenas um conhecido. Sem qualquer sinal de adorno ou emoção, em sua camiseta e calça jeans, ele simplesmente se distraía com a cabeça baixa voltada para um livro. Alguém já havia cochichado à Joana que ele era autista.
A orquestra não deixava os pulos cessarem; emendava um frevo no outro que era capaz de fazer até um poste sair trocando os pés. Voltei, Recife e Bom demais eram os preferidos de Joana. Sabia as letras de cor e só não cantou junto porque a secura na boca não lhe permitiu.
O forte calor afetava os foliões e foi ele que levou a jovem a aceitar uma lata de refrigerante vinda de algum lugar.
Aquele líquido supergelado desceu como uma recarga de energia, resfriando e revigorando cada célula do seu organismo ansioso, mas despreparado. Atirou a latinha numa lixeira próxima e voltou à diversão.
Meia hora depois o sorriso de Joana começava a murchar.
O Batman e a Mulher Maravilha, que saltitavam à sua frente, estavam deixando de ser os seus heróis favoritos. Conversavam entre si e depois viravam os pescoços para trás, espiando, olhando-a de uma maneira diferente, que a deixaram desconfiada. Dois piratas com tapa-olhos e imensos bigodes volta e meia exibiam os rostos raivosos para o seu lado; a índia toda pintada e enfeitada por penas e cocares havia perdido o seu colorido e passara a expor um sorriso amarelo e ameaçador; e os palhaços, com suas perucas azuis e narizes de bola vermelha, não provocavam mais a menor graça.
O mundo de Joana não era mais o mesmo; de repente ficou turvo e começou a girar. Apesar do enjoo e do mal-estar, conservava-se lúcida — o suficiente para sentir que o refrigerante não descera tão bem quanto imaginava e concluir que alguém tinha colocado alguma substância misturada ao guaraná que ela bebeu. “Meu Deus!” — pensou. Suas pernas ainda respondiam e a levaram a encostar-se à parede. Arrancou a máscara e a atirou ao chão. “Quem fez isso comigo? E agora, será que vou conseguir chamar a polícia?”
E seus pais? Na cabeça dela, não adiantava nem pensar neles. Depois que a deixaram no bloco não os vira mais.
Parecia estar vivendo um pesadelo.
Joana já tinha visto em algum noticiário que esse tipo de coisa acontecia, que golpes dessa ordem eram comuns: dopar uma pessoa para roubar seus pertences ou para fazer um sequestro ou… cometer outras maldades. Ela não era muito de assistir ou ler jornais, mas em uma das poucas vezes que isso ocorreu a expressão “boa noite Cinderela” havia despertado a sua atenção e acabou ficando gravada na sua memória. E aquilo não era nenhuma história infantil, como o nome até sugeriria, mas sim algo assustador e que poderia estar acontecendo com ela naquele exato momento.
A parede suportava o peso do corpo de Joana bem como o das imagens trêmulas e disformes, que dançavam em seu campo de visão. Apesar do mal-estar, pôde perceber a aproximação de um homem. Era o autista. A sua voz continuava sem sair, por isso, ela procurou os olhos dele, como um pedido de ajuda.
“Me ajude, por favor. Alguém me envenenou. Eu não estou bem e preciso de ajuda” — dizia o seu olhar de súplica, sem conseguir falar.
Para sua surpresa, o autista, que já havia deixado o seu livro de lado, largando-o no chão, respondeu da mesma forma telepática: “Você viu quem lhe passou a latinha de refrigerante envenenado?”
“Não, mas você está vendo aqueles ali?” — Apontou com a cabeça. “O Batman e a Mulher Maravilha. Eles não param de me olhar. Podem ter sido eles” — continuou em pensamento. “Ou também os piratas, os palhaços, os índios, e até os marinheiros… Não sei… Estou com medo e confusa… Minha cabeça dói… Será que eu vou morrer?”
“Como você é boba!” — disferiu em pensamento. Puxando os lábios para o canto da boca, ele parecia se divertir com a aflição da moça.
Chocada, Joana se surpreendeu com aquela resposta acompanhada da expressão de zombaria. O mundo à sua volta ainda pulava e girava, mas alguma coisa dita por ele em pensamento não fazia o menor sentido.
Com os olhares novamente cruzados, voltaram a se comunicar mentalmente.
“Se você sabe que foi uma lata de refrigerante, então você deve ter visto quem fez isso comigo!” — concluiu a jovem.
“Claro que vi. Fui eu” — revelou com extremo orgulho.
“Por quê? Que mal eu te fiz?” — abaixou a cabeça e soltou um gemido, levando as mãos à barriga. Quando a dor aliviou, ergueu o rosto e continuou. “O que você colocou naquela bebida?” — Joana questionou, ainda mais abalada.
“Na verdade, eu sou um grande cientista e estou desenvolvendo uma fórmula que vai mudar o rumo da humanidade. Tenho pesquisado há anos e feito muitos testes com animais, porém, hoje você teve a sorte de ser a minha cobaia humana.”
Apesar de assustada e de achar aquele homem jovem demais para ser um cientista, Joana encontrou algum sentido naquela resposta.
Afinal, aquele homem não parecia mesmo ser uma pessoa comum. Pessoas comuns não se comunicavam mentalmente.
O latejar nas têmporas deixava a visão de Joana distorcida: as fantasias tinham o seu brilho substituído pela opacidade e por tecidos escuros; os adornos nas cabeças haviam se transformado em chifres e serpentes; as máscaras haviam ganhado olhares malévolos e presas longas e pontiagudas; ao invés de mãos, garras com unhas negras e afuniladas. Tinha consciência de que estava delirando e era isso o que mais a perturbava.
O tal homem que se dizia cientista se aproximou ainda mais. Joana podia ver o mesmo brilho de estranheza e de curiosidade do seu olhar refletido nos olhos do estranho.
“O que está acontecendo comigo?”
“É exatamente o que eu quero saber. Descreva para mim como você está se sentindo; detalhe o que você está vendo e ouvindo.”
Apenas os sons da comunicação mental entre os dois soava com nitidez. Não havia mais música orquestrada, só ruídos desconexos; acordes e vozes reproduzidos de forma lenta e distorcida deixavam seus sentidos embaralhados. O calor havia sumido e dera lugar a tremedeiras e ondas de calafrios.
— Você é maluco — conseguiu sussurrar enquanto escorregava o corpo rente à parede até se sentar no chão com as forças se exaurindo.
A última cena registrada por Joana foi ver o Batman e a Mulher Maravilha entrarem em ação correndo em sua direção para salvá-la das garras do mal.
*
Joana nem notou que seus olhos estavam abertos.
As dores abdominais haviam passado e as da cabeça não incomodavam tanto. Ela não tinha a menor ideia de onde estava, diante da total escuridão.
Apurando os ouvidos, ainda podia ouvir os ruídos daquele dia de Carnaval, bem baixinho, distantes.
“Tem alguém aí?” — Era a vontade de falar, sem conseguir.
Após um infinito minuto, o eco do seu pensamento retornou indicando a resposta. “Ninguém”.
Seus braços e pernas, pesados feito chumbo, deixavam seus movimentos restritos.
No instante seguinte, o clarão de lâmpadas recém ligadas quase a cegou.
“Olá, minha querida boba!”
Ela conhecia aquela voz dentro da sua cabeça? Com os olhos apertados, girou o pescoço e viu o cientista cruzando a sala com uma maleta preta na mão. Aquele lugar parecia um laboratório ou um ambulatório de um hospital… ou qualquer coisa semelhante.
“Você está se comportando muito bem.” — E pousou a maleta numa cadeira, alisando e admirando o seu contorno. “Você não queira nem saber o que tenho aqui dentro.” — Ele gargalhou feito alguém que perdeu o juízo.
Depois, o cientista louco, que estava então com um jaleco branco e óculos fundo de garrafa, passou por uma mesa e se voltou para Joana exibindo uma seringa.
“Vamos continuar a nossa experiência?” — pensou ele, segurando o braço e a mão de Joana.
Ela havia perdido as esperanças… Ninguém poderia ajudar… E, achando que não havia mais o que fazer, apenas cerrou os olhos para esperar pelo pior…
Segundos, talvez minutos… e a picada da agulha não aconteceu.
Os sons do frevo aos poucos se tornavam mais audíveis…
Joana não compreendia mais nada. Nem por isso quis abrir os olhos. O frio, o medo e a ânsia por respostas faziam seu frágil corpo tremer. Ali, entregue ao destino, sentiu-se envolver por um lençol e começar a flutuar, como se estivesse sendo erguida no ar pela dura e forte estrutura de um pequeno guindaste. Do alto, veio um leve chacoalhar, cadenciado com um vai e vem. Estavam-na tirando daquele lugar sinistro, mas a levando para onde? Ela não sabia. Não queria abrir os olhos.
Preferia imaginar que estava sendo carregada pelos braços fortes e musculosos do seu pai e levada de volta para casa.
*
— Está vendo, Matias, eu não disse que a nossa filha não estava pronta para brincar o Carnaval sozinha? — disse a Mulher Maravilha com as mãos no rosto da filha que aparentava estar desacordada. — Ela está febril.
Sem perder a calma, o Batman se abaixou e, com o polegar da mão direita, levantou as pálpebras de Joana. Ele era médico. Em seguida, tomou o pulso da filha. Após um minuto, constatou que seu estado aparentava normalidade e assim, intimamente, ele se tranquilizou.
— O sol está muito quente, querida, é isso. — Batman tentava amenizar a situação para não causar alardes. — Vamos falar com algum responsável pela festa e avisar que estamos indo. — Virando-se para o jovem do lado que, imóvel, apenas observava, perguntou — Esse livro é seu, meu rapaz? — O pai de Joana apanhou o livro do chão e o colocou nas mãos do outro. Animais fantásticos e onde habitam, estava escrito na capa. O tal rapaz se agarrou com o livro e retornou à posição anterior, voltando a imergir e se isolar em suas páginas.
Ele era autista.
Uma índia se aproximou preocupada.
— Sr. Matias, Joana está bem? — Era Márcia, uma das professoras dos jovens.
— Ela está bastante cansada, nada para se preocupar. Pode ter sido o excesso de calor. A senhora sabe que ela não está acostumada — falou enquanto removia a máscara de homem morcego e passava as mãos para arrumar os cabelos. — E o refrigerante muito gelado que demos provavelmente não caiu muito bem, por isso a estamos levando para casa.
— Qualquer coisa o senhor me avise, sim? Eu espero que Joana tenha gostado dessa experiência. Ela parecia tão satisfeita! Vejam só a alegria desses rapazes e dessas moças! Nossos alunos têm problemas graves, sim. Mas eles têm progredido bastante. — Apontou para os jovens que continuavam se divertindo ao som do Bicho maluco beleza. — Aos poucos vão se tornando confiantes e independentes.
Precisavam falar bem alto, quase gritar, para se ouvirem.
— É, dona Márcia… São todos realmente muito especiais! Sem dúvida foi uma excelente ideia promover esse baile de máscaras com toda a classe justamente aqui em Olinda. Eles precisam interagir com pessoas e situações reais.
Um casal de piratas pegou um dos palhaços pela mão. Deram tchauzinhos e seguiram por outra rua. O baile logo terminaria e todos os pais, professores, parentes e alunos estariam indo embora.
O Batman desatacou sua capa, com a qual envolveu a filha. E, acompanhado da Mulher Maravilha, pegou Joana nos braços e a levou de volta para casa.
FIM
Este conto faz parte da antologia de contos “Por trás das máscaras – suspense e mistério no carnaval”, disponível na Amazon
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Observação do Autor
Joana é uma adolescente diferente das outras. Mas o que pode acontecer de errado no seu primeiro carnaval em Olinda, cercada pelos pais?