Susana Geadas

Cobras e Lagartos

  • Gênero: Fantasia | Público Infantil

Valéria, ajuda aqui a mãe com estas caixas, se fazes favor.

Está bem — disse Valéria, ao descer as escadas.

Desmontaram as caixas das mudanças a achataram-nas. No fim, Carminho passou uma corda, colocando-as à porta da entrada.

Pronto. Finalmente, depois de dois dias está tudo feito — Suspirou de mãos à cintura e um sorriso no rosto.

Mas e o quarto da avó Guilhermina?

Por enquanto deixamos como está, um dia destes eu dou uma limpeza geral.

Carminho encaminhou-se para a sala e deixou-se cair no sofá, estendendo as pernas sobre a mesa à frente. Valéria deu a volta à mesa e sentou-se na ponta do sofá, ao lado da mãe, de mãos no joelhos e olhos no chão.

Que se passa? Eu conheço-te, sei quando estás a matutar em qualquer coisa.

Valéria soltou um meio sorriso.

Mamã, porque é que eu nunca conheci a avó Guilhermina?

Carminho preparou a garganta e endireitou-se no sofá, pegando nas mãos da filha.

Já te contei que o teu pai desapareceu no dia em que nasceste Valéria assentiu com a cabeça. Eu estava doida de preocupação, queria ir à polícia, mas a tua avó parecia não dar importância e quando reportei o desaparecimento, ela ficou muito aborrecida comigo. A partir daí a nossa relação nunca mais foi a mesma.

Porquê?

Sinceramente, não sei passou a mão pela face de Valéria. Ainda chegámos a vir visitá-la umas quantas vezes, quando eras bebé, mas parecia sempre que estávamos a incomodá-la, ela estava sempre a olhar para o relógio, para ver quando nos íamos embora. Às tantas, desisti e simplesmente deixei de vir.

E nunca mais soubeste nada dela até agora?

Eu continuei a enviar fotos tuas para ela, e ela enviou-te aquele peluche horrível que gostas tanto.

O Serpentinas!

Sim. Ela tornou-se uma eremita, não queria ninguém por perto. Acabou por falecer sozinha no hospital, coitada. A vizinha disse-me que ela já tinha perdido o juízo, só falava em maldições e criaturas mágicas.

Gostava de a ter conhecido, antes de ela se ter ido embora.

Eu sei querida, devia ter tentado mais vezes, mas a vida também não foi fácil para nós. Confesso, nunca pensei que nos deixasse esta casa, foi uma dádiva caída do céu. E assim, com o dinheiro da renda, a mãe agora pode investir num carrinho para não perder tanto tempo nos transportes e chegar mais cedo dos trabalhos.

Gostei da escola nova. — Continuando a olhar para o chão.

Eu também, e ser a cinco minutos a pé daqui, é a cereja no topo do bolo. Durante a semana podes ficar lá no CTL1 até eu chegar, mas aos fins-de-semana, não sei como iremos fazer.

Mãe, já tenho oito anos. Porque não posso ficar sozinha? Cruzou os braços ao peito.

Eu sei, e estás habituada a viver num bairro difícil, mas mesmo sendo um bairro bom, eu preferia que estivesse aqui alguém contigo.

Sério mãe, eu fecho tudo, até as janelas e não abro a porta a ninguém. Eu sou corajosa, não tenho medo de nada nem de ninguém.

Vou pensar nisso… agora vamos mas é jantar. Bateu as palmas. Bora lá.

No primeiro fim-de-semana que ficou sozinha, Valéria estava a ler no seu quarto quando ouviu um barulho estranho no andar de baixo. Lentamente, desceu a escada, olhando em todas as direcções.

Parecia que alguém andava a varrer o chão de madeira do quarto da avó. Quando chegou em frente ao quarto, o barulho parou. Ouviu ao fundo uma espécie de guizo abafado. Ganhando coragem, abriu a porta, mas tudo estava arrumado e não viu nada nem ninguém.

Isto repetiu-se no dia a seguir, e no fim-de-semana seguinte, à mesma hora. Mas quando Valéria investigava o quarto, nunca via nada, apenas restava um odor a relva cortada.

Ao terceiro fim-de-semana, Valéria abordou uma nova estratégia: uma hora antes foi ao quarto da avó e procurou um lugar onde se esconder. Acabou por se decidir por uma arca velha grande, que estava aos pés da cama.

Apesar de ter mantas lá dentro, dava espaço para se enfiar e a fechadura tinha um buraco grande que lhe permitia respirar, além de conseguir ter um bom campo de visão.

Tudo era silêncio, Valéria sentia o calor da sua respiração e tentava respirar pelo buraco, quando começou a ouvir um barulho sibilante. Espreitou pela fechadura e eis quando viu uma grande cobra amarela a passar à frente da arca. Soltando um ‘AH’ abafado, tapou a boca com as mãos. A cobra parou e levantou-se ligeiramente, olhando na direcção da arca. Os olhares cruzaram-se.

A cobra sibilou e muito rapidamente serpenteou saltando para dentro de um quadro de uma floresta que estava na parede do quarto. No processo, o quadro caiu no chão e o vidro partiu-se.

Com as mãos cravadas nas mantas, Valéria arfava com o coração descompassado. Largou as mantas, mas voltou a passar as mãos por elas para limpar o suor.

Lentamente saiu da arca e aproximou-se do quadro, baixou-se sobre ele para apanhá-lo, mas ao tocar na imagem foi tomada por uma vertigem e começou a cair, vendo a clareira como se estivesse a sobrevoá-la, caindo depois de joelhos e mãos no terreno arenoso.

Levantou-se sacudindo as mãos e a roupa, e quando se endireitou o seu olhar cruzou novamente com os da cobra amarela.

Ficaram paradas a observar-se uma à outra.

Filha, sssim. Reconheço-a das fotosss, é ela. É messsmo ela.

Pai? perguntou, franzindo a testa.

Conssseguesss perceber-me?

Sim. Não devia?

Sssais à tua avó então, tensss o dom.

O dom? Do quê?

A tua avó podia ouvir e comunicar-ssse com as criaturasss mágicasss, tinha poderesss. Foi ela quem abriu os váriosss portaisss, elesss comunicam com os quadrosss da casssa.

Um grunhido vibrou por toda a clareira, fazendo os coelhos que por ali saltitavam, pularem, chutarem as pernas e fugirem a alta velocidade.

Ela já sssentiu a tua presssença. Temosss de te esssconder, anda sssegue-me.

Mas, eu não estou a perceber…

Explicar-te-ei tudo asssim que posssível masss agora temosss messsmo de ir. Rápido.

Valéria correu atrás da serpente, entrando num prado onde a relva lhe salpicou as pernas de orvalho. Só pararam quando chegaram a uma árvore muito grande e velha.

De repente, do solo junto ao tronco surgiu um lagarto cinzento, que quando olhou para Valéria começou a gritar.

Bruxa, bruxa, uma bruxa pequena.

Valéria olhava para todo o lado à procura da tal bruxa, mas não havia nada a não ser relva e árvores.

Acalma-te lagarto medrossso, é a minha filha.

Uma voz retumbou pela floresta e as aves esvoaçaram em fuga.

Rápido, Lagarto, precissso que nosss escondasss, até que eu consiga enviá-la por um dosss portaisss em sssegurança.

Venham, entrem.

Valéria encolheu-se e entrou de gatas na toca, indo atrás do pai e do Lagarto. Ela não conseguia ver nada à frente, pelo que teve de apalpar o caminho, os seus dedos enterravam-se de forma ligeira na terra e quando colocava as mãos nas laterais, elas ficavam húmidas e frias. O caminho era apertado, mas a certa altura desembocou numa gruta espaçosa, na qual podia estar levantada.

As suas unhas estavam negras da terra e havia um cheiro a salina no ar. A gruta estava iluminada por cristais azuis que brilhavam fulgurosamente.

Uau, que lindo, onde estamos?

Na minha casa, pois claro.

Olhando ao redor viu uma cama feita de palha ou relva seca.

É o lugar ideal, para me esconder da Pérfffida.

Pérfida? Quem é essa?

Filha, a nossssa família é proveniente dessste mundo. Há muitasss geraçõesss, a Pérfffida apaixonou-ssse por um antepasssado nossso. Quando não foi corressspondida, ela vingou-ssse e amaldiçoou todosss osss homensss da nosssa família, transssformando-osss em cobrasss quando elesss ssse tornam paisss, foi asssim com o meu pai e com o meu avô.

A história não é nem assim, a culpa fffoi do teu antepassado que a enganou e a deixou sozinha à espera de uma fffilha. E aparece seis meses depois casado e fffeliz, o choque foi tanto que ela perdeu a menina. Foi a tristeza e o sofffrimento que a levaram a deixar-se infffluenciar pela velha bruxa, Maledita.

Talvez tenha sssido asssim, masss que culpa tenho eu dissso?!

Ela perdeu a razão e deixou-se dominar pela Maledita, eu próprio tentei fffalar com ela e…

E o quê?

Um novo trovão retumbou pela floresta, fazendo os cristais da gruta retinir.

Vou até ao outro lado da floresssta e vou tentar dissstraí-la, toma conta dela e não a deixesss sssair. — Olhando para a filha — Por favor, fica aqui e não sssaias.

Valéria assentiu com a cabeça.

O Lagarto destapou uma caixa e soltou vários insectos, que gulosamente comeu.

Queres?

Não! — disse, fazendo uma careta.

Pois, os humanos não comem estas coisas. Se tiveres fffome eu posso ir buscar bagas e amoras, queres?

Sim, por favor.

O Lagarto estava a apanhar amoras quando sentiu uma sombra por trás de si, virou-se repentinamente, apenas para dar de caras com Pérfida.

Há quanto tempo, velho amigo, como estás tu?

Eh he… bem…

Sabes, aqui o meu amigo Corvit — apontou para uma ave negra que os sobrevoava — viu uma criança. Por acaso não sabes nada sobre isso?

Criança humana? Aqui? Impossível!

É, foi o que pensei, mas como tenho acesso aos pensamentos do Corvit, vi e senti claramente a presença da criança.

Pois, se tu viste é porque é verdade, claro. Mas eu não sei de nada.

Certo. Agora pára de me mentir e diz-me onde ela está.

Eu não sei, juro!

Pensava que éramos amigos, afinal conhecemo-nos desde crianças.

Isso fffoi antes de me transffformares num lagarto.

Sim, não estive bem. Estava um pouco aborrecida com o teu género, nesse dia. Mas não é nada que não possa ser resolvido, se me levares até à criança.

Como posso confffiar em ti?

Eu sinto-me sozinha, agora sem a Maledita, podias voltar a ser a minha companhia, como eras em criança, não queres? — Os seus olhos brilhavam.

Sim, sempre fffoi a minha vontade…

Bem sei — acaricia a cara do Lagarto —, mas ainda temos tempo, não achas?

Sim… mas prometes que não lhe vais fazer mal?

Nunca.

O tempo passava e o Lagarto não havia meio de voltar, por isso Valéria aventurou-se e saiu da gruta. Subiu à árvore para poder ver bem toda a clareira e a floresta para lá dela.

Enquanto observava, viu o Lagarto chegar com uma mulher vestida de negro. Intuitivamente, Valéria escondeu-se por trás da copa da árvore e ficou a observar.

É aqui que moras, nesta árvore?

Sim, por baixo dela, tem uma gruta muito bonita com cristais azuis.

Calculo que seja linda — revirou os olhos —, mas vai lá buscar a menina — enchutando-o com a mão.

Ah sim, claro. Já volto. — Entrou pelo buraco perto do tronco.

Voltou passados uns minutos, com uma cor mais escura nas escamas.

Estava ver que nunca mais vinhas, onde está a criança?

Não sei, eu disse-lhe para ela não sair, mas procurei-a por toda a parte e não a encontrei.

Homens, todos mentirosos! — gritou num grunhido.

Não, não, ela deve ter saído para explorar, deve andar por perto. Vou procurá-la. Eu encontro-a, eu encontro-a.

O semblante de Pérfida ficou cada vez mais vermelho, as veias azuis e salientes da testa e pescoço dobraram de tamanho e pulsavam intermitantemente.

Não, chega! Mentiste-me como ele, como todos. Vais pagar por isto. — Levantando o braço direito e colocando as mãos em forma de garra — Ubi vermis vermis eorum tu es et in vobis erit (Verme és e verme serás).

Não! — A magia de Pérfida atingiu o Lagarto que se viu mais uma vez transformado, não num homem como pensava, mas num verme.

Homens são todos vermes, então agora estás na tua verdadeira forma. — Depois olhou para o céu e fez um sinal para Corvit. Este desceu abruptamente e com o seu bico levou a pequena larva para sempre.

Não dá para confiar nos homens, todos iguais. — Bufou profundamente.

Pérfida assobiou e várias aves negras se juntaram a ela.

Encontrem-me a criança, vasculhem em todo o reino, ela tem de ser encontrada.

Uma gralha chegou e graniu para Pérfida.

Pérrrfida, pérrrfida, a cobrrra matrrreirrra chegou há pouco ao Palácio, querrr falarrr contigo.

Acredito, matreira mesmo, quer-me distrair. Diz-lhe para esperar que vou já lá vou ter. — Soltou um riso escabroso, fazendo vibrar toda a relva à sua volta.

Crá crá crá — voou, rindo-se.

Tudo isto Valéria avistou do topo da árvore. Quando viu o Lagarto a ser levado pelo corvo, tapou a boca com a mão, antes que seu grito fosse ouvido por Pérfida.

Pérfida virou-se de costas para a árvore, conseguia sentir a presença da humana.

Bem, claramente o lagarto iludiu-nos, a criança não está aqui, não podemos protegê-la. Vamos procurar para lá da floresta, se ela foi para lá, precisa da nossa ajuda.

E foram naquela direcção, Pérfida por terra e os corvos por ar.

Valéria esperou mais um pouco e depois lentamente desceu da árvore. Assim que os seu pés tocaram o chão, Pérfida apareceu por trás dela.

Aqui estás tu!

Valéria deu um salto, gritou e caiu por terra.

Oh pobre menina, aleijastes-te? — estendendo-lhe a mão. — Não era a minha intenção assustar-te, estava apenas preocupada contigo, sozinha num mundo desconhecido, sem ninguém para te proteger. — Sorria para Valéria.

Valéria olhou para a mão dela, desviou o olhar e levantou-se sem a sua ajuda.

Não precisas de ter medo de mim, não te farei mal.

Assim como não fizeste ao Lagarto? — Cruzou os braços sobre o peito e olhou Pérfida de lado.

Ele mentiu-me, era um homem e, por tal, um mentiroso. — Encolheu os ombros.

Ele não mentiu, ele disse-me para ficar lá dentro, eu é que sai para ver.

Então, minha querida, a culpa da morte dele é tua, porque não disseste nada?

Eu… eu…

Podias ter evitado toda a situação — abanava a cabeça.

Valéria abria e fechava a boca como um peixe fora de água.

Bem, águas passadas não movem moinhos, não levo a mal esse momento impensado da tua parte. Eu perdoo-te. Afinal, que mãe seria eu se não perdoasse a minha querida filha.

Eu não sou tua filha. — Sentia o calor a subir pela face.

Mas serás, vou ensinar-te tudo o que sei, claramente tu tens o dom. Quem diria que uma descendente da semente da mentira teria tal poder.

Não me interessa esse dom, não quero ser como tu. — Agarrava a saia do vestido com punhos cerrados, os nós dos dedos estavam já brancos.

Pérfida leva as mãos ao peito.

Oh, minha querida filha, não digas essas coisas à mãe.

Não és minha mãe, eu já tenho mãe. — Bateu com o pé no chão.

Anda, querida, segue-me.

NÃO!

Mais uma vez, o semblante de Pérfida mudou, as veias fizeram novamente uma dança na sua face.

Se não vais a bem, vais a mal. — Pérfida estendeu os braços na direcção de Valéria — Vis possidere potest malum vobis faciens vosque cepissem (Que a força maligna se apodere de ti, fazendo-te minha prisioneira).

De imediato, Valéria sentiu uma força contrair todos os seus músculos. Gritou, mas o som não saiu, como se estivesse presa dentro de si mesma.

Agora segue-me.

O seu corpo começou a andar, seguia Pérfida como ela havia comandado. Valéria tentava debater, dizer para ela própria parar, mas o seu corpo não obedecia. Era um fantoche na mãos de Pérfida, a sua mente cativa no interior do fantoche.

Chegaram ao castelo, Valéria sentou-se na sala do trono ao lado de Pérfida. Esta deu a ordem para que deixassem entrar Ludovico, a grande cobra amarela.

Quando ele entrou e viu Valéria, colocou-se em modo de ataque, mas foi rodeado pelos guardas de Pérfida.

Apresento-te a minha filha, Insídia.

Ela não é tua filha, é minha!

Era tua, agora é minha. Não é verdade, meu amor?

Sim, mamã querida. — As palavras saíram sem que Valéria desse conta. Tentava gritar pelo pai, debatia-se sem parar, chorava, gritava, mas por fora a sua face mantinha-se séria e composta.

Valéria, filha, vem ter com o pai.

Qual pai? Aquele que me abandonou no dia em que nasci? — Na sua mente, ela gritava “Por favor pai, ajuda-me. Não estou a dizer isto, não acredites, ajuda-me”.

Não falasss a sssério!

Acho que ela foi bem clara.

Ela nunca diria uma coisssa desssas.

Como poderias saber? Tu não a conheces, ou conheces?

Ele ficou sem chão.

Guardas, levem-no daqui. Eu e a minha filha queremos estar a sós.

Não, não — Ludovico tentava lutar, mas mas o seu corpo delgado e escamoso não contribuía para escapar das mãos fortes dos ogres.

Valéria continuava a tentar debater-se, dentro da cápsula que era agora o seu corpo.

Cala-te, consigo ouvir-te. Pára de gritar, não vale a pena, quanto mais lutas, pior é. Acredita, eu sei. Só quando desisti e deixei a força negra tomar conta é que ganhei controlo sobre o meu corpo. Deixa-te ir, a força negra é parte de ti, eu apenas dei um pequeno empurrão para ela dominar, mas ela sempre esteve dentro de ti. Desiste e rende-te.

Nunca!!!

Tu é que sabes, o resultado final será o mesmo, apenas sofrerás mais no percurso. A escolha é tua.

Aquela noite foi excruciante. O seu corpo jazia imóvel, mas a sua mente estava activa e tentava ganhar algum controlo. Contudo, quanto mais força ela fazia, mais claustrofóbica Valéria se sentia. Acabou por adormecer de cansaço. Chorou o tempo todo, embora lágrima alguma lhe brotasse dos olhos.

Os dias passaram como uma novela à sua frente. Por mais que lutasse, não conseguia ganhar e assistia à sua vida como uma figurante, em vez de participante.

Certo dia, Valéria passeava com Pérfida pelos jardins, quando o seu pai Ludovico, apareceu de surpresa.

Pérfida deu uma pequena risada ao vê-lo.

Achas mesmo que podes lutar contra mim?

Ludovico lançou-se às pernas de Pérfida, mas ela saltou do caminho, fez um raio sair das pontas dos seus dedos esquálidos e por pouco não acertou em Ludovico.

A luta continuou e Valéria sentia-se cada vez mais impotente.

Foge filha, corre para um dosss portaisss. Não olhesss para trásss.

Mas Valéria não conseguia mexer-se por muito que pedisse aos seus membros para se moverem. Ao ver o pai perder as forças na luta, Valéria fechou os olhos na sua mente e abriu os braços convidando a força negra a tomar o poder.

Sentindo-se a arder e a ser preenchida com raiva, desprezo, vingança e sede por poder, não se debateu, não gritou. Quando estava prestes a sentir-se nula, viu que a sua mão já se movia a seu pedido, abriu os olhos da mente e gritou pela mãe, buscou nos recônditos da alma todo o amor que sentia pela mãe, relembrou todos os momentos carinhosos, quando esteve doente e a mãe lhe deu colo e carinho, quando foram ao zoo pela primeira vez.

Desta vez, foi a força maligna que gritou. O amor enfraqueci-a. Aquela força começava a diminuir dentro dela, ela moldou-a na suas mãos até ficar do tamanho de uma bola de ténis e fê-la quebrar-se em mil pedaços como um espelho. Pérfida soltou um grito raivoso.

Valéria começou a correr com todas as suas forças. Mas ao contrário do que o pai lhe pediu, ela olhou para trás.

Pérfida tinha a mão à volta do pescoço do pai e espremia. A língua bífida do pai estava de fora, e com a outra mão ela agarrou a língua e sem se importar com o veneno, arrancou-a, deixando o corpo amarelo de Ludovico cair no chão.

Valéria gritou e correu mais rápido. Até que viu algo translúcido um pouco mais à frente. Era uma saída para um dos quadros da avó, conseguia ver o outro lado da parede do corredor.

Generatio per singulos permanere possint maledicta (Que a maldição permaneça por toda a geração).

O corpo de Valéria recebeu um choque eléctrico muito potente e a sua visão obscureceu. A última coisa que viu antes de perder os sentidos foi a parede do corredor.

Tudo abanava como num terremoto, ouvia ao longe alguém a chamá-la, mas não conseguia perceber quem. Continuava a ser abanada, até que abriu os olhos para ver a mãe.

Que estavas a fazer a dormir dentro desta arca? Estava em pânico, não te encontrava em lado nenhum da casa, até te ouvir gritar.

Mãe… o pai… ele foi atacado pela Pérfida, ele… ele … — As lágrimas vinham de enxurrada.

Filha, está tudo bem, foi só um sonho mau.

Não, não, eu entrei no quadro e eles estavam lá e…

Calma, foi só um pesadelo. Anda, sai daí de dentro. — Carminho agarrou-a pelos braços e ajudou-a a sair da arca.

Valéria agarrou-se à mãe, enquanto fazia um rio jorrar dos seus olhos e serpentear pelo ombro de Carminho.

Chiu — dava-lhe colo. — Já passou, foi só um pesadelo. Já passou. — Valéria respirou fundo e olhou para a parede, o quadro estava lá intacto. Suspirou e levantou-se com a ajuda da mãe.

Estás gelada. Que tal um banhinho e depois uma sopinha quente.

Sssim. — Ao mesmo tempo, olhou para debaixo da cama e viu os cacos de vidro no chão.

Este conto faz parte da antologia O Crepúsculo da Inocência, disponível na Amazon

FIM

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