- Gênero: Domínio Público | Público Infantil
Na Trilha do Curupira
A trilha era antiga, mas poucos a conheciam, e menos ainda ousavam pisá-la.
Em silêncio, um ribeirinho cortava o mato com o facão gasto, os olhos apertados na direção do sol poente. A pele curtida denunciava anos de intenso trabalho, dia e noite. Por isso, não era homem de temer sombras nem ruídos. Sabia distinguir o rugido da onça do sopro do vento entre as palmeiras. Mas aquela mata… aquela era diferente.
Havia algo ali que os velhos da vila chamavam de “olho da floresta”. Pois, era como se a mata inteira o observasse, viva, atenta. Um passo em falso e ela o engoliria.
O ribeirinho, no entanto, não vinha plantar, nem pescar. Vinha tomar. Tomar madeira grossa, espessa, daquelas que valiam bem mais que a safra de milho. Porque era disso que precisava: madeira boa, seca, forte, para vender na cidade e comprar o motor do barco.
Havia prometido à mulher um motor novo. “Só mais essa vez”, dissera. “Depois a gente para.”
Mas os antigos também diziam que o Curupira ouve as promessas e aparece para cobrar.
O silêncio da floresta era quase um sussurro. Nada de pássaros, nem um farfalhar de folhas. Nenhum grilo, só o som do facão rasgando cipó e o baque seco das árvores tombando.
O ribeirinho derrubou a primeira peroba com três golpes firmes. Então a árvore gemeu antes de cair, um som que pareceu humano, aflito. Ele sorriu.
Na segunda, o machado escorregou, ferindo o braço. Um corte raso, mas que sangrou mais do que o esperado. O lenhador amarrou um pano e seguiu, irritado com o atraso. Foi então que viu a aparição.
Uma figura atravessou a trilha. Rápida, pequena, quase uma criança, mas com os cabelos acesos em chamas e os pés… os pés apontavam para trás.
O homem congelou.
Olhou para onde a criatura havia ido, mas só havia folhas se mexendo. Nenhum som. Então o coração começou a bater mais forte. Por isso, apalpou a espingarda pendurada no ombro. Estava ali, firme, embora o metal parecesse mais frio do que o normal.
No dia seguinte, o ribeirinho acordou sem saber onde estava. Dormira numa clareira improvisada, mas agora via apenas árvores em volta. Nenhum sinal de onde viera. Tentou seguir os próprios rastros. Mas não faziam sentido. Pareciam… invertidos.
Andou por horas. Sempre voltava ao mesmo tronco caído, marcado por sua faca. Tentou disparar a espingarda para o alto, em busca de ajuda, mas o gatilho emperrou. Tentou de novo. Nada.
As horas escureciam, e a floresta parecia se estreitar ao seu redor.
De repente, ouviu um estalo. Um porco-do-mato enorme cruzou seu caminho. Sobre ele, a mesma figura de cabelos flamejantes e olhar sério. Montado como um guerreiro antigo, o Curupira não disse palavra. Só apontou.
Sem entender, o homem correu na direção oposta. Tantas vezes quanto o fez, sempre voltava ao mesmo lugar. Exausto, caiu de joelhos. Olhou para o céu, mas não viu estrelas. A floresta agora estava completamente fechada, como se quisesse engoli-lo.
Durante três dias e três noites, vagou. Sem comida. Sem água, sem rumo. A floresta o engolira, sim. Mas não o digeria. Apenas o mantinha preso, como castigo.
No quarto dia, encontrou uma clareira. No centro, uma esteira de palha e, sobre ela, penas vermelhas e um rolo de fumo seco.
Lembrou-se do que os velhos diziam: “Se encontrar o Curupira, ofereça-lhe fumo. Faça silêncio. E espere.”
Sem forças para duvidar, o homem deixou o fumo na esteira. Deitou-se ao lado e fechou os olhos.
Quando acordou, estava de volta à trilha. A espingarda ao seu lado, encharcada. O machado, enferrujado. E o motor novo? Só lembrança.
Voltou para casa de mãos vazias.
Desde então, nunca mais entrou na mata com intenções gananciosas. Plantava o que precisava. Pescava o necessário. E nas noites mais quentes, deixava um pouco de fumo na beira do rio. Só por respeito.
Alguns diziam que ele enlouquecera. Outros, que tivera sorte de escapar com vida. Mas, no fundo, sabia: não era sorte. Era perdão.
E ninguém escapa do Curupira duas vezes.
Algumas questões que podem ser discutidas e trabalhadas com crianças, por pais e professores:
Cinco Perguntas Comuns sobre o Curupira
- O Curupira é um ser maligno?
Não. Ele é um guardião da floresta, punindo apenas aqueles que a destroem sem necessidade. - Por que os pés do Curupira são virados para trás?
Para confundir os caçadores e invasores da mata, fazendo-os perder o rumo. - O que acontece com quem desrespeita a floresta?
Pode ficar perdido, ter sua arma inutilizada ou cair em armadilhas do Curupira. - O Curupira pode se transformar em animal?
Sim, ele se transforma em animais como onça ou paca para atrair caçadores. - Como agradar o Curupira?
Com respeito à floresta e oferendas como fumo, esteiras e penas.
Cinco Pontos Relevantes do Conto
- Respeito à Natureza: O conto ressalta a importância do uso consciente dos recursos naturais.
- Elementos da Mitologia Tupi-Guarani: A história incorpora com fidelidade os traços culturais e simbólicos da figura do Curupira.
- Narrativa Envolvente: A estrutura mantém o leitor curioso, com clima de mistério e suspense.
- Ausência de Diálogos Prolongados: A narrativa prioriza a ambientação e introspecção.
- Final Reflexivo: Mostra a redenção possível quando o homem compreende os limites do seu poder sobre a natureza.
Conclusão
A lenda do Curupira permanece viva porque toca em algo essencial: o equilíbrio entre o homem e a natureza. Em tempos de devastação ambiental, ele se torna mais atual do que nunca, lembrando-nos que a floresta tem voz, espírito e defensores. Essa narrativa é um convite à reflexão sobre nossos atos e o impacto que deixamos nos caminhos por onde passamos. Que, como o ribeirinho, possamos aprender antes que seja tarde.
Sugestão de Leitura: A volta do Curupira, de Caio Hamasaki, na Amazon e
A lenda do Guaraná, aqui no Epicentro.
Observação do Autor
História criada a partir da Lenda do Curupira, personagem presente no folclore brasileiro.