- Gênero: Comédia | Público Juvenil
O caviar do Dia dos Namorados
Orlando cultivava modos e aspirações de gente rica, mesmo morando há tanto tempo na simplória cidade de Orocó. Nunca perdia a pose. Nem os fazendeiros, o gerente do banco, o prefeito e outros profissionais bem estabelecidos pensavam de forma tão sofisticada quanto ele. Por isso, o negócio do Orlando tinha toques singulares. Não era bar, restaurante, boteco ou venda, nada disso. Era uma “Casa de Petiscos”, com tira-gostos dos mais variados — que agradavam o paladar e os olhos — e prontos para acompanhar as bebidas diferenciadas que também servia. Pois é, tudo com muito requinte e glamour. Cerva? Só as de puro malte para cima, dando preferência às artesanais. Vinhos? Apenas os de nomes estrangeiros — aqueles que ninguém acerta pronunciar — e com rolhas de cortiça legítima.
Tudo era encomendado das cidades próximas ou até importado de outros lugares bem distantes, como Recife.
Ele dizia que pobre gostava de coisa boa e que também era filho de Deus. Então, por que não levar isso aos habitantes de Orocó, acostumados com aguardente e bode guisado?
O tempo mostrou que Orlando estava certo.
Dessa forma, naquele lugarejo humilde, ele havia conseguido se destacar. Com o seu negócio estabelecido há anos, havia se tornado conhecido e respeitado em toda a pequena cidade. Afinal, a sua petiscaria era o point, atração maior dos moradores da região e dos viajantes em passagem.
A filha única de Orlando ajudava na petiscaria e estava de casamento marcado para o Dia dos Namorados. Foi quando o negociante viúvo, encasquetou na cabeça que tinha que dar uma festa inesquecível, impressionar amigos, clientes, vizinhos e parentes. Ou seja, toda a cidade. Como já havia frequentado as festas locais e até as de outras regiões, vislumbrou que a dele seria a mais chique e comentada de todas, inesquecível. Com certeza, contrataria um DJ do Recife, sem medir gastos. Comida, bebida… tudo do bom e do melhor.
Assim, ele convocou a sua cozinheira Marlene.
Ah, que mãos de fada para a cozinha!
Só em pensar no tempero da morena a saliva já escorria pelo canto da boca.
Marlene seria a encarregada dos comes e bebes da festa. Apesar dos seus dotes culinários, era uma mulata extremamente desaforada. Tinha uma língua afiada que não deixava passar nada. Embora ela sempre discutisse e divergisse de opiniões na elaboração do cardápio da casa de petiscos, o sucesso do seu tempero levava Orlando a ir tirando por menos. Pensando nesse pormenor, logo cuidaria para ela não ter contato com os convidados, ficando restrita à cozinha. Talvez o bolo ele pudesse encomendar de Recife, mas o principal estava decidido.
Orlando planejava servir os mais sofisticados salgadinhos e algumas garrafas das bebidas mais caras do seu estabelecimento. Fora o que ele ainda iria comprar. Então, a poucos dias do grande evento, pegou a caminhonete e seguiu com sua funcionária para um grande atacado em Petrolina.
Empurrando o carrinho de compras, Marlene seguia o patrão, a princ[ipio, calada. Só fazia arregalar os olhos ao ver o preço das coisas que ele pegava das prateleiras, fazendo de tudo para segurar a língua e não contrariar o patrão.
Ele se deteve diante de um item e falou, para si.
— Caviar?! Sim! Todos vão ficar impressionados!
Dessa vez, além de esbugalhar os olhos, Marlene colocou a mão no peito. Então a atitude dela fez surgir uma dúvida na cabeça do Orlando.
— Você sabe o que é caviar, não sabe, Marlene?
A morena colocou as mãos na cintura e respondeu indignada.
— Seu Orlando! Eu posso não ser muito boa com as letras, mas eu sou cozinheira melhor do que muito Master Chefe por aí. Caviar é aquelas ovas de peixe, melequentase com gosto estranho, que os grã-finos gosta de botar nos pedacinhos de pão.
O patrão deu-se por satisfeito e colocou um punhado de potinhos de caviar de cores e tipos variados diretamente no carrinho de compras.
O telefone do Orlando tocou.
— Marlene, preciso resolver um assunto urgente agora.
E entregando uma enorme lista e o seu cartão de crédito para a sua funcionária — que é bom frisar: era da maior confiança — continuou:
— Pegue o restante das coisas e passe o cartão. Daqui a três horas eu volto pra te pegar.
Orlando saiu meio ressabiado, mas segundo sua filha ao telefone, ele era a única pessoa que podia assinar os papéis no banco para sair o empréstimo do dinheiro que pagaria boa parte das despesas do casamento.
Marlene pegou a lista e a leu item por item.
— Meu Deus! — Levou a mão ao rosto — Seu Orlando não entende nada mesmo de comida e muito menos de economia! Ele vai gastar os olhos da cara e o povo ainda vai sair falando mal! Eu bem sei! — dizia para si. — Todo mundo diz que comida de rico não tem gosto, que só tem belezura. Eu é que vou mostrar quem é que sabe fazer comida boa e gostosa, me aguardem! — Riu-se. — Depois da festa seu Orlando vai ficar tão satisfeito que vai até me dar um aumento!
Uma semana se passou e o dia do casamento chegou.
A igreja estava ornamentada com as mais lindas flores e o vestido da noiva desenhado por um desses estilistas das artistas lá do Recife. O bolo de quatro andares parecia um minicarro alegórico por ostentar tantos enfeites e acessórios. Para não sobrecarregar a sua cozinheira, o bolo e os docinhos ficaram a cargo do buffet organizador do cerimonial, contratado no Recife. A morena fez os salgadinhos e os pratos para o jantar. Certamente não havia com o que se preocupar. Sem tempo para supervisionar cada detalhe, tinha mesmo que confiar na competência de Marlene.
Orlando refletia mais ansiedade do que a própria noiva. Vaidoso como só, depois daquele dia, ele esperava ganhar ainda mais respeito e status na cidade. Poderia até sair candidato a vereador ou quiçá, a prefeito, sonhava enquanto entrava na igreja de braços dados com a filha. Afinal, os votos de todos os presentes seriam mais que suficientes para elegê-lo em qualquer disputa.
Após a cerimônia, a multidão de convidados dirigiu-se para a casa de eventos, ao lado da igreja.
Na festa, amigos, vizinhos, parentes, políticos e até as autoridades de Orocó, trajavam suas melhores roupas e conversavam animadamente, regados a Champagne Moët & Chandon Rosé Brut. Empanturravam-se com os mais variados canapés, feitos com caviar verde, cor de laranja e preto.
Diante da exagerada satisfação dos convidados, uma pulga se instalou atrás da orelha do Orlando. Em volta, Brás, o açougueiro, comia os canapés com tanta vontade que chegava a lamber os dedos. Próximo a ele, ouviu o comentário da esposa do dono da farmácia ao marido.
— Eu pensei que caviar era ruim, mas eu nunca comi algo tão saboroso!
— Deve ser por isso que esse tal de caviar é tão caro! — respondeu à esposa.
Outros comentários… e mais bandejas com canapés e outros salgadinhos — tudo de caviar — eram servidas pelos garçons, circulando por todo o salão.
— Um manjar dos deuses!
Orlando ficou preocupado.
Quanto caviar Marlene comprou? Ela sabia que não era para ser um banquete de caviar e sim apenas para a entrada.
Orlando suava frio, temendo o rombo no bolso.
As pessoas estavam se fartando e o Orlando quase enfartando. Para completar, avistou Marlene toda arrumada do outro lado do salão. Antes que ele pudesse alcançá-la para exigir explicações, ela seguiu para as mesas e anunciou que o jantar estava liberado. De longe, alguém perguntou:
— Marlene, foi você que fez? Qual é o prato principal?
A morena gritou:
— Tornedó de pato, risoto de arroz arbóreo trufado de cogumelos e… — deu uma pausa proposital ao destampar a baixela maior — ensopado de carne com caviar, receita exclusiva de Marlene Moreira, que eu coloquei o nome de “caviar dos namorados”!
O comerciante só acreditou no que ouviu por causa dos comentários e da enorme fila que logo se formou.
Não pode ser! Não acredito que Marlene foi capaz de fazer uma coisa dessas comigo!
Transtornado, caminhava bufando entre os convidados para buscar as justificativas da sua funcionária. Durante o percurso, tapas nas costas e algumas abordagens o deteram.
— Parabéns, Orlando! Você é o cara!
— Rapaz, só você mesmo pra dar uma festa dessas!
— Seu Orlando, o tempero de Marlene não tem igual!
— Orlando, eu não sabia que caviar era tão gostoso! Tu tá podendo mesmo!
Até que os comentários, de certa forma, foram acalmando o seu estado emocional, pois afinal não tinha mais como reparar o dano. Estava gastando uma nota preta, bem mais do que previra. Porém, o resultado parecia ter sido alcançado, pois, todos demonstravam grande satisfação, principalmente, pelas comidas e bebidas. Assim, o jeito era tirar proveito da ocasião. Colocou um enorme sorriso forçado no rosto e se entregou ao deleite das prosas com seus futuros eleitores.
Duas semanas se passaram e as pessoas ainda falavam entusiasmadas do delicioso caviar da festa do seu Orlando. Provavelmente, os próximos Dias dos Namorados seriam vinculados às delícias da festa do casamento da filha do dono da petiscaria. Se por um lado ele se envaidecia e se aprazava — pois o movimento do seu negócio havia dobrado — por outro lado ele estava apreensivo pela conta do cartão de crédito.
Não tardou mais alguns dias e o carteiro chegou com a temida fatura do cartão.
Abrindo devagar, para não se assustar, teve uma surpresa. O valor das compras veio tão baixo que ele se espantou. Só pode estar errado! Como é possível dar um valor tão pequeno depois de tanto caviar e M.Chandon comprados?
Questionada pelo patrão, a morena explicou:
— Olha, seu Orlando, o senhor não queria agradar o povo? O senhor acha que iriam gostar daquela ova de peixe ou de uma champanhe amarga? Pois eu comprei foi sidra de pêssego que quase ninguém toma, mas que eu sabia que todo mundo ia gostar. Eu tirei bem direitinho os rótulos e enrolei naqueles panos chiques do buffet. E antes dos garçons servirem, eu colocava dentro umas gotinhas de limão com hortelã. O senhor provou? Viu como ficou uma delícia? Alguém disse que não era M. Chandon? Claro que não! Alguém por um acaso já tinha tomado esse tal de M.Chandon Bruto pra dizer que não era?
O Orlando levou as mãos à cabeça e precisou sentar-se.
— E o caviar não tava bom? Alguém disse que não era caviar? Alguém já tinha comido caviar antes? Pois o caviar que eu fiz deu de dez a zero no caviar do peixe.
— Minha nossa!
— Eu fiz um molho no capricho, botei anilina pra dar as cor e misturei nas bolinhas de sagu. Nem eu imaginava que ia ficar tão bom! Ha, ha.
A morena se ria, vangloriava-se de seu feito enquanto o homem se abanava, suava frio e se escorava, já sentado, pasmo com a ousadia da moça.
— E o pato e o risoto? — Ele precisava saber.
— Alguém aqui na cidade já comeu tornedó de pato? Eu comprei foi um bocado de peito de frango, cortei e preparei com um tempero feito na cerveja! Aí eu pergunto pro senhor: alguém aqui em Orocó já comeu arroz arbóreo trufado? Pois é. Muito menos eu. Ninguém nem sabe o que é! Aí eu só fiz colocar um monte de coisa picadinha no arroz e pronto! Mas o cogumelo, esse foi legítimo, de verdade!
O Orlando quase não acreditava. Foi como se alguma coisa tivesse mudado dentro dele. Um estalo, um brilho nos olhos, uma taquicardia. Ele mesmo fora enganado por aquela mulher. Jamais pensaria que os convidados haviam comido gato por lebre. Que inteligência, apesar da pouca instrução! Que astúcia! Quanta habilidade! Que tempero!
Só então o comerciante se deu conta das maiores qualidades da sua funcionária.
Percebendo o olhar do patrão, Marlene encontrou o momento para perguntar se receberia um aumento ou uma gratificação.
— Aumento? Gratificação? — retrucou Orlando, com um sorriso no rosto. — Você quer se casar comigo?
Esta história faz parte da antologia de contos AS FACES DO AMOR, disponível na Amazon.
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Observação do Autor
Orlando, comerciante estabelecido na pequena cidade de Pinhal, resolve impressionar a todos com a festa de casamento da filha. Entretanto, o “toque” da sua cozinheira vai causar uma surpresa ainda maior, não apenas aos habitantes da cidade, mas ao próprio Orlando.
Depois dessa festa, o Dia dos Namorados será lembrado de outra forma.