- Gênero: Comédia | Público Infantil
De qual sabor?
Vários anos se passaram e ainda lembro do sorriso de Dorgival…
Meu irmão era o cuidador de Dorgival, mas, naquele dia, precisou resolver uns assuntos inadiáveis e me deixou em seu lugar. Então, como pernambucano prestativo, aceitei.
— Mantenha as janelas fechadas, viu! Pode vir algum golpe de ar e aí ele vai tossir a noite toda — recomendou dizendo às pressas antes de sair. — Ah, e daqui a duas horas tem aqueles remédios pra dar. — Apontou para a mesa, mas, da porta, ele ainda voltou. — E não dê os medicamentos com água gelada, que a garganta do coitado não anda boa.
Sozinhos no apartamento, Dorgival não quis saber de jogar cartas, damas, xadrez ou dominó. Nem cogitou ler ou assistir à TV.
— Zé, sabe o que eu queria fazer? Passear no calçadão.
Eu pensei duas vezes. Primeiro, ele estava bastante doente e não devia pegar o vento da praia, em hipótese alguma. Mas o segundo pensamento, tocado pelo olhar marejado do enfermo, prevaleceu. E assim, dez minutos depois, eu estava empurrando a cadeira de rodas pelo calçadão de Copacabana, com Dorgival empacotado: pele e osso de toca, casaco e cachecol, satisfeito da vida.

— Zé, olha aquele bofe ali sem camisa, Zé! — Ele não escondia suas preferências.
É claro que eu não olhei… na hora.
— Zé, eu quero um picolé — pediu, após uma tossida.
Eu sabia pelo meu irmão que Dorgival estava em estado terminal, vítima de AIDS. Sem cura, por volta dos anos de 1990, o diagnóstico era como uma sentença de morte.
— De qual sabor você quer, Dorgival?
No horário dos medicamentos, eu estava de volta ao apartamento na Avenida Atlântica, cumprindo rigorosamente aquela parte das orientações do meu irmão. À risca.
— Zé, essa água quente não mata a sede de ninguém. — As mãos dele tremiam e a sua voz saía baixa. — Zé, eu queria tomar água gelada, você pode…
— Tá aqui!
Três semanas depois, eu vi Dorgival de novo. Um largo e alvo sorriso moldado em seu rosto pálido, combinando com as flores brancas que enfeitavam o seu caixão, dava indícios de que ele morreu feliz.
Conto selecionado, constante da Antologia Nordestes, do Selo Off Flip, 2024
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